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A Fenomenologia

Lyotard (1954:9-11) – a eidética

A eidética de Husserl

A cada ciência empírica corresponde uma ciência eidética concernente ao eidos regional dos objetos estudados por ela e a própria fenomenologia é definida, nessa etapa do pensamento husserliano, como ciência eidética da região consciência.

 I — O ceticismo psicologista

O psicologismo contra o qual Husserl Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
luta identifica sujeito do conhecimento e sujeito psicológico. Afirma que o juízo "essa parede é amarela" não é uma proposição independente de mim, que o expresso e percebo essa parede. Diremos que "parede", "amarela" são conceitos definíveis em extensão e em compreensão independentemente de todo pensamento concreto. Será, pois, necessário conferir-lhes uma existência em si, transcendente ao sujeito e ao real? As contradições de realismo das ideias (platônico por exemplo) são inevitáveis e insolúveis. Mas, se ao menos admitimos o princípio de contradição como critério para a validade de uma tese (no caso platônica), não estaremos afirmando a independência em relação ao pensamento concreto? Passamos assim do problema da matéria lógica, o conceito, ao problema de sua organização, os princípios. Mas o psicologismo não se rende nesse ponto. Quando o lógico supõe que duas proposições contrárias não podem ser verdadeiras simultaneamente ele está apenas exprimindo que me é impossível de fato, no nível do vivido pela consciência, acreditar que a parede seja amarela e verde. A validade dos grandes princípios funda-se sobre minha organização psíquica, e se são indemonstráveis é porque são inatos. Disto decorre evidentemente que não existe enfim verdade independente dos passos psicológicos que a ela conduzem. Como poderei saber se meu saber se adequa a seu objeto, como o exige a concepção clássica de verdadeiro? Qual é o sinal de sua adequação? Necessariamente, um determinado "estado de consciência" pelo qual qualquer indagação sobre o objeto do qual existe saber se mostra supérfluo: a certeza subjetiva.

Assim, o conceito era algo vivido, o princípio uma condição contingente do mecanismo psicológico, a verdade uma crença coroada de êxito. Sendo o próprio saber científico relativo à nossa organização, nenhuma lei poderia ser considerada absolutamente verdadeira mas tão-somente uma hipótese em via de verificação sem fim, a eficácia das operações (pragma) que ela torna possíveis definia sua validade. A ciência teceria portanto uma rede de símbolos cômodos (energia, força, etc.) com que veste o mundo; seu único objetivo seria então estabelecer entre esses símbolos relações constantes que permitam a ação. O problema de um conhecimento do mundo propriamente dito não se propunha. Não se podia mais afirmar um progresso desse conhecimento no decorrer da história da ciência: a história é um devir sem significado determinado, um acúmulo de tentativas e de erros. É portanto necessário renunciar a propor problemas à ciência para os quais não existe resposta. Enfim, a matemática é um vasto sistema formal de símbolos estabelecidos convencionalmente e de axiomas operatórios sem conteúdo limitativo: tudo aí é possível à nossa fantasia (Poincaré). A verdade matemática define-se ela própria segundo o referencial de axiomas escolhidos de início. Todas essas teses convergem para o ceticismo.

 II — As essências

Husserl Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
demonstra (Rech. logiques. Ideen I) que esse ceticismo apoiado no empirismo suprime-se contradizendo-se. Com efeito, o postulado de base para todo empirismo consiste na afirmação de que a experiência é a única fonte de verdade para qualquer conhecimento: mas essa afirmação mesma deve ser posta à prova da experiência. Ora, a experiência, fornecendo apenas o contingente e o singular, não pode fornecer à ciência o princípio universal e necessário de uma afirmação semelhante. O empirismo não pode ser compreendido pelo empirismo. Por outro lado, é impossível confundir por exemplo o fluxo de estados subjetivos experimentados pelo matemático enquanto ele raciocina e o raciocínio: as operações do raciocínio são definíveis independentemente desse fluxo; pode-se apenas dizer que o matemático raciocina corretamente quando por esse fluxo subjetivo acede à objetividade do raciocínio verdadeiro. Mas essa objetividade ideal é definida por condições lógicas e a verdade do raciocínio (sua não-contradição) impõe-se tanto ao matemático como ao lógico. O raciocínio verdadeiro é universalmente válido, o raciocínio falso é maculado de subjetividade, portanto intransmissível. Do mesmo modo um triângulo retângulo possui uma objetividade ideal no sentido que ele é o sujeito de um conjunto de predicados, inalienáveis sob pena de perder o próprio triângulo retângulo. Para evitar o equívoco da palavra "ideia", diremos que ele possui uma essência, constituída por todos os predicados cuja supressão imaginária acarretaria a supressão do triângulo em pessoa. Por exemplo, todo triângulo é por essência convexo.

Mas, se permanecemos no nível dos "objetos" matemáticos, o argumento formalista, que faz desses objetos concepções convencionais, permanece poderoso; demonstrar-se-á por exemplo que os pretensos caracteres essenciais do objeto matemático são na realidade dedutíveis a partir de axiomas. Por esse motivo, Husserl Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
amplia, a partir do segundo temo das Recherches logiques, sua teoria da essência para aplicá-la ao terreno favorito do empirismo, a percepção. Quando dizemos "a parede é amarela" estarão implicadas nesse juízo as essências? E, por exemplo, a cor poderá ser tomada independentemente da superfície sobre a qual se "expõe"? Não, pois uma cor separada do espaço em que ela se dá seria impensável. Pois se, fazendo "variar" pela imaginação o objeto cor, retiramos a ele seu predicado "extensão", suprimimos a possibilidade do próprio objeto cor, chegamos a uma consciência de impossibilidade. Esta revela a essência. Há, portanto, nos juízos dos limites à nossa fantasia, que nos são fixados pelas próprias coisas de que há juízo e que a Fantasia mesma revela graças ao processo da variação.

O processo da variação imaginária dá-nos a própria essência, o ser do objeto. O objeto (Objekt) é "uma coisa qualquer" por exemplo o número dois, a nota dó, o círculo, uma proposição qualquer, um dado sensível (Ideen I). Fazemo-lo "variar" arbitrariamente, obedecendo apenas à evidência atual e vivida do eu posso ou não posso. A essência ou eidos do objeto é constituído pelo invariante que permanece idêntico através das variações. Assim, se se opera a variação sobre o objeto como coisa sensível, obtém-se como ser mesmo da coisa: o conjunto espaço-temporal, provido de qualidades segundas, colocado como substância e unidade causai. A essência se experimenta pois numa intuição vivida; a "visão das essências" (Wesenschau) não possui qualquer caráter metafísico, a teoria das essências não se enquadra num realismo platônico em que a existência da essência seria afirmada, a essência é somente aquilo em que a "própria coisa" me é revelada numa doação originária.

Tratava-se exatamente, como o queria o empirismo, de voltar "às próprias coisas" (zu den Sachen selbst), de suprimir toda opção metafísica. Mas o empirismo era ainda metafísico quando confundia essa exigência do retorno às coisas com a exigência de fundar todo o conhecimento na experiência, considerando como conhecimento indiscutível que só a experiência nos dá as próprias coisas: há um preconceito empírico, pragmatista. Na realidade, a última fonte de direito para qualquer afirmação racional está no "ver" (sehen) em geral, isto é, na consciência doadora originária (Ideen). Não pressupomos nada, diz Husserl Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
, "nem mesmo o conceito de filosofia". E quando o psicologismo pretende identificar o eidos, obtido pela variação, com o conceito cuja gênese é psicológica e empírica, respondemos apenas que, se ele quer se limitar à intuição originária tomando-a como sua lei, seus conhecimentos a respeito são menores do que ele pretende. O número dois é talvez, considerado como conceito, construído a partir da experiência, mas na medida em que eu obtenho desse número o eidos por variação, eu afirmo que este eidos é "anterior" a qualquer teoria da construção do número e a prova é que toda explicação genética se apoia sempre no saber atual da "alguma coisa" que a gênese deve explicar. A interpretação empirista da formação do número dois pressupõe a compreensão originária desse número. Esta compreensão é portanto uma condição para toda ciência empírica; o eidos que ela nos oferece é apenas um puro possível, mas existe uma anterioridade desse possível em relação ao real de que trata a ciência empírica.

 III. — A ciência eidética

Verifica-se por conseguinte a possibilidade de conferir a esta ciência sua validade. As incertezas da ciência, sensíveis já para as ciências humanas, mas que ao cabo atingem aquelas que serviam de modelo, físico e matemático, têm sua origem numa cega preocupação experimental. Antes de fazer física é necessário estudar o que é o fato físico, sua essência. O mesmo se pode dizer quanto às outras disciplinas. Da definição do eidos tomado pela intuição originária, poder-se-á tirar as conclusões metodológicas que orientarão a pesquisa empírica. Por exemplo, é claro que nenhuma psicologia empírica séria pode ser empreendida se a essência do psíquico não foi estabelecida de maneira a evitar qualquer confusão com a essência do físico. Em outros termos, é necessário definir as leis eidéticas que guiam qualquer conhecimento empírico; esse estudo constitui a ciência eidética em geral, ou então ontologia da natureza (isto é estudo do esse ou essência); essa ontologia foi tomada em sua verdade como prolegômeno à ciência empírica correspondente, por ocasião do desenvolvimento da geometria e do papel que ela desempenhou no saneamento do conhecimento físico. Todas as coisas naturais têm, como essência, efetivamente, ser especial e a geometria é a eidética do espaço: mas ela não abarca toda a essência da coisa, daí o surto de novas disciplinas. Podemos pois distinguir hierarquicamente, a partir do empírico: 1) essências materiais (a do vestiário, por exemplo) estudadas por ontologias ou ciências eidéticas materiais; 2) essências regionais (objeto cultural) coroando as precedentes e explicitadas por eidéticas regionais; 3) a essência do objeto em geral, segundo a definição dada precedentemente, cujo estudo é feito por uma ontologia formal O). Essa última essência que coroa todas as essências regionais é uma "pura forma eidética" e a "região formal" que ela determina não é uma região coordenada pelas regiões materiais mas "a forma vazia de região em geral". Essa ontologia formal é identificável à lógica pura; é a mathesis universalis, ambição de Descartes Descartes H. consagrou dois cursos e quatro seminários a Descartes. A desconstrução da metafísica heideggeriana conduz um diálogo intenso com Descartes. e de Leibniz Leibniz LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm (1646-1716). Leibniz centraliza sua reflexão sobre o "tema" que H tem por central em toda filosofia desde Platão e Aristóteles: a questão do ser. (LDMH) . É claro que essa ontologia deve definir não só a noção de teoria em geral, mas todas as formas de teorias possíveis (sistema da multiplicidade).

Tal é o primeiro grande movimento do intento husserliano. Ele se apoia no fato, definido como "estar aí individual e contingente"; a contingência do fato remete à essência necessária pois pensar a contingência é pensar que pertence à essência desse fato poder ser diferente do que é. A facticidade implica, portanto, numa necessidade. Esse propósito retoma aparentemente o platonismo e sua "ingenuidade". Mas contém igualmente o cartesianismo porque se esforça por fazer do conhecimento das essências não o fim de todo conhecimento mas a introdução necessária ao conhecimento do mundo material. Nesse sentido a verdade da eidética reside no empírico, razão por que essa "redução eidética", pela qual fomos levados a passar da facticidade contingente do objeto ao seu conteúdo inteligível pode ser também chamada "mundana". A cada ciência empírica corresponde uma ciência eidética concernente ao eidos regional dos objetos estudados por ela e a própria fenomenologia é definida, nessa etapa do pensamento husserliano, como ciência eidética da região consciência; em outras palavras, em todas as ciências empíricas do o homem (Geistwissenschaften) se encontra implícita necessariamente uma essência da consciência e é essa implicação que Husserl Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
tenta articular em Ideen II.


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