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Marion (JLMED) – sendo dado (étant donné)
sexta-feira 13 de junho de 2025, por
JLMED
« Axioma: nada podemos saber por nós mesmos, todo saber autêntico deve nos ser dado. » Novalis [1].
Sendo dado (Étant donné) — a fórmula parece óbvia.
A compreensão espontânea facilmente se une à leitura erudita para adicionar um artigo à primeira palavra, de modo a ler “l’étant donné”, considerando “[l’]étant” como um substantivo, para simplesmente concluir que o que é, a saber, o ens dos filósofos ou, segundo uma antiga palavra francesa, o étant [2], também se encontra dado; um étant — em outras palavras, um dado. Em suma, a fórmula enunciaria apenas que há o étant em vez de nada; assim, a leitura comum, erudita e espontânea ao mesmo tempo, compreende em “étant donné” apenas o que a metafísica pode dizer a respeito. Pelo que não apenas esta leitura não capta verdadeiramente a letra, mas se expõe à incoerência. Pois, se admite que é o étant (no sentido nominal) que se encontra dado e nada mais, por que não dizer simplesmente e metafisicamente que “o étant é”, ou mesmo que “o étant é dado”? Por que, ao contrário, justapor sem transição, nem artigo, nem cópula, os termos “étant” e “donné”? “Donné” equivale banalmente a uma explicitação de “est donné”, como “étant” a uma explicitação de “l’étant est”? Em suma, “étant donné” glosa apenas a estranha e dupla tautologia “o étant — o que — é”? Se fosse apenas isso, por que não ter dito, como a filosofia o repete fielmente desde Parmênides , que o étant é — ἐὸν ἒμμεναι [3]? E se é disso que se trata, por que a fórmula recorre a “donné”, já que, na glosa a que esta leitura chega, este termo — e apenas ele — desaparece como inútil e impreciso? Em suma, a leitura espontânea e erudita de “étant donné” multiplica “étant” e esquece completamente “donné”.
É preciso, portanto, renunciar a isso e ler “étant donné” como, na reflexão, se apresenta: sem artigo adicionado, “étant” deve ser tomado como um verbo; e um verbo que trabalha por outro (verbo auxiliar), pois coloca em prática o que, a partir de então, finalmente se revela “donné”. “Étant donné” indica que o dado de fato e irrevogavelmente já se deu —, como “étant fait” afirma que o fato se fez [4], “étant acquis”, que o adquirido está definitivamente adquirido, ou “étant dit”, que o dito tem valor de promessa, etc. Aqui “étant” prepara “donné”, que o realiza e lhe confere a força de um fato consumado — to enforce diz o inglês. Mais ainda: considerando-se apenas como auxiliar, “étant”, a título de verbo, vira e desaparece no “donné”, porque visa apenas a reforçá-lo; “étant” estabelece o fato do “donné” e nele se deposita por inteiro. “Étant donné” — o dado se dá de fato e atesta assim a sua doação. “Étant donné” não reconduz o dado ao status de um étant ainda mal nomeado, nem o inscreve na entidade supostamente normativa, mas o descobre como um dado, que nada deve a ninguém, dado enquanto dado, que se ordena à doação e até emprega “étant” nela. No mesmo gesto, o dado conquista sua doação e o ser (étant verbal) desaparece nela ao se realizar. De fato, aqui, o dado desdobra verbalmente em si sua doação — o que chamaremos de esta dobra do dado —, e o ser auxiliar se subordina à doação, a qual serve. “Étant donné” diz o dado enquanto dado.
“Étant donné” retoma, portanto, a questão que levantamos com Réduction et donation. Recherches sur Husserl , Heidegger et la phénoménologie em 1989 (MarionRD). Pensávamos então que procedíamos a um simples exame histórico do desenvolvimento do método fenomenológico: surgimento da redução na objetividade em Husserl , virada da redução para a entidade com o objetivo de acceder ao ser do ente para o Dasein com Heidegger, possibilidade, enfim, de radicalizar a redução pura ao dado como tal. Isso nos pareceu impor-se quase banalmente à leitura dos textos canônicos. Sem dúvida, o privilégio finalmente concedido à doação podia surpreender — mas não se tratava, afinal, de uma simples tradução de um conceito redundante em Husserl (Gegenbenheit)? Quanto a saber se era ou não possível recebê-lo, essa questão nunca deveria — em princípio — depender do rótulo do pensamento recebido, nem das boas maneiras ideológicas, mas das exigências da própria coisa. Sem dúvida também, a possibilidade de uma “terceira redução” podia espantar — mas, afinal, se a redução transcendental de Husserl se jogava bem no horizonte da objetividade, se a redução existencial de Heidegger se desdobrava no horizonte do ser, não se deveria, uma vez que não se bloqueava mais a redução no objeto ou no ente, designá-la especificamente como a terceira, ordenada ao puro dado? Pensávamos assim ter trabalhado quase como historiador da filosofia, aplicado à história da fenomenologia.
[1] Novalis, Brouillon général, § 902, in Schriften (ed. P. Kluckhon, R. Samuel), Stuttgart, 1960, t. 3, p. 441.
[2] É preciso ainda lembrar que o termo étant (ignorado pelos dicionários Littré, Lalande e Robert) aparece pelo menos em Scipion Dupleix, La Logique ou art de discourir et raisonner, Paris, 1603, 1, 7 (ed. R. Ariew, Paris, 1984, p. 45 e passim).
[3] Poema, fragmento 6, Die Fragmente der Vorsokratiker (ed. Diels-Kranz), Zurique, 1966, t. 2, p. 232. Traduz-se: “Necessário é isto: dizer e pensar do étant o ser” (trad. J. Beaufret, Paris, 1955, p. 81) ou, mais claramente, “É preciso dizer e pensar o étant ser” (trad. M. Conche, Paris, 1996, p. 102).
[4] Shakespeare: “I have done the deed”, Macbeth, II, 2, The Yale Shakespeare (ed. W. L. Cross, T. Brooke), Nova York, 1993, p. 1133.