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Dastur (FDHP) – deinotaton
quinta-feira 12 de junho de 2025, por
FDHP
No segundo percurso, trata-se de prestar atenção à maneira como se desdobla o ser do homem enquanto deinotaton. Primeiro são abordados esses domínios do poder subjugador que são o mar, que o homem enfrenta na tempestade, e a terra, cuja calma e crescimento ele perturba. Em seguida, o conjunto dos seres vivos que, ao contrário do homem que lhes faz violência e os arranca de sua ordem, se inserem no poder subjugador marítimo e terrestre. Tal descrição, insiste Heidegger, é a de um começo da história ao qual não se trata de aplicar as categorias da etnologia, pois longe de ser o que há de mais primitivo e desajeitado, é ao contrário o que há de mais estranhamente inquietante e poderoso. Por isso o mistério de tal começo não pode de modo algum ser abordado por uma ciência histórica que empresta seu método às ciências da natureza, mas unicamente por uma mitologia (GA40 :165; 169). O que aqui permanece uma indicação enigmática será desenvolvido na longa reinterpretação do mesmo coro de Antígona que Heidegger empreende em seu curso de 1942. Heidegger ali explica que a mitologia não é um estágio primitivo do saber, mas sim "o ’processo’ histórico no qual o ser mesmo vem poeticamente ao aparecer", o que manifesta a co-pertença originária da poesia e do pensamento e impede considerar, como usualmente se faz, que o pensamento filosófico liberta de todo seu conteúdo mítico a poesia mitológica e traduz seu teor restante em frios conceitos. O pensamento não consiste, aos olhos de Heidegger, na "desmitização" do mito, pois isso deixaria falsamente supor que o pensamento já existe, pronto, no interior da poesia e que bastaria portanto extraí-lo dela. Tal perspectiva, esclarece Heidegger, que é a da época das "Luzes", pertence à metafísica e anuncia-se aliás desde o aparecimento da filosofia, como mostra a posição adotada por Platão diante dos poetas. Que o pensamento não se identifique com o pensamento metafísico que é o de uma desmitização do poético, é precisamente o que atesta o pensamento grego inicial, o dos pré-socráticos ou dos trágicos.
Pois assim como não se trata de considerar que o homem e a natureza constituem domínios separados, é preciso considerar que a palavra (phthegma), de que se trata logo em seguida (verso 353), não é de modo algum uma propriedade do homem e pertence ela também, tanto quanto o mar e a terra, ao poder subjugador da phusis. A linguagem não é de fato uma criação do homem, e Heidegger recusa aqui traduzir o termo edidazato (verso 355) por "ensinou-se a si mesmo sem mestre", como faz por exemplo Pignarre, pois, explica, essa palavra "não significa: o homem inventou, mas: encontrou-se naquilo que o subjuga e só se encontrou a si mesmo enquanto poder de tal agir neste agir" (166; 171). Pois não há mar, terra e animal, ou seja, declausura do ente enquanto ente, senão pelo poder de um agir que não consiste para o homem em exercer um poder que só ele possuiria, mas ao contrário em entrar no ente para domar e ajustar seus poderes. Esse poder de agir, essa violência, é aquela pela qual o homem abre múltiplos caminhos no ente, e, como proclama alto Sófocles , só a morte pode lhe fazer frente. Mas esta, que o expõe definitivamente à ausência de lar, não é, como Heidegger mostrou em Ser e tempo , o que põe fim à existência, mas aquilo em que o homem se mantém constante e essencialmente [1], de modo que sua existência, seu ser-aí, é "die geschehende Un-heimlichkeit selbst", "o advento da ausência de lar ela mesma" (167; 172).
A morte é assim, enquanto tal, o limite interno do projeto poético do ser ao mesmo tempo que do próprio ser-homem. Por isso a continuação do coro consiste simplesmente na retomada do mesmo motivo fundamental, que é o do homem definido como deinotaton. Ora, o que caracteriza o poder de agir e a violência do homem é o que os gregos chamam tekhnè, palavra que, segundo Heidegger, não significa fabricação, mas saber. Pois o que define o saber é a visão para além do preexistente, a apreensão do ser para além do ente, a fim de trazê-lo à presença e à estabilidade numa obra. É isso que Heidegger na mesma época explica também em suas conferências sobre A origem da obra de arte: a obra de arte, que se deve portanto compreender a partir da essência da tekhnè grega, "põe em obra (er-wirkt) o ser num ente" (168; 173) de modo que nesta obra é a phusis mesma que vem ao aparecer. Ora, tal concepção da obra de arte, Heidegger a extrai inteiramente da poesia pensante de Hölderlin , o que reconhece de modo mais explícito nos cursos que lhe dedica de 1934 a 1942. Para Hölderlin , com efeito, o ser humano depende do todo, da natureza, mas inversamente, a natureza depende também do ser humano, pois só pode aparecer através de sua atividade poética. É isso que Hölderlin chama de "paradoxo" numa carta ao irmão datada de junho de 1799 onde afirma que "a necessidade formativa e artística (…) é um verdadeiro serviço que os homens prestam à natureza". A natureza não está sob dominação do homem, que nunca pode submetê-la a seu poder, mas necessita todavia do homem, a quem dá a missão de favorecer e completar seu próprio desenvolvimento. Pois ela não pode aparecer por si mesma, sua força não pode manifestar-se de modo imediato, requer para isso algo mais fraco que ela, a saber, a arte do homem. É precisamente isso que Hölderlin explica no breve texto intitulado "O significado das tragédias", texto tardio provavelmente redigido em 1803, época em que trabalhava na edição de suas traduções das tragédias de Sófocles . O homem é assim duplamente deinon, não só porque pertence ao domínio do ente, que é em si mesmo o poder subjugador, mas também porque, ao trazer à abertura o poder do ente, faz ele mesmo uso de poder contra o que assim o subjuga. Compreende-se então que possa ser dito to deinotaton, "o que há de mais violento". Ora, o mesmo ocorre para Heidegger: o poder de agir e a violência do homem é inteiramente emprestado ao da phusis, que assim volta contra ela mesma. Trata-se portanto na tekhnè, no saber, de um combate interno à própria phusis que, vindo ao aparecer na obra, é assim arrancada de seu fechamento inicial.
Mas o termo deinon remete também e antes de tudo ao próprio poder subjugador, à phusis. Aqui não é ao termo tekhnè, mas a dikè que os gregos recorrem para caracterizá-la. Não se trata todavia de traduzir esse termo, como usualmente se faz, por "justiça", reduzindo assim seu significado ao domínio jurídico-moral, mas sim, restituindo-lhe assim seu conteúdo metafísico fundamental, por Fug, ajustamento e ordenação [2], no duplo sentido ativo e passivo deste termo: o que ajusta e o que é ajustado, das fügende Gefüge (169; 174). Desse modo deu-se conta do duplo sentido do deinon, que remete ao mesmo tempo ao poder de agir e à violência do homem e ao poder subjugador da phusis. Assim tekhnè e dikè se enfrentam não como duas coisas separadas, mas como alternância entre levante da tekhnè contra a dikè, o ajustamento que, de seu lado, dispõe da tekhnè.
O que aparece portanto claramente agora é a relação recíproca entre os dois sentidos anteriormente distinguidos do deinon, o poder subjugador da phusis e a violência do agir humano. A ruptura (Riss) pela qual o ser é posto em obra no ente não permite todavia ao homem, como Hölderlin bem compreendeu, nenhum domínio de seu poder subjugador. É o que Heidegger, citando outro dos grandes trágicos, Ésquilo, já destacava em 1933 em seu Discurso de Reitorado. Propunha-se ali determinar a essência da ciência, e é para tanto que citava o verso 514 do Prometeu Acorrentado: tekhnè d’anagkès asthenestera makrô, que traduzia assim: "mas o saber é bem mais fraco que a necessidade". E falava a esse respeito já da "fraqueza criadora do saber" que, porque falha ao operar (wirklich versagt), permite justamente ao ente abrir-se "em sua insondável imutabilidade". Aqui, em 1935, destaca ainda mais fortemente que todo domínio pela violência do poder subjugador da phusis é ou vitória ou derrota, mas que ambas estão ameaçadas de ruína, pois aquele que faz uso da violência, o criador, aquele que tenta obter o ser pela luta, mantém-se constantemente no risco (tolma, verso 371) e deve necessariamente expor-se à ameaça do desajustamento (Un-gefüge) e da desordenação (Unfug).
[1] Cf. SZ, § 48, p. 245: "O findar a que remete a morte não significa um ser-ao-fim do Dasein, mas um ser para o fim deste ente. A morte é um modo de ser que o Dasein assume assim que é: ’Assim que um homem vem à vida, já está velho o bastante para morrer’"
[2] Que Fug ou Fuge seja o nome mesmo do ser enquanto phusis, é o que atestam os textos de meados dos anos 1930 e em particular esta passagem do curso do semestre de inverno 1941-42, Hölderlins Hymnen «Andenken», (Ga 52), p. 100: "Chamamos ajustamento (Fuge) o ser no qual todo ente se desdobra"