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Bornheim (1979) – Filosofia e Realidade Nacional
terça-feira 18 de março de 2025, por
Excerto de "O Idiota e o Espírito Objetivo".
O problema de uma filosofia especificamente nacional, que encontre no caráter autóctone o seu critério de autenticidade (ia dizer validez), vem sendo reiteradamente colocado no Terceiro Mundo. Evidentemente, esse desiderato inscreve-se num complexo bem mais vasto de questões: trata-se do processo que pretende superar uma situação de inferioridade cultural através da afirmação de uma "linguagem" nacional. E nacional quer dizer, entre outras coisas, e principalmente, o estabelecimento do estatuto de uma cultura não dependente, calcada na reivindicação de uma autonomia nacional, mesmo que não excludente. Assim, o que estaria em causa seria o ser mesmo destes povos, a escuta de sua índole mais profunda, única garantia para conseguir alicerçar a construção de um perfil verdadeiramente nacional. E caberia ao comprometimento dos conceitos filosóficos traduzir a riqueza da realidade dos diversos países em categorias racionais inconfundíveis.
Deveria haver, portanto, uma filosofia brasileira, provida de categorias que desvendassem aquilo que o País é, a sua verdade. Ao menos à primeira vista, tal exigência sequer parece oferecer originalidade maior: por que um determinado país não poderia expressar através de conceitos filosóficos os seus problemas, as suas aporias, o seu modo específico de ser? Esse modo de ser talvez se pudesse constituir em fonte inspiradora para a elaboração de uma filosofia, ou de uma diversidade de doutrinas filosóficas. E, ao menos aparentemente, os exemplos existem: basta seguir com o olhar, em qualquer biblioteca, o que se lê na lombada dos livros, para surpreender logo obras sobre filosofia grega, alemã, francesa, inglesa. É bem verdade que o elenco não chega a ser muito extenso, a não ser que se pague o pesado tributo de suspender os critérios qualitativos. Mas, seja como for, os exemplos indubitavelmente existem.
A questão inicial que não se deixa elidir é a seguinte: trata-se apenas de ter uma filosofia, entre tantas que existem, ou muito mais de ser uma filosofia precisa, de tal modo que um determinado país encontrasse como que o seu espelho intelectual numa bem urdida trama de categorias? Com outras palavras: busca-se uma filosofia adjetivamente nacional ou exige-se que ela seja substantivamente nacional? E aqui aponta outra questão preliminar: a Filosofia deve ser nacional? Em que sentido? A sua autenticidade prende-se às fronteiras do moderno conceito de Estado-nação? E o que pensar dos gregos? O grande trunfo de seu pensamento não consistiu em estabelecer, e pela primeira vez na história do homem, uma episteme transregional? Sem dúvida, e a ponto de chegar a impor-se como um imbatível princípio de tirania a todo o mundo ocidental. Mesmo se essa tirania vem sendo hoje acerbamente criticada em muitas de suas dimensões, cabe perguntar pelas vantagens de substituir a universalidade antiga — e sua superação parece ser fatal — por um particularismo que em certos autores atinge o extremo de erigir-se numa espécie de defesa tácita da ignorância.
Convém prosseguir nesta problematização. Existe uma filosofia alemã. Ela o é adjetivamente ou substantivamente? No primeiro caso, parece que se marginaliza a questão. E no segundo, sobrevêm a suspeita de que seria excessivamente generoso colocar sob um mesmo epíteto pensamentos tão díspares quanto os de Kant , Hegel , Marx e Heidegger. Mas há autores que pretendem que estas filosofias todas sejam representativas de um mesmo espírito, de uma mesma índole profunda, que se contraporia, por exemplo, à dos franceses. Por aí se intentaria fazer da consciência histórica, por exemplo, algo como uma especialidade alemã: os franceses sequer se revelariam sensíveis a tudo o que se refere à Filosofia da História. Mas é fácil perceber que, ao menos para o importantíssimo exemplo citado, esse tipo de particularização ter mina por incidir no seu exato oposto, e gera qualquer coisa como a germanização do mundo, decorrência fatal da miopia do ponto de partida. Do mesmo modo também com este outro conceito introduzido pelo pensamento alemão, o de Volksgeist, espírito do povo. Através do abandono de sua conotação originariamente romântica e da reinterpretação que levou a ver nele a expressão de uma determinada infra-estrutura, a noção de Volksgeist torna-se indicativa de certos problemas. Assim, por exemplo, esse conceito surge no momento de ascensão plenamente autoconfiante das nações burguesas, ou ao menos, como no caso da Alemanha, da consciência da necessidade de ascensão. Trata-se de uma ideia que não pode ser compreendida sem o advento dessa outra realidade que é o Estado na acepção moderna; tudo dentro de uma delineação configurada pelo sucesso do empreendimento burguês.
Um aceno à posição de um Fichte permite-nos avançar no entendimento do problema. Ancorado na pujança da filosofia idealista alemã da época, Fichte recorria, sem nenhum constrangimento ou pretensão de originalidade maior, a conceitos como os de cosmopolita ou cidadão do mundo. Assim é que perguntava: "Qual é a pátria do europeu cristão verdadeiramente educado?" [1] Realmente, o pressuposto básico da tese de Fichte , relativamente à sua concepção da História, encontra-se no conceito de cidadão do mundo, mesmo que esse mundo apresente o exato tamanho da Europa burguesa. As pretensões nacionalistas constituem para ele as antípodas de qualquer autenticidade do sentido histórico. Os Discursos Sobre a Nação Alemã encontram o seu fundamento no ensaio escrito três anos antes, Características da Época Contemporânea, em que o autor se declara Weltbuerger, cidadão do mundo. Todavia, os conceitos de cosmopolitismo e patriotismo se pressupõem: o espírito cosmopolita só alcança realizar-se através da nação, e esta, longe de qualquer particularismo, só logra deparar com a sua vocação auto-realizadora ao nível do cidadão do mundo. [2]
Simplificando um pouco os dados da antítese, poderíamos dizer que, na perspectiva do idealista alemão, o peso maior cabe ao cosmopolita, já que é só nele que o particularismo nacional consegue descobrir a sua medida e a sua própria possibilidade de ser, de desenvolver-se de acordo com o sentido da História. Bem diversa é a posição encontradiça hoje, ao menos em certo número de países do Terceiro Mundo, nos quais reivindica-se um tipo de cultura e de pensamento que arranca do particular, que no particular encontra toda a sua medida e sua razão exclusiva de ser; aqui, os critérios de universalidade e mesmo o reconhecimento universal passam a segundo plano. O esquema, repito, simplifica: de um lado, o critério do espírito cosmopolita, e de outro, o da particularidade nacional e mesmo regional. É fácil perceber, aliás, que essa antítese continua impondo-se como uma espécie de divisor de águas nas manifestações culturais de nossa época. E não menos fácil é constatar que há atualmente uma mudança de peso no valor dos termos que compõem a antítese: os privilégios do cidadão do mundo desfalecem em face da força constringente do particular. De resto, a antítese encontra um perfil no espaço e no tempo: a burguesia expansionista dos países capitalistas contrapõe-se a esse seu produto extremo, os países do Terceiro Mundo, que tudo prognosticava condenados à inércia, mas que terminam por erguer a voz de sua especificidade. Observe-se, ainda, que a reivindicação de uma filosofia nacional se faz apanágio hoje de países subdesenvolvidos, já que inexiste nos mais adiantados, tenham eles ou não produzido uma filosofia original.
Perguntemos mais uma vez: o pensamento que se desenvolve não apenas dentro de certas fronteiras, mas inclusive no espírito de submissão à presença de bem determinadas exigências políticas, é nacional em que sentido? Os problemas colocados por um Comte ou por um Marx são simplesmente franceses, alemães? E o que pensar disso tudo numa época como a nossa, em que a consciência do particular tende a se defrontar, a passos cada vez mais acelerados, com a consciência que obrigatoriamente temos do mundo? Na largueza desse horizonte, não se faz cada vez mais anacrônico falar em filosofia nacional ou em espírito da filosofia alemã? Dir-se-á, e não sem fortes motivos, que justamente a tendência ao nivelamento e à uniformidade que caracterizam os meios de comunicação da "aldeia global" levam a uma necessária valorização das diferenças, das particularidades. E não teriam razão os autores que asseveram que o marxismo deve ser repensado em função das coordenadas de nossa realidade, não bastando repeti-lo como se se tratasse de uma teoria que encontra em seu próprio bojo os critérios de sua validez?
Iniciemos com algumas considerações em torno do conceito de cultura, posto que nele encontra a Filosofia o seu espaço mais amplo. Cumpre mesmo salientar que toda a problemática de uma filosofia nacional, de sua possibilidade e de seu sentido, assenta em um conceito bem determinado de cultura, e que vem sendo elaborado pelos antropólogos há apenas alguns decênios. Refiro-me aqui ao conceito diferencial de cultura, enquanto oposto ao seu conceito genérico.
O conceito diferencial repousa sobre a tardia e desconcertante descoberta de que existe uma pluralidade de culturas, de que uma cultura determinada não poderia servir de padrão para julgar outras culturas. O conceito diferencial de cultura surgiu justamente desse impulso de perspicaz atenção em face da surpreendente variedade de modos de organização da vida social — como se tudo se tivesse instaurado a partir de uma fragmentação profunda da realidade. Ora, esse entusiasmo diferencialista, de gravíssimas e insuperáveis consequências, não demorou em despertar a sua reação, o seu conceito contrário. Realmente, o conceito genérico de cultura desenvolveu-se a partir do inconformismo gerado pela ênfase excessiva atribuída à separação entre os mundos culturais. Assim, seria imprescindível descobrir os elementos que embasassem o reconhecimento de uma certa unidade do gênero humano: em todas as latitudes, o homem e o humano deveriam apresentar uma fronteira comum, mesmo que relativa, fronteira esta que os distinguisse de tudo o que não é humano. Dever-se-ia então admitir uma conaturalidade abrangente, a garantir a dimensão genérica do humano para além de toda a diversidade imaginável.
A mais recente resposta dada ao problema da cultura enquanto qualidade genérica está sem dúvida no estruturalismo: o atributo universal da Humanidade residiria em sua peculiar capacidade de impor novas estruturas ao mundo. Isso, como adverte Bauman [3], se considerarmos o conceito de estrutura em sentido lato, como o que distingue o homem de toda outra espécie animal, ou simplesmente como o contrário da "desordem". A justeza "genérica" da tese parece inegável, ainda que suscite de imediato a impressão de que, se consegue destacar um elemento comum a todas as culturas, peca por um formalismo que termina por desconhecer estas mesmas culturas. Essa reserva, porém, deve ser formulada em termos mais precisos. É que a caça à "ordem das ordens", na busca de categorias sempre mais universais, se decorre de uma inquietação legítima, tende a incidir no anonimato do indiferençado. As linhas conclusivas do ensaio de Lévi-Strauss A Estrutura dos Mitos valem por uma definição do desiderato último perseguido pelo autor: "Talvez descobriremos um dia que a mesma lógica age no pensamento mítico e no pensamento científico, e que o homem sempre pensou do mesmo modo. O progresso — se é que então se possa aplicar o termo — não teria tido por teatro a consciência, e sim o mundo, no qual a humanidade dotada de faculdades constantes ter-se-ia encontrado, no curso de sua longa história, continuamente às voltas com novos objetos". [4]
Seja como for, a tese estruturalista consegue corrigir e complementar a orientação atenta para o exclusivismo do diferencial, ao menos no sentido de que a fragmentação absoluta que ronda as perquirições diferencialistas acarretaria o perigo de esbarrar no absurdo da incomunicabilidade, de esfarelar o mundo numa sequência de ilhas justapostas. Acontece, entretanto, que a pluralidade das culturas realmente coloca problemas seriíssimos, de uma relevância que já não pode ser ignorada, visto que cada cultura apresenta certa originalidade, certa irredutibilidade, e o reconhecimento desse fato tornou-se como que "constitutivo" da consciência ocidental. A vantagem que levam os diferencialistas sobre os seus opositores generalistas decorre justamente de que, se é verdade que a distinção do homem em face do animal reside na sua capacidade de construir estruturas novas, é a exploração desse elemento novo através da variedade de formas que ele assume que vai instituir o modo de ser de cada cultura; toda possível originalidade arrima-se à inventividade dos modos peculiares de elaboração daquele elemento novo. Assim, o conceito diferencial mostra cada cultura enquanto ela ostenta o diferente, o único, o original, o irredutível — o novo.
O pressuposto fundamental da postura diferencialista encontra-se na consciência histórica. Era já em nome da história que o mais ferrenho adversário dos universais culturais, Franz Boas, recomendava aos seus discípulos fixarem-se nas entidades culturais individualizadas, consideradas isoladamente, atitude esta que Bauman julga até autodestrutiva, dada a impossibilidade de dispensar o recurso aos "modelos sistemáticos". [5] Todavia, o excesso não deixa de ser indicativo de todo um tipo de sensibilidade, que se faz aliciar pelo respeito incondicional frente ao mais remoto reduto alienígena — e, todas as contas feitas, tal é a postura que realmente importa, ainda que em prejuízo de um tipo preestabelecido de cientificidade. Um marco importante na evolução do conceito diferencialista tomado em sua conotação histórica foram as investigações publicadas em 1934 por Ruth Benedict, em Patterns of Culture. Ela afirma, nesta obra, que os pressupostos biológicos da cultura humana sem dúvida existem, mas que de modo geral eles são "sem importância" [6], e com isto queria sublinhar que são os fatores históricos que constituem os elementos dinâmicos, propulsores da cultura.
Ainda que de modo sumário, convém chamar a atenção para a extrema relevância dessa conquista histórica que representa a elaboração do conceito diferencial da cultura.
Sabe-se que os gregos eram donos de uma aguda consciência de sua diferença, a ponto de se considerarem superiores. Num texto atribuído a Platão , mas escrito provavelmente por Felipo de Opunte, lê-se que "o que nós, gregos, tomamos aos bárbaros, nós o aperfeiçoamos". (Epinomis, 987e) Já é significativo o fato de que a palavra "bárbaro" queira dizer em grego estrangeiro e também bárbaro, grosseiro,, ignorante, selvagem. Não admira, por isso mesmo, que Aristóteles reputasse certos homens por natureza inferiores, o que caracterizaria, segundo ele, justamente a situação dos bárbaros, e justificaria o fato de poderem ser usados como escravos. Cabe mesmo afirmar que os gregos concebiam a Grécia como uma ilha de luz cercada pela escuridão da barbárie por todos os lados. Mas é importante acrescentar que tal sentimento de superioridade não os levava a ignorar os bárbaros: a frase platônica citada fala em aperfeiçoar o que se toma aos estrangeiros — refere-se a uma modalidade da praxis. Aristóteles , por exemplo, não se limitou a estudar as constituições dos Estados gregos, mas também as dos gentios, chegando mesmo a escrever um ensaio sobre o assunto, intitulado Costumes dos Bárbaros. Esse espírito de abertura, todavia, era como que empanado por aquele sentimento de superioridade, sentimento que talvez tenha tolhido nos gregos a possibilidade de colocar o problema das diferenças culturais como problema: o bárbaro é o exótico, o diferente, e exatamente por isso não chega a ser objeto de um questionamento radical. Entende-se, já por essa razão, que os gregos tenham desenvolvido conceitos como os de verdade, de beleza, de justiça, com desatenção absoluta à experiência original de outros povos.
Esse tipo de mentalidade redutora também pode ser afirmado, de resto, do cristianismo medieval: para o cristão, o estrangeiro, mesmo mais tarde, no tempo das grandes descobertas, não ultrapassava os limites da curiosidade exótica e até do simples desinteresse. Sabe-se, por exemplo, que os numerosos escritos deixados por peregrinos que visitaram a Terra Santa em fins da Idade Média nada traduzem que se assemelhe a um choque cultural: os hábitos e costumes de uma cultura estranha não conseguiam suscitar a consciência dos contrastes, e tudo se esfumaçava numa quase indiferença. [7] É que a palavra cultura não existia no plural, não podendo verificar-se em consequência, em todo o passado, o que hoje pertence ao acervo das polêmicas sabidas: as do conflito entre culturas. Vale a pena transpor aqui, a título de mais um exemplo, a descrição de um "idílio da floresta virgem brasileira" transplantado para a civilizada Europa: "No ano de 1550, o rei Henrique II entrou na cidade marítima de Rouen por uma alameda de árvores, cujos troncos estavam pintados de vermelho, ’como no Brasil’. Macacos e papagaios exibiam-se sobre as árvores, e de seus topos balançavam cabanas de junco e ramos. Sob as árvores agitavam-se trezentos homens, bronzeados de barro, ’sem mesmo cobrirem as partes que a natureza ordena cobrir — exibiam-se segundo os modos dos selvagens da América’. Cinquenta deles eram autênticos, especialmente trazidos de sua pátria para a festa. Alguns sacudiam-se em redes, outros serravam madeira e com ela carregavam canoas; e então, de repente, um segundo grupo de selvagens caía sobre eles em altos berros, dando início a uma luta terrível, com flechas e tacapes". [8] Percebe-se por aí, sem dificuldade, que esse exotismo do espetáculo ajustava-se à forma brutal de desrespeito que constituía a própria base do missionário cristão clássico.
Assim, tudo se passava a partir de um conceito homogêneo de cultura, ou de um pré-conceito postulador de uma verdade à qual tudo o que lhe era estranho deveria curvar-se. Em face de uma tradição várias vezes milenar, não causa espécie que esse conceito homogêneo de cultura, de modo implícito ou abertamente, continue a apresentar as suas sequelas, com representantes arvorados numa luta de vida ou de morte, já que o que está em jogo é a própria sobrevivência da tradição cultural do Ocidente.
Tomo um exemplo da Filosofia: Edmundo Husserl . Obviamente, o ideal da "Filosofia como ciência rigorosa" preconizado pelo pai da fenomenologia, visto numa perspectiva negativa, só pode alcançar a sua plena consecução através da exclusão de tudo aquilo que se revele incompatível com o ideal de rigorosidade. Sabe-se que, já para o primeiro Husserl , o reino daquilo que se opõe à Filosofia é, como haviam visto os gregos, constituído pela doxa, pelo mundo da opinião; as próprias ciências particulares inserem-se no plano que Husserl chama de "postura espiritual natural" [9], e devem fundamentar-se no rigor maior da "ciência filosófica". Esta busca impenitente do rigorismo encontra o seu corolário na exclusão necessária do "outro", de tudo aquilo que possa perturbar o reino da certeza. E é ao menos interessante observar que esse "outro" evolui em Husserl a ponto de terminar configurando, em sua grande última obra, A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental, nada menos que a inteireza do mundo enquanto contraposto à "humanidade europeia". Trata-se, nesta obra, de estabelecer a legitimidade do estranho ideal de uma "filosofia auto-normativa através de um método apodítico". E assevera Husserl que, dessa forma, "decidir-se-ia se a humanidade europeia traz em si uma Ideia absoluta, ou se ela é apenas um tipo antropológico empírico como a ’China’ ou a ’índia’; e mais ainda: se o espetáculo de europeização de todas as humanidades estranhas manifesta em si a vigência de um sentido absoluto, que pertence ao sentido do mundo e não a um sem-sentido histórico desse mesmo mundo". [10] Assim, a humilde doxa dos gregos passa a assumir as dimensões do mundo, constituindo-se na ameaça de um "outro" temível, contra o qual devem bater-se estes "funcionários da Humanidade" que são os filósofos. [11]
Mas a Filosofia não é apenas isso. Foi somente com a ascensão da burguesia, com o seu expansionismo subsequente e com as profundas transformações sociais daí decorrentes, que introduziu-se aos poucos a consciência das diferenças culturais, começando-se então a falar até mesmo em relativismo cultural. Do ponto de vista filosófico, a grande virada anuncia-se já em 1690, com John Locke. No seu Ensaio Sobre o Entendimento Humano, pergunta incisivamente cético: "Onde está aquela verdade prática universalmente aceita, isenta de qualquer dúvida ou questão como deveria sê-lo se fosse inata?" [12] Evidentemente, Locke ainda não poderia servir-se dos argumentos do antropólogo: a diferença, para ele, está nos ladrões, nos assaltantes, nos vilões. Não importa: a esquina tinha sido dobrada, ou começava a sê-lo. E com alguma tardança, mas de modo implacável, a consciência da diferença passou a invadir os mais remotos recantos do mundo, indo namoriscar a última das tribos.
A esse propósito, Darcy Ribeiro fala em "compreensão solidária e niveladora". [13] Ora, é ao abrigo desse segundo adjetivo que se verificam os principais excessos dos diferencialistas, a começar pelo grave equívoco apontado por Darcy Ribeiro: "as culturas não são superiores nem inferiores, senão diferentes". [14] Assim, as comparações valorativas ficam interditadas, e escorrega-se facilmente para as incoerências do relativismo cultural. Outro ingênuo preconceito que se introduz está na valorização das culturas na medida em que constituem entidades mais ou menos fechadas sobre si próprias. Parte-se então do pressuposto de que quanto mais isolada for uma determinada cultura, maior a garantia de sua autenticidade, de sua originalidade profunda — o que se casa perfeitamente bem com uma ideologia nostálgica, com aquilo que Darcy Ribeiro chama de "apreciação refinada do arcaico". [15]
Como é fácil perceber, a situação apresenta-se entremeada de paradoxos de toda ordem. Seria completamente descabido pretender que a descoberta das diferenças não represente um avanço, mesmo que o seu pano de fundo implique nada menos que a crise do mundo ocidental. O surto das diferenças traz consigo um necessário alargamento da consciência humana, o que leva a concluir que a consciência das diferenças, universalizando-se, transcende todas as diferenças. Mas esse transcender também se revela ambíguo, porque, se de um lado empresta um novo estatuto ao humano, inaugurando todo um processo de reeducação, de outro tende a desvirtuar o espírito crítico, instaurando, com aquele alargamento, uma postura que chega a caracterizar-se pela ausência de critérios: isso não vale apenas para o relativismo teorético, já que consegue intrometer-se em certos rincões da vida prática, a ponto de se passar a crer, candidamente, na possibilidade de conversão pacífica ao primeiro budismo que aparece, ou de se encontrar uma saída para os impasses ocidentais na inocência nativa das ilhas dos Mares do Sul, como, por exemplo, o pretende um filme como Tabu, de Murnau. Essa tendência a um regional extraviado acaba se fazendo excludente de todo o resto, incidindo no oposto de sua premissa possibilitadora. E o paradoxo maior está justamente no fato de que esse exclusivismo exacerbado se manifesta em um tempo que se distingue pelos processos de unificação do mundo, uma unificação que se alastra de modo sempre mais avassalador.
Paradoxo apenas aparente, porquanto, como já acentuei, é evidente que, se a consciência da diferença leva a transcender as diferenças, por outro lado a "aldeia global" suscita precisamente a defesa das diferenças, em face da ameaça de um mundo excessivamente uniforme e nivelador. A questão se concentra de modo especialmente agudo neste ponto: como manter vivas dentro da "aldeia global" as diferenças, as peculiaridades? Porque o progresso tecnológico tornou-se irreversível, e isso em escala mundial, o que deve ser afirmado também das transformações por que vêm passando as formas de organização social em decorrência das crises econômicas. E o que restaria para a cultura? O quintal de fundos do regional? A propósito, faz-se necessário observar que, em certas defesas de suas manifestações regionais ou nacionais, o conceito de cultura sofre um processo de estreitamento, que termina bitolando a boa intenção dos seus promotores. É que, à força de realçar o diferente, acaba-se por excluir a quase totalidade das ciências do âmbito do que se considera como sendo a cultura, e de fato, ignoram-se integralmente as Ciências da Natureza — tudo se passa como se a ciência devesse ser banida do que se concebe por cultura. Vê-se por quê: o saber racional, por definição, transcende qualquer tipo de regionalismo, mesmo quando faz a defesa da cultura diferencial.
O traço que deve ser ressaltado em toda essa essencial transformação do conceito de cultura, e que permite aceder à mudança de seu sentido, reside no tipo de comércio que se estabelece entre a dimensão cosmopolita da cultura e a sua vinculação ao regional, ou ao nacional. Em todo o passado do Ocidente, o cosmopolita e o regional constituíam uma realidade homogênea, fazendo com que uma determinada cultura — a grega, por exemplo — pudesse pretender-se a cultura. Não existia nenhuma distância separatória entre os dois extremos, cada ponta tocava imediatamente a outra. Isso explica a habitual cegueira do Ocidente, que se manifestava como indiferença ou como intolerância em relação a todo o outro, a tudo o que correspondesse a um tipo de experiência diferente. É apenas em nosso tempo que essa perfeita homogeneidade começa a descoser-se, tornando-se um problema inaudito. Assim, a identificação passiva entre o elemento cosmopolita e o regional incide numa espécie de processo de desagregação, como se se tratasse até mesmo de termos incompatíveis. Que Fichte , como aventei acima, tenha sido, tanto quanto vejo, o primeiro a colocar como problema a oposição entre o cosmopolita e o patriota, ou melhor, entre o mau cosmopolita e o mau patriota, não deixa de ser significativo: a despeito de suas intenções, a questão evoluiria no sentido oposto ao de sua tese. Foi essa dissociação profunda, coincidente com a crise dos valores ocidentais, que possibilitou a gestação dos conceitos diferencial e genérico de cultura. O desafio está exatamente na superação dos opostos — não na superação dos dois conceitos de cultura, problema essencialmente derivado, segundo, e sim no sentido em que possa apresentar a conciliação do cosmopolita e do regional.
Retomando aos poucos o nosso tema, observo que a reivindicação de uma filosofia nacional se faz ouvir precisamente em países ocidentais que constituem o chamado Terceiro Mundo — possivelmente apenas nos países que integram a América Latina. Que os Estados Unidos sejam visceralmente caudatários do pensamento europeu, e isso exatamente nas correntes mais representativas da filosofia americana — o pragmatismo e o neopositivismo —, parece não colocar problemas para os americanos. Entre nós, ao contrário, a simples presença de um pensamento alienígena desperta qualquer coisa como um sentimento de inferioridade, um certo desconforto que leva compulsoriamente a um infindável processo de autojustificação, fazendo ressuscitar um velho cadáver ao qual as novas discussões sobre o tema continuam recusando o atestado de óbito: é a ideia de que o brasileiro é inapto para a Filosofia. Mas seria necessário entender que tal assertiva, mesmo na hipótese de ser "correta", não apresenta sentido nenhum, e expressa simplesmente a convicção de algum marquês ressentido. Não estou querendo dizer que a bonança com que os países desenvolvidos do mundo capitalista aceitam a mentalidade positivista constitua um desiderato a ser alcançado, mesmo porque esse pensamento apresenta implicações ideológicas em nada desejáveis. E também já se mostrou que a ideologia desenvolvimentista que impregnou o Brasil não passa de expressão da vontade da classe dominante. [16]
Toda a problemática das relações entre Filosofia e realidade nacional acaba girando, necessariamente, em torno do conceito de diferença. E é apenas então que o problema pode começar a ser equacionado.
A consciência da diferença nada tem de pacificadora, já que ela configura precipuamente um modo de apreender os problemas, sem deixar-se sucumbir por encantamentos atávicos. A diferença fundamental, que empresta certa solidariedade a todo um conjunto de países, está justamente na situação de subdesenvolvimento: esta é a situação de base, que de algum modo afeta todas as relações entre a infra e a supra-estrutura. Ora, falar em Filosofia dentro de tal contexto leva inevitavelmente a justificar a instauração de uma postura fundamentalmente crítica em face do subdesenvolvimento e desse seu produto atual que é a ideologia desenvolvimentista. No plano filosófico, isso deveria provocar, por exemplo, a crítica daquele positivismo vinculado a essa ideologia, o que não deve ser confundido com um outro problema, pré-desenvolvimentista, que é o da presença do positivismo clássico no Brasil, e ao qual me referirei mais adiante. Por ora, quero salientar apenas que a consciência da diferença nada tem a ver com a mística romântica das origens, como se se tratasse de captar a inefabilidade de uma essência brasileira, qualquer coisa como uma natureza da qual tudo dependeria e que exigisse fidelidade incondicional. A legitimidade dos produtos culturais seria então medida por uma espécie de processo de adaptação às avessas, no saber escutar uma origem prístina e tentar o desvelamento de uma nebulosa demiúrgica, critério de tudo e de todos. Aí residiria a autenticidade nacional: a origem estaria no cultivo da memória. E realmente, através da evolução da arte, por exemplo, condensa-se aos poucos um certo caráter nacional. Entretanto, é exatamente neste ponto que começa a verificar-se a ambiguidade que informa a consciência da diferença. Porque esse caráter nacional apresenta-se muito mais como o que deve ser construído, como tarefa criativa a ser realizada, do que como desvelamento de uma realidade anterior e à qual bastaria adaptar-se. Pois sucede que não existe essência prefigurada, e a adaptação pode ser, como normalmente é, o oposto simétrico da criatividade: esta se desadapta para inventar um mundo outro.
Vale dizer que a origem não está simplesmente no passado, na diferença enquanto já constituída; se a verdade fosse o mero passado, então a história seria como "um cadáver abandonado ao seu impulso vital", para usar a expressão de Hegel . O condicionamento que representa o passado instala precisamente aquela ambiguidade da diferença: o condicionamento encontra o seu sentido no ato de sua superação, e esse ato coincide com a própria invenção da diferença, através da expansão das modalidades específicas da praxis. A dimensão que importa salientar na consciência da diferença reside justamente nesse seu caráter aberto, que substitui a mera constatação e as suas veleidades nostálgicas pela criatividade e pelo fomento das condições que tornam o espírito criativo exequível. Sublinhe-se que a criação é necessariamente crítica, sempre inconformada com os condicionamentos que, abandonados a si próprios, tornam-se fontes de estagnação. Mas, além de crítico, o espírito criativo configura em sua própria gênese um tipo bem determinado de praxis: a criação não brota das queixas de um dever-ser que permanece literalmente abstrato, e sim do comprometimento da própria praxis. A elaboração da crítica filosófica constitui antes de tudo uma modalidade particular da praxis. Não existe um idioma originário: existe a construção de um idioma a partir de uma origem cega.
É dentro deste contexto que cabe equacionar o problema das relações entre Filosofia e realidade nacional. Ora, os conceitos de Filosofia e de realidade nacional parecem contrapor-se a ponto de se excluírem. A Filosofia, por definição, como todo pensamento racional, sente-se em casa no plano do universal, os seus conceitos se querem transregionais. Realmente, a análise do singular enquanto tal não poderia por si mesma apresentar qualificações de nível filosófico: a singularidade, para que chegue a ser do interesse da Filosofia, deve expressar de algum modo alguma forma de universalidade, e é somente porque a universalidade se encontra por assim dizer inscrita na singularidade que o labor filosófico consegue ancorar-se no singular. A realidade nacional, por sua vez, delimita uma singularidade; aí, tudo se passa como se fôssemos o oposto da universalidade. De fato, ao nível do simplesmente singular tudo parece brotar de uma contingência radical, que com o tempo se acresce por dentro de si mesma até formar um rosto nacional, nunca definitivo — e topamos com uma diferença perpetuamente inacabada, e no entanto inconfundível.
Evidentemente, pode-se elaborar uma teoria da realidade nacional — uma teoria, isto é: produzir uma visão interpretativa dessa realidade, seja em seus aspectos parciais ou pela elucidação de sua globalidade. Mas onde encontra essa teoria os seus parâmetros? Em diversas ciências, a começar pela Antropologia, pela Economia, pela Sociologia. E dentro deste contexto, em que lugar conseguiria acotovelar-se a Filosofia? Poder-se-ia propor, esgueirando-se pela tangente do problema, que a Filosofia daria o seu recado na discussão da metodologia daquelas diversas ciências. Obviamente, contudo, isso já nada apresenta de propriamente nacional. Mas então, qual seria o ponto de incidência entre a Filosofia e a realidade nacional?
Se olharmos à nossa volta, constataremos que existe um certo número de pessoas que se dedicam, em salas de aula e na reclusão de bibliotecas, ao exercício das ideias filosóficas. É bem verdade que a sua situação não é muito confortável. Por exemplo: muitas delas empenham-se em mostrar que o mundo precisa de Filosofia — empenho que não deixa de ser o índice de uma situação um tanto inquietante, e bem mais para a Filosofia do que para o mundo. Menos do que possa parecer pelas razões fingidas por um Flaubert — "o que será de nós quando tiverem concluído a tradução de Hegel ?" —, e sim, muito mais, porque é realmente difícil estabelecer qual possa ser o lugar da Filosofia. Não importa: como o seu ensino sempre se fez em condições mais ou menos precárias, a ponto de ser, como hoje, praticamente alijado das escolas, urge reivindicar a inclusão da Filosofia nos currículos. Aprioristicamente de acordo. A questão é: por quê? Não pretendo aqui adentrar-me no problema, mas é fácil mostrar que os males da Filosofia começam por ela mesma. Ou pelo que dela se faz.
Assim, o argumento tradicionalmente mais usual para justificar o aprendizado da Filosofia consiste em dizer que ela ensina a pensar. E a Iniciação à Filosofia se fazia, e ainda se faz, através da assimilação das regras da Lógica de Aristóteles . Aprendia-se, portanto, a grande Identidade — o A que tropeça em si próprio —, ou seja: não se aprendia nada. E transmitia-se uma imagem totalmente falsa da Filosofia, sem vinculação sofrida com o mundo em que vivemos. Realmente, como ensinar a pensar a realidade se não se embrenha o pensamento nas contradições que urdem a própria tessitura do real? E qual o interesse que se esconde nesse cuidado em apassivar o pensamento, subjugando-o à lógica da identidade e fechando-lhe os olhos para as contradições de toda ordem que quase devastam o homem? Com tal lógica, pensase a partir do quê? Para quê?
Hoje ouve-se com frequência um outro tipo de argumentação para validar a presença da Filosofia nos currículos. É que ela lançaria as bases imprescindíveis de uma formação humanística, bases essas que estariam atualmente prejudicadas pelos excessos da informação tecnológica e científica. E no zelo de sanar esse "desvio", passa-se a arrolar a Filosofia entre as Humanidades. Ora, força-se por aí um tipo de parentesco e toda uma forma de diálogo que não está muito de acordo com a tradição filosófica dos últimos séculos, já que a Filosofia se vem nutrindo essencialmente de um diálogo com as Ciências da Natureza. De fato, apenas em nosso tempo surgem correntes, como o vitalismo e o historicismo, que minimizam e até mesmo ignoram a própria exequibilidade de um diálogo com as ciências, posição esta que conheceu grande desenvolvimento com muitos dos fenomenólogos — ainda que o pensamento do próprio Husserl se tenha desdobrado sob a égide do ideal da ciência rigorosa — e principalmente com os existencialistas, sem esquecer Heidegger.
Evidentemente, a tradição, por si mesma, não se impõe como um argumento contra ou a favor da aproximação da Filosofia às chamadas Humanidades. Acontece que tal aproximação cria problemas ao menos em dois pontos em nada secundários. De um lado, as Humanidades terminam funcionando, ao menos tacitamente, como uma espécie de refúgio contra os achaques do cientificismo; foge-se, assim, dessa tarefa maior que consiste em pensar a esmagadora hegemonia das ciências exatas e de suas consequências de toda ordem. O pensamento se torna fundamentalmente defensivo, assumindo então o tom edificante de um dever-ser que não incide em mais nada. De outro lado, o que deve ser examinado é justamente aquela dicotomia, a todos os títulos deformante, entre formação humanística e formação científica e tecnológica. Essa alternativa, de vida recente, representa uma violentação que de certo modo "aliena" a atividade filosófica no sentido de que a leva a identificar-se com um suposto "bom caminho". A Filosofia, presa assim a uma praxis moralizante, firmaria o "outro mundo", o dos valores propriamente humanos, guarida contra a progressiva desumanização do homem e de sua obra. Mas essa forma de maniqueísmo termina por deturpar a Filosofia, afastando-a do espírito de problematização radical que constitui a sua própria razão de ser, além ou aquém de toda moral.
Retomo as categorias de universalidade e singularidade já utilizadas acima, e acrescento-lhes, seguindo Georg Lukács, a de particularidade. Lembro apenas que, conforme o pensador húngaro — e ele desenvolve e sintetiza neste ponto uma longa tradição filosófica —, os conceitos de universalidade e singularidade se pertencem dialeticamente: a verdade de um está no outro, num processo ininterrupto que conduz de um extremo ao outro. [Introdução a uma estética marxista. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968.] Pois tentemos elucidar com essa contraposição a dialeticidade possível entre a universalidade filosófica e a singularidade nacional. Estes termos polarmente opostos desenvolvem, cada um a seu modo e dentro das coordenadas que lhes são características, toda uma variegada gama de manifestações. Acontece que entre estes dois extremos contrários verificam-se mediações, e mediações que terminam encontrando o seu perfil preciso naquela terceira categoria indicada, a da particularidade. Porque a singularidade e a universalidade, tomadas em si mesmas, são destituídas de qualquer autonomia: a obstinação pura e simples em sua própria diferença as isola e as torna absurdas. Vale dizer que elas só chegam a ser através desse concreto por excelência que se condensa sob a égide do que se chama de categoria da particularidade, ou através da multidão de modos possíveis que fazem a particularidade chegar a ser. Com outras palavras: através do singular, o universal alcança configurar um particular determinado, concreto. E pelo universal, o singular abandona o seu confinamento para instituir um particular no qual se pode ler também o universal. Assim, digamos com Lukács que "o particular, como termo médio, é antes um traço intermediário, uma extensão, um campo". (Id. p. 167) Corrija-se, porém, a tibieza da expressão, e acrescente-se que é nesse traço intermediário que se desenrola toda a cena que realmente importa pensar: o lugar do homem decide-se na particularidade, e sem ela nem a atomização singular, nem a universalidade (filosófica, por exemplo) teriam a menor razão de ser. Ora, a partir destas categorias talvez comecemos a entender o sentido que possa oferecer a presença da Filosofia na realidade nacional: tudo se daria naquela extensão qué prolonga a encruzilhada do universal e do singular, naquele campo que encontra na hibridez de duas vertentes a razão de ser de sua possível fertilidade.
Não leva a nada pretender que a realidade nacional, enquanto singularidade, possa ser considerada uma espécie de critério para a Filosofia. Talvez o nacional não seja critério para nada. Ou só sirva de critério para o nacionalismo, o que é outra história, mesmo porque o nacionalismo termina facilmente instaurando a cegueira para todo e qualquer critério. Sem pretender entrar aqui no problema do critério, avanço apenas uma sugestão: relativamente ao processo histórico, à realidade sócio-cultural, a singularidade e a universalidade, tomadas em si mesmas, não são suficientes para servir de critério ou de medida, já que um extremo não pode dar conta do outro: eles vivem precisamente de seu ser-oposto. Os critérios só podem nascer na categoria da particularidade, no modo como os opostos chegam a estabelecer-se numa totalização. E a partir dos modos como se dá a totalização, ela reverte, munida agora de seus critérios, aos extremos opostos para mostrar aquilo que são a singularidade e a universalidade. E tudo num processo único de transformação, mesmo porque não existem polos fixos.
Assim, apenas a título de exemplo e sem nenhuma pretensão de entrar na análise da questão: a praxis de uma sociedade socialista engendrará os critérios que permitem esclarecer tanto a singularidade quanto a universalidade. Por aí se entende que a realidade nacional possa colocar à Filosofia certas exigências, e toda a questão está em saber o modo como se equacionam tais exigências, os graus, mediatos e imediatos, de intercâmbio possível e isso através da elaboração da particularidade. Mas o contrário revela-se (des)igualmente válido: a Filosofia também pode impor-se à realidade nacional através de suas exigências específicas, a começar justamente pelo exercício da racionalidade que a caracteriza: pela praxis da crítica.
Isso não significa, todavia, que se deva perseguir a consecução de algum tipo de filosofia nacional, em sentido substantivo: tal filosofia não existe, nunca existiu em lugar algum, e sequer pode existir. E é precisamente essa impossibilidade que empresta sentido ao nosso problema, à questão de saber qual o lugar que ocupa a Filosofia num determinado contexto nacional. Ou seja: em que tipo de particularidade nacional encontra a universalidade filosófica o seu lugar, e qual é o modo como ela se vincula a esse lugar. O lugar é a própria realidade nacional em sua evolução multifária. Digamos, então, retomando a terminologia de análises anteriores, que o lugar incide no elemento diferencial da realidade sócio-cultural, ainda que os conceitos filosóficos que possam estar em jogo não sejam redutíveis ao próprio diferencial.
No intento de clarear o problema, faço algumas breves indicações críticas sobre as duas correntes filosóficas mais importantes da história do desenvolvimento das ideias filosóficas no Brasil, o positivismo e o neotomismo, em relação ao modo de sua incidência na realidade nacional. Os dois exemplos são significativos, já porque a referida incidência apresenta neles um sentido por assim dizer oposto.
Ainda que não deva ser exagerada, sabe-se da importância da presença do positivismo no País. O que salta aos olhos é o contraste entre os ideais cientificistas de Comte e a tradição cultural brasileira da época, em tudo estranha a qualquer tipo de padrão científico, e mesmo que dotada, segundo o testemunho de José Veríssimo, de uma "positividade inconsciente". [17] Ora, dentro dos quadros do expansionismo europeu do século passado, o positivismo representa um momento de singular relevo na evolução da consciência burguesa, visceralmente marcada que foi pela eclosão da Revolução Industrial. A vinculação moderna das Ciências da Natureza com a ideia de domínio, evidenciada então pelas primeiras conquistas da tecnologia, encontra na doutrina de Comte uma de suas expressões intelectuais mais pertinentes — inclusive pelo conservadorismo de sua doutrina política. É claro, por isso mesmo, que a presença do positivismo no Brasil só poderia ter sido prematura, já que faltava ao País a tradição universitária e a indispensável infra-estrutura que justificassem o elogio burguês da Ciência. Isso talvez explique, ao menos em certa medida, que o positivismo degenerasse entre nós numa estranha forma de religiosidade: a ênfase dada à Ciência, aqui, bem mais do que na Europa, transforma-se em culto, amparado numa pretensa ciência política. Elucida-se, por aí, que num momento capital da evolução política do País — a instauração da República — os nossos positivistas estivessem preocupados sobretudo com a fidelidade doutrinária de seus adeptos e com esse corolário de todas as ortodoxias que é a caça às bruxas.
O que deve ser lastimado não é o fato de ter sido importada uma doutrina completamente alheia ao bacharelismo que dominava a escassa vida universitária do País, mas sim a constatação de que os nossos positivistas não souberam ser suficientemente positivistas e que, carentes das virtudes do espírito crítico, desviassem o já então necessário cultivo da Ciência para a tolice irracional do culto — o que não se justifica simplesmente pelo atraso das infra-estruturas e nem se deixa explicar apenas pelas conhecidas injunções do estado de dependência. [18]
A facilidade com que o positivismo se presta hoje à crítica, o tom de galhofa até com que entre nós se costuma acoimá-lo, contradiz em tudo o relevo do tema. Essa importância prende-se a dois pontos. Em primeiro lugar, ao fato de que a mentalidade cientificista tornou-se planetária, uma realidade quase que imponderável, e ao que tudo indica destinada por um tempo indeterminado a permanecer irreversível. E não faz nenhum sentido pretender que toda a ideologia cientificista esteja meramente "errada": ela pressupõe, entre outras coisas, esse conseguimento maior que é a própria existência da Ciência, e os argumentos que frequentemente se ouvem alertando contra os seus "excessos" são o mais das vezes caudatários de um passado obscurantista. Em segundo lugar, convém não esquecer que os equívocos em que incorreram os nossos positivistas não lhes tiram de todo o mérito de terem aberto um espaço cultural que continua ainda hoje insuficientemente habitado entre nós: a necessidade impreterível de desenvolver o espírito científico e de integrá-lo a uma visão humana e social. E se não tem sentido pretender uma volta a Augusto Comte — embora o seu lema fundamental, "saber para prever, prever para poder" continue mostrando plena vigência — cabe reconhecer que os nossos positivistas deram o primeiro ainda que tímido passo naquela direção. O caráter até mesmo benéfico da presença, do positivismo em suas dimensões estritamente cientificistas decorre precisamente do fato de ele ter sido um corpo estranho à tradição cultural brasileira da época, e este é justamente o aspecto fundamental que deve ser ressaltado aqui.
Um significado bem diferente apresenta a longa dominação do ensino filosófico pelo neotomismo.
Permito-me, a propósito, fazer duas observações preliminares. Lembro, de um lado, que o neo-tomismo integra o movimento geral da filosofia ocidental da primeira metade deste século. Proliferavam então os "neo" de toda ordem, a começar pelos neokantianos e neo-hegelianos: tudo se passava como se se estivesse procedendo a uma reavaliação radical do todo da História da Filosofia, num empenho crítico que foi inaugurado por Hegel e veio encontrar em Heidegger o seu coroamento. A longevidade do neotomismo deveu-se sem dúvida à autoridade vigilante da Igreja. De outro lado, é ao menos curioso observar que o neotomismo desenvolveu-se em nosso tempo como que sob o patrocínio de uma noção endossada com unanimidade por seus sequazes e que vinculou essa corrente, mesmo que de modo insciente, ao processo cultural burguês. Refiro-me ao conceito de filosofia perene, entendido como repositório de verdades supra-históricas e inabaláveis. Ora, esse conceito foi tomado de Leibniz , e juntamente com as suas duas teses complementares — a do melhor dos mundos possíveis e a do progresso indefinido da humanidade — expressa o grande otimismo do Século das Luzes, a crença na hegemonia absoluta da classe burguesa ascendente. Decorridos dois séculos, e a despeito dos rudes embates sofridos, essa tríade continua apresentando certa vitalidade.
É evidente que, entre nós, a presença do neotomismo não se poderia ter furtado a essas coordenadas gerais. Em que sentido, então, o neotomismo incide na realidade nacional? Não se pode dizer, como do positivismo e sem dar maiores explicações, que se trata de um corpo estranho, simplesmente importado — a não ser que se pretenda que a própria Igreja tenha sido importada, e com ela esse seu apenso que é o neotomismo. Bem ao contrário disso, o neotomismo vincula-se a uma certa "verdade" nacional: à da Igreja do passado, intimamente aparentada com a prepotência da classe dominante do "maior País católico do mundo". Compreende-se por isso que se possa asseverar que, em relação à realidade nacional, a verdade do neotomismo ensinava simplesmente a não ver o País, a afastar toda visão crítica, incentivando por sua simples presença o esquecimento das diferenças nacionais, para não falar de seus conflitos. Pense-se aqui, por exemplo, no caráter apassivador do ensino da lógica aristotélica, a que me reportei mais acima.
Tome-se, a título de mais um exemplo, a doutrina do senso comum, tal como é apresentada por Jacques Maritain em sua Introdução Geral à Filosofia, talvez o livro filosófico mais difundido no Brasil. O senso comum constitui um "núcleo sólido de certezas verdadeiras" (sic); e esse núcleo estende-se a ponto de incluir as chamadas "grandes verdades", como o conhecimento da existência de Deus, do livre-arbítrio, e "muitas outras". [19] Mas o importante a ressaltar é que o senso comum é apresentado como "consenso geral ou como instinto comum da humanidade" (Id. p. 91), embasando-se assim um conceito genérico de cultura que volta as costas ao seu caráter diferencial — o que se casa perfeitamente bem, de resto, com a deseducação total da consciência histórica e social. Esse descaso que instaura a doutrina neotomista em relação a tudo o que é simplesmente nacional ou que se situa aquém das chamadas "grandes verdades" termina introduzindo o esquecimento dos fatores diferenciais. Com outras palavras: o neotomismo educa para uma visão fundamentalmente alienada do mundo, que destitui a verdade de qualquer comprometimento com a realidade em que vive o homem. Não deve causar estranheza, por isso mesmo, que o positivismo e o neotomismo, num plano muito mais decisivo do que aquele em que se desdobraram todas as suas polêmicas e os seus anátemas, acabem por identificar-se numa postura radicalmente conservadora do homem e do mundo.
(1979)
[1] FICHTE, Johann Gottlieb. Die Grundzuege des gegenwaertigen Zeitalters. Hamburg, Felix Meiner, 1956. p. 219.
[2] Veja-se o estudo introdutório de Alwiri Diemer, in: FICHTE, Johann Gottlieb, Reden an die dentsche Nation. Hamburg, Felix Meiner, 1955. Veja-se também, de Xavier Leon, Fichte et son temps. Paris, Armand Colin, 1927. p. 34 e ss, e 64 e ss. v. 2, Segunda Parte.
[3] BAUMAN, Zygmunt. Cultura come prassi. Bologna, II Mulino, 1973. p. 87.
[4] LÉVI-STRAUSS, Claude. Anthropologie structurale. Paris, Plon, 1958. p. 255.
[5] Op. cit. p. 45 e 221
[6] Urformen der Kultur. Hamburg, Rowohlt, 1955. p. 181. (Trad. alemã.)
[7] Conforme atestam as pesquisas de M. T. Hogden, apud Bauman, op. cit. p. 58.
[8] ALEWYN, Richard. Das grosse Welttheater. Die Epoche der hoefischen Feste in Dokument und Deutung. Hamburg, Rowohlt, 1959. p. 21.
[9] Die Idee der Phaenomenologie. Haag, Martinus Nijhdff, 1950. p. 17 e ss (o texto é de 1907)
[10] Die Krisis der europaeischen Wissenschaften und die transzendentale Phaenomenologie. Haag, Martinus Nijhoff, 1954. p. 14. (O texto começou a ser elaborado em 1934. Lembro que Malinowski e Franz Boas faleceram em 1932)
[11] Id. p. 15
[12] An essay concerning human understanding. London, J. M. Dent, 1948. p. 15.
[13] Teoria do Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975. p. 147.
[14] Id.
[15] Id.
[16] Celso Furtado explica por que "a ideia de desenvolvimento serviu para afiançar a consciência de solidariedade internacional no processo de difusão da civilização industrial no quadro da dependência", in: Criatividade e dependência na civilização industrial. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. p. 76 e ss.
[17] José Veríssimo. Teoria, crítica e história literária. Seleção e apresentação de João Alexandre Barbosa. Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos, 1977. p. 239.
[18] Veja-se, por exemplo, a bibliografia de Miguel Lemos e Teixeira Mendes arrolada por João Cruz Costa; já os títulos de seus trabalhos revelam o quanto os dois patronos do positivismo brasileiro estavam afastados da divulgação dos ideais especificamente cientificistas. In: Contribuição à história das ideias no Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956. p. 456-8 e 466-7.
[19] Elementos de Filosofia — I — Introdução geral à Filosofia. Rio de Janeiro, Agir, 1948. p. 89.