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Wahl: A SEGUNDA TRÍADE: O POSSÍVEL E O PROJECTO — A ORIGEM, O AGORA, A SITUAÇÃO, O INSTANTE

terça-feira 17 de dezembro de 2024, por Cardoso de Castro

A ideia de situação tem uma grande importância em todas as filosofias. Quando o possível toma lugar numa realidade, encontra-se numa situação. Mencionamos já o papel, pelo menos implícito, desta ideia no pensamento de Kierkegaard  . O pensamento de Kierkegaard   foi, mais do que qualquer outro, motivado por uma situação muito particular, visto que, como já vimos, foi em volta do problema posto a si próprio pelo noivado, pelas suas relações com Regina, que desenvolveu toda a sua filosofia. É, portanto, acerca da sua situação privada que medita Kierkegaard   e é a partir desta situação privada que ele constitui o seu pensamento, e é a partir do seu pensamento que por sua vez se constitui toda a filosofia da existência dos seus sucessores.

Mas não há somente situações deste gênero. Há situações filosóficas. Ê aquilo de que toma consciência, por exemplo, Jaspers   quando diz: não se pode filosofar hoje da mesma maneira que se filosofava antes desses dois grandes acontecimentos que constituem Kierkegaard   e Nietzsche  . Portanto, o filósofo está pelo menos duplamente em situação: há uma situação privada, há uma situação filosófica.

No pensamento de Gabriel Marcel  , a ideia de situação está igualmente presente, e entra na própria concepção que ele forma da metafísica. Não só nós nunca devemos tomar os problemas fora da situação em que se apresentam, mas também o domínio metafísico é aquele em que a nossa situação própria, a situação do arguente, é ela em si posta em questão, ela própria é um problema; e é assim pela própria ideia da implicação desta situação no problema, pelo facto de o problema se sobrepor ao arguente, que podemos ver o problema transformar-se em mistério e abrir-se o domínio da metafísica.

Conhece-se o lugar que a ideia de situação ocupa no pensamento de Sartre  . Segundo ele, cada um dos nossos atos pode ser interpretado de maneira diferente, conforme se interprete em função da nossa liberdade ou em função da situação. E aqui estamos nós perante problemas difíceis de resolver, porque esta situação depende em grande parte da nossa liberdade. A liberdade é indubitavelmente o termo ultimo ao qual é preciso reduzir a situação, porque a situação só existe porque a nossa liberdade se choca com tais dados empíricos; estes dados empíricos só existem em relação aos fins que nos propomos; os obstáculos só são obstáculos porque nos propomos fins, e estes fins são postos, diz Sartre  , pela nossa liberdade.

Convém, finalmente, focar o facto de haver o que Jaspers   chama situações-limites. Perante o mal, o combate, o sofrimento e a morte, a nossa existência é forçada até ao extremo, chega a sentir-se no seu próprio limite, só se apercebe de que existe porque há outro termo com o qual ela acaba de se chocar e perante o qual ela deve finalmente calar-se: a transcendência.

Chegamos à ideia instante, e esta ideia está, num certo sentido, no centro do pensamento de Kierkegaard  . Falamos desse instante de encarnação que é o centro da história. Mas, por outro lado, é no instante que podemos romper com os hábitos do pensamento conceptual e com os hábitos sociais para comunicar com este centro da história profunda. Neste ponto, Kierkegaard   baseia-se ao mesmo tempo na meditação sobre o Parméniães, de Platão  , cuja terceira hipótese assenta na ideia de instante, e no Evangelho, na ideia que nós ultrapassamos o tempo na aceitação da boa nova.

E da ligação do passado e do futuro, quando tomados nas suas profundidades autênticas, que nasce o instante, da mesma maneira que do futuro e do passado inautênticos nasce o agora. Mas ele faz-nos passar para além do plano em que estão situados o futuro e o passado: o instante, diz Kierkegaard  , é o encontro do tempo e da eternidade; o instante, para Heidegger, é o momento em que na decisão adotada nos consideramos nós próprios em nós próprios e, juntando a origem e o projeto, tomamos a responsabilidade do que somos.

Poderíamos aproximar do que acabamos de dizer a teoria de Jaspers   segundo a qual o que há de mais elevado na hierarquia das realidades é também o que há de mais precário, de mais frágil, e só se revela por súbitos clarões; estes clarões estriam momentaneamente a profunda noite; são eles essencialmente os portadores de valores; numa tal concepção, o valor está como na razão inversa da estabilidade.