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Pensamento Ocidental Moderno
Jean Wahl: A QUE SE OPÕEM AS FILOSOFIAS DA EXISTÊNCIA
Filósofos e Pensadores
quarta-feira 23 de março de 2022, por
As Filosofias da Existência
Jean Wahl
Trd. I. Lobato e A. Torres
Europa-América
1962
Muito cedo, em 1834, Kierkegaard escreve: «Devo viver para uma ideia», e, um ano depois, insiste no elemento de subjetividade essencial à verdade. O que há de mais objetivo para um cristão, isto é, o enunciado dos dogmas, começa pela primeira pessoa, pelo credo. «E necessário residir sempre no quarto mais secreto do homem, no santo dos santos.» «É necessário procurar uma verdade que não é uma verdade universal, mas uma verdade para mim», uma ideia para a qual eu quero viver e morrer. Manter-se nesse mais secreto quarto do homem é estar na certeza. «Tudo», escreve ele nesse mesmo ano, «deve finalmente basear-se num postulado, mas, desde que nele se vive, cessa de ser um postulado.» E um ano mais tarde escreve: «Morte e inferno, posso fazer abstração de tudo, mas não de mim próprio, não posso esquecer-me, mesmo durante o meu sono.»
Ao pensamento hegeliano vai, portanto, Kierkegaard opor a paixão. O perigo do pensamento hegeliano é fazer-nos perder a paixão. Um homem que se perde na sua paixão perdeu menos que o que perde a sua paixão; o romântico, perdido na sua paixão, perdeu menos que o hegeliano que perde a paixão. Segundo os hegelianos, pelo menos tais como Kierkegaard os interpreta, é necessário que nunca nos entreguemos a uma ideia; é necessário ser apaixonado só até certo ponto. Mas, diz Kierkegaard , isso é não ser apaixonado.
O hegelianismo comete o erro de querer explicar todas as coisas. As coisas não devem ser explicadas, mas vividas. Assim, em vez de querer apreender uma verdade objetiva, universal, necessária e total, Kierkegaard dirá que a verdade é subjetiva, particular e parcial. Não pode existir sistema da existência; as duas palavras, «existência» e «sistema», são contraditórias. Se escolhermos a existência, devemos abandonar qualquer ideia de um sistema do gênero do de Hegel . O pensamento nunca pode atingir senão a existência passada ou a existência possível; mas a existência passada ou a existência possível são radicalmente diferentes da existência real.
Se sabemos tão poucas coisas a respeito de Sócrates é precisamente porque Sócrates é um existente; a nossa ignorância a seu respeito é a prova de que existia em Sócrates algo que deve necessariamente escapar à ciência histórica, uma espécie de lacuna na história da filosofia, pela qual se manifesta que onde há existência não pode haver realmente conhecimento. Sócrates é o incomensurável, é sem relação, é sem predicado. Ora há mais verdade na ignorância socrática que em todo o sistema hegeliano. Existir objetivamente, ou, melhor, ser na categoria do objetivo, já não é existir, é ser distraído da existência. A verdade objetiva tal como a concebe Hegel é a morte da existência.
A oposição de Kierkegaard e Hegel continuará em todos os planos. Por exemplo, para Hegel , o exterior e o interior são idênticos. O segredo não tem lugar no mundo hegeliano. Mas Kierkegaard sabe que há coisas nele que não podem ser exteriorizadas, que não podem exprimir-se.
Além disso, o sentimento de pecado far-nos-á ultrapassar, segundo Kierkegaard , todas as categorias filosóficas para entrar na vida religiosa. O filósofo hegeliano dirá, sem dúvida, que ele também chega à religião e mesmo àquilo a que chama a religião absoluta, que se identifica com a filosofia no seu mais alto nível. Mas também aqui se verifica uma oposição entre Hegel e Kierkegaard . Dado que Hegel vê no Cristo o símbolo da humanidade em geral, da própria razão: o cristianismo é a religião absoluta, porque nele se exprime da maneira mais válida esta identificação de um indivíduo com a humanidade considerada no seu conjunto. Mas, para Kierkegaard , o Cristo é um indivíduo particular, não simboliza o que quer que seja, e é este indivíduo particular que é o infinito e o absoluto. O sistema de Hegel é um sistema de mediação universal, mas há qualquer coisa que a filosofia não pode mediatizar, é o absoluto, absoluto cristão, o Deus cristão para Kierkegaard , e, por outro lado, o indivíduo como absoluto. Nos momentos verdadeiramente religiosos, nós apreendemos uma relação entre estes dois absolutos, o indivíduo e Deus, mas uma relação completamente diferente das relações que o hegelianismo pode conceber pela mediação.
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