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Paul Ricoeur, l’itinérance du sens
Greisch (2001) – A memória guardiã da ipseidade e da alteridade
A memória feliz, a arte de esquecer, o difícil perdão
Resta considerar os fenômenos memoriais à luz da terceira questão: «Quem?», que pode ser compreendida ao menos em dois sentidos: a quem podem ser atribuídas as recordações, a quem se pede para lembrar? Uma e outra formulação conduzem à questão filosoficamente decisiva: em que sentido a memória pode ser dita guardiã da ipseidade?
Trata-se de uma questão duplamente moderna, ligada ao advento de uma problemática da subjetividade, dividida entre um polo egológico e um polo sociológico. Nesse campo, Ricœur
Ricoeur
Ricœur
Paul Ricœur
PAUL RICŒUR (1913-2005)
Excertos por termos relevantes
adota uma abordagem deliberadamente dialética, situando-se alternadamente na vertente egológica, representado pela tradição do «olhar interior», e na vertente sociológica, focalizada na noção de «memória coletiva», antes de propor sua própria solução sob a forma da hipótese de uma tripla atribuição distinta da memória: a si mesmo, aos próximos, aos outros em geral.
O que Ricœur
Ricoeur
Ricœur
Paul Ricœur
PAUL RICŒUR (1913-2005)
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denomina, seguindo Charles Taylor
Charles Taylor
TAYLOR, Charles
, a tradição do «olhar interior», é representado por três testemunhos maiores: Santo Agostinho
Augustin
Agostinho
Augustine
AURÉLIO AGOSTINHO DE HIPONA (354-430). Em Agostinho, H. encontra um respondente a suas preocupações relativas à existência, ou melhor, à ancoragem da reflexão filosófica na dimensão da existência como do mundo concreto no seio do qual o ser humano é levado a desdobrar seu ser, a viver. (LDMH)
, John Locke e Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
. Os capítulos do livro X das Confissões, consagrados à memória e ao esquecimento, oferecem um primeiro grande exemplo de uma fenomenologia da lembrança que, explorando até o fim o caminho da interioridade, descobre o vínculo íntimo entre a memória e a ipseidade: «Ao lembrar de algo, lembra-se de si mesmo» (MHO 115). Como afirma o confessor: «Ego sum, qui memini, ego animus». Longe de pensar que, para o sujeito desejoso de descobrir-se a si mesmo, os «vastos palácios da memória» sejam um labirinto no qual acabaríamos por nos perder, Agostinho
Augustin
Agostinho
Augustine
AURÉLIO AGOSTINHO DE HIPONA (354-430). Em Agostinho, H. encontra um respondente a suas preocupações relativas à existência, ou melhor, à ancoragem da reflexão filosófica na dimensão da existência como do mundo concreto no seio do qual o ser humano é levado a desdobrar seu ser, a viver. (LDMH)
descobre na memória uma ocasião singular de encontrar-nos a nós mesmos: «ali, encontro-me também a mim mesmo, lembro-me de mim, do que fiz, quando e onde o fiz e qual impressão senti quando o fazia».
Ainda que reconheça a contribuição capital de Agostinho
Augustin
Agostinho
Augustine
AURÉLIO AGOSTINHO DE HIPONA (354-430). Em Agostinho, H. encontra um respondente a suas preocupações relativas à existência, ou melhor, à ancoragem da reflexão filosófica na dimensão da existência como do mundo concreto no seio do qual o ser humano é levado a desdobrar seu ser, a viver. (LDMH)
, Ricœur
Ricoeur
Ricœur
Paul Ricœur
PAUL RICŒUR (1913-2005)
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adverte contra um mal-entendido: o fato de Agostinho
Augustin
Agostinho
Augustine
AURÉLIO AGOSTINHO DE HIPONA (354-430). Em Agostinho, H. encontra um respondente a suas preocupações relativas à existência, ou melhor, à ancoragem da reflexão filosófica na dimensão da existência como do mundo concreto no seio do qual o ser humano é levado a desdobrar seu ser, a viver. (LDMH)
atribuir tanto valor ao homem interior não significa que tenha inventado a equação entre a identidade de si e a memória (MHO 116). No confessor, a memória é verdadeiramente feliz não quando celebra as proezas da ars memoriae (da qual, como se sabe, Agostinho
Augustin
Agostinho
Augustine
AURÉLIO AGOSTINHO DE HIPONA (354-430). Em Agostinho, H. encontra um respondente a suas preocupações relativas à existência, ou melhor, à ancoragem da reflexão filosófica na dimensão da existência como do mundo concreto no seio do qual o ser humano é levado a desdobrar seu ser, a viver. (LDMH)
era um campeão incomparável), mas quando se coloca à procura de Deus, isto é, em busca da vida feliz. Contudo, essa busca, que apela às potências da memória, também a excede: «In Te supra me»!
A cada senhor, toda honra: a invenção da equação entre a memória e a identidade cabe a John Locke, o segundo grande testemunho da tradição do «olhar interior» interrogada por Ricœur
Ricoeur
Ricœur
Paul Ricœur
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. Foi ele, e não Descartes
Descartes
H. consagrou dois cursos e quatro seminários a Descartes. A desconstrução da metafísica heideggeriana conduz um diálogo intenso com Descartes.
, o inventor do cogito, quem legou aos filósofos modernos a tríade que os persegue desde o Ensaio sobre o Entendimento Humano: identidade, consciência, si (identity, consciousness, self). A identidade-mesmidade pressuposta nesse ternário é uma «identidade temporal» que necessita do suporte da memória para manter-se no tempo.
As Lições sobre a Filosofia Primeira de Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
mostram que esse terceiro grande testemunho da tradição do olhar interior não se equivocou quanto ao alcance filosófico da contribuição de Locke. No entanto, Ricœur
Ricoeur
Ricœur
Paul Ricœur
PAUL RICŒUR (1913-2005)
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considera que, pela maneira como Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
articula as três problemáticas da interioridade, da memória e do tempo, o fundador da fenomenologia se encontra mais próximo de Agostinho
Augustin
Agostinho
Augustine
AURÉLIO AGOSTINHO DE HIPONA (354-430). Em Agostinho, H. encontra um respondente a suas preocupações relativas à existência, ou melhor, à ancoragem da reflexão filosófica na dimensão da existência como do mundo concreto no seio do qual o ser humano é levado a desdobrar seu ser, a viver. (LDMH)
do que de Locke (MHO 131). Ao assumir até o fim a hipótese solipsista, Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
consegue abrir, na quinta Meditação Transcendental, o ego transcendental ao outro que si mesmo. Nesse sentido, ele é menos refratário à hipótese de um possível entrecruzamento entre a memória individual e a memória coletiva do que se poderia imaginar. Contudo, não se deve esquecer que se trata de uma simples transferência analógica, ainda que nada impeça de atribuir a comunidades intersubjetivas uma temporalidade, uma história e recordações próprias (MHO 146).
Resta que a fenomenologia deve doravante confrontar-se com outra tradição, a do olhar exterior, focalizada na «memória coletiva», da qual Maurice Halbwachs foi o eloquente defensor com sua tese: «para lembrar, é preciso dos outros» (MHO 147). A questão crítica consiste em saber se a tese verdadeira: «Não se lembra sozinho», tem como corolário que a propriedade das lembranças seria uma espécie de ilusão transcendental da consciência subjetiva. A solução que Ricœur
Ricoeur
Ricœur
Paul Ricœur
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propõe encontra-se preparada há muito tempo em Tempo e Narrativa III: o «terceiro-tempo» histórico exige um entrecruzamento semelhante entre a memória individual e a memória coletiva (MHO 122).
Diante da ameaça de o engolfamento da memória individual pela memória coletiva, é preciso considerar um além da aporia do preconceito idealista da fenomenologia husserliana e do preconceito positivista da sociologia (MHO 152). A linguagem ordinária mostra-nos o caminho: nenhuma barreira linguística impede que a linguagem da atribuição se aplique à segunda e à terceira pessoa do singular ou do plural. Mas o inverso também é verdadeiro: a possibilidade de uma atribuição múltipla das lembranças (a si mesmo, a outrem, a um «nós» ou a um «vós») não neutraliza, contudo, a assimetria das respectivas «atribuições» (MHO 156). Por isso, uma «fenomenologia da memória compartilhada» (MHO 160) não consistirá de modo algum em uma simples glosa fenomenológica do discurso sociológico, assim como a fenomenologia do ser-no-mundo social de Alfred Schütz não é uma pálida paráfrase da sociologia sistêmica de Talcott Parsons.
Aos olhos de Ricœur
Ricoeur
Ricœur
Paul Ricœur
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, uma das tarefas de tal fenomenologia é explorar sistematicamente todo o intervalo intermediário entre a memória viva das pessoas individuais e a memória pública das comunidades de pertencimento. A esse respeito, sua sugestão mais preciosa, sustentada igualmente por uma citação do «mestre Agostinho
Augustin
Agostinho
Augustine
AURÉLIO AGOSTINHO DE HIPONA (354-430). Em Agostinho, H. encontra um respondente a suas preocupações relativas à existência, ou melhor, à ancoragem da reflexão filosófica na dimensão da existência como do mundo concreto no seio do qual o ser humano é levado a desdobrar seu ser, a viver. (LDMH)
» [1], é atribuir aos próximos, isto é, àqueles «que contam para nós e para quem nós contamos», uma memória de gênero distinto (MHO 161).
Ver online : Paul Ricoeur
MHO = RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Éd. du Seuil, 2000.
GREISCH, Jean. Paul Ricoeur, l’itinérance du sens. Grenoble: J. Millon, 2001.
[1] Trata-se da «alma fraterna, aquela que, ao aprovar-me, se alegra comigo e, ao desaprovar-me, se entristece por mim», provando assim que me ama. «Revelar-me-ei (indicabo me)», diz o confessor, «a pessoas como essas» (Conf. X, 4, 5-6).