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Paul Ricoeur, l’itinérance du sens
Greisch (2001) – A memória contra as lembranças? (C. Romano)
A memória feliz, a arte de esquecer, o difícil perdão
Antes de voltar-me para o fenômeno (e o problema) do esquecimento, convém expor a análise dos fenômenos memoriais que Ricœur nos propõe a uma iluminação externa, levantando a seguinte questão: o que ocorre se se amputar a fenomenologia da memória de sua dimensão objetal, icônica e representacional? A esse respeito, uma comparação entre as teses de Ricœur e aquelas que Claude Romano Claude Romano CLAUDE ROMANO (Paris IV) desenvolve no quadro de sua «hermenêutica événemential» parece-me tão frutífera quanto a confrontação entre o conceito hiperbólico de enredamento-em-histórias em Schapp e a síntese narrativa do heterogêneo em Ricœur, com a qual se iniciara a segunda parte deste trabalho.
As reflexões que Romano desenvolve no § 13 de O evento e o tempo são determinadas pela oposição nítida entre uma fenomenologia da memória e uma fenomenologia da lembrança [souvenir]. Independentemente da maneira como o fenomenólogo conceba a lembrança (lembrança-hábito, lembrança-imagem, etc.), esta aparece como uma modalidade da presentificação, seja pela aderência do passado ao presente, no caso das lembranças primárias, seja pela recordação, como no caso das lembranças secundárias. Ora, em todos os casos, «a memória não é uma modalidade da lembrança, isto é, de um presente “ampliado” ao passado».
Numa fenomenologia da lembrança, não parece haver espaço de acolhimento para o evento em sentido forte, aquele que Romano visa por meio da distinção entre o événementiel e o événemential. Tomado em sentido hiperbólico, ele «escapa à lembrança em suas diversas acepções». Compreenda-se bem o sentido desse escape: não se trata de um esquecimento empírico (esqueci o que o evento tinha de único), nem de um recalque (não quero lembrar-me do que me afetou demasiadamente). Se se pode falar aqui de esquecimento, trata-se de um «esquecimento transcendental» (ou fundador), noção que também deverá reter nossa atenção em nossas reflexões sobre o esquecimento.
A questão decisiva é saber se pode haver uma memória distinta da memória retencional. Aos olhos de Romano, tratar-se-ia de «uma memória dos possíveis enquanto tais», que também pode ser denominada «memória do imemorial», porque não busca ressuscitar um presente morto. Ao acentuar de modo tão intenso o possível, Romano opera uma desinteriorização e uma despsicologização radicais dos fenômenos memoriais. Nada lhe parece mais enganador do que as conotações da palavra alemã Er-innerung. Sua descrição da memória acompanha estreitamente sua crítica à subjetivação agostiniana do tempo, desenvolvida na primeira parte de sua obra. Tudo se passa como se fosse necessário subtrair totalmente os fenômenos memoriais à tradição do olhar interior. O olhar interior, poder-se-ia dizer, possui uma mancha cega: pode passar em revista fatos passados, objetos, talvez até eventos intramundanos, mas jamais discernirá possíveis événementiels.
Se se admite com Romano que «a memória como événemential é, antes e originariamente, memória do possível», então, no melhor dos casos, as lembranças não podem ser senão auxiliares da memória (espécies de “lembretes”, isto é, o contrário do verdadeiro pensamento, que se interessa pelos possíveis événementials), simples epifenômenos da memória; no pior, obstáculos («lembranças-tela», em um sentido absolutamente não freudiano do termo!) que nos impedem de reconhecer que «somente o possível é verdadeiramente inesquecível».
Dois traços conjugam-se para arrancar os fenômenos memoriais da esfera subjetiva. Por um lado, a memória torna possível a relação extática com um mundo em que não há objetos, mas apenas eventos: «Enquanto événemential, a memória não está “em nós”, sob a forma de lembranças, mas fora de nós, no mundo». Por outro lado, a «memória germinal do possível enquanto tal… só pode conjugar-se no futuro anterior», isto é, situa-se integralmente sob o signo da «promessa de porvir».
O fato de ser necessário falar de uma dessubjetivação não significa que já não caiba levantar a questão: «de quem é a memória?». Contudo, ela deve ser articulada sobre o novo conceito de sujeito que Romano defende ao falar de um «adveniente». A memória do possível, e somente ela, é a guardiã da ipseidade do adveniente, «que “é” o acontecimento de uma memória».
A concorrência entre a lembrança e a memória acarreta uma nova determinação da relação entre memória e esquecimento. Como mostra o exemplo do trauma, o oposto da memória não é o esquecimento, mas a repetição. A memória é tudo, exceto um conservatório de lembranças. Ela nada conserva, pois os possíveis enquanto possíveis não se deixam conservar. É, ao contrário, instauradora do porvir, como mostra, a contrario, a descrição fenomenológica do trabalho de luto. Por ser a prova da despossibilização de um mundo, o luto pode ser dito, de parte a parte, «um processo de memória». Entendida nesse sentido, a ipseidade é sinônima de «responsabilidade», no sentido da Selbstüberantwortung heideggeriana, isto é, consiste, para o adveniente, na capacidade de responder por si mesmo diante do inassumível e, por esse mesmo meio, libertar-se dele.
Apesar da admiração que inspiram essas teses audaciosas, a comparação com as de Ricœur revela o que o caráter deliberadamente hiperbólico da hermenêutica événemential corre o risco de fazer-nos perder de vista: não se trata apenas do milagre imemorial do possível enquanto possível, mas também do «pequeno milagre do reconhecimento», vivido na monotonia do cotidiano.
Ver online : Paul Ricoeur
MHO = RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Éd. du Seuil, 2000.
GREISCH, Jean. Paul Ricoeur, l’itinérance du sens. Grenoble: J. Millon, 2001.