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Paul Ricoeur, l’itinérance du sens

Greisch (2001) – Quando se lembrar é fazer o trabalho da memória

A memória feliz, a arte de esquecer, o difícil perdão

  • A fenomenologia da memória em sua segunda etapa, focada na questão do "Como?":
    • O questionamento pragmático e prático sobre o ato de recordar, especificamente: "Como se lembrar?" e "Como fazer para se lembrar?", ou ainda, "Como ’fazer memória’?".
    • A descoberta de novos "poderes" inerentes ao ato de recordar, que ocasionalmente se manifestam como proezas notáveis.
    • A abordagem ricœuriana das práticas memoriais no duplo registro do uso e do mau uso, em consonância com a tradição filosófica iniciada por Schleiermacher Schleiermacher
      Friedrich Schleiermacher
      FRIEDRICH DANIEL ERNST SCHLEIERMACHER (1768-1834)
      , que associa a análise da compreensão à reflexão sobre a má compreensão.
    • O exame da ars memoriae ancestral e suas proezas, conforme demonstrado pela análise de Frances Yates, culminando em Giordano Bruno como seu ápice e simultâneo canto do cisne.
      • A questão filosófica central não se restringe a uma arbitragem equilibrada entre a memória alternadamente exaltada e execrada, status que ela compartilha com o sujeito na modernidade.
      • A justa determinação dos limites da memória artificial e suas implicações filosóficas.
      • A constatação ricœuriana sobre a natureza da memória artificial: "Para a memória artificial, tudo é ação, nada é paixão" (MHO 80).
      • A extrapolação dessa constatação às máquinas de memorização modernas e aos inúmeros bancos de dados.
      • Os limites da memoria artificiosa que não se relacionam com as capacidades de armazenamento (potencialmente infinitas, no sentido do "mau infinito" hegeliano).
      • A análise instrutiva da aproximação entre a antiga magia mnemotécnica e o fascínio contemporâneo pela magia dos computadores.
      • O desafio ricœuriano em ambos os contextos: superar a negação do esquecimento e o deni da condição de ser-afetado (pelo passado, nos fenômenos memoriais, e, mais genericamente, a condição de ser-afetado).

Tipologia dos Usos e Abusos da Memória Natural em Paul Ricœur Ricoeur
Ricœur
Paul Ricœur
PAUL RICŒUR (1913-2005)
Excertos por termos relevantes

  • A fenomenologia da memória exercida como "tipologia dos usos e abusos da memória natural" (MHO 82), após o reconhecimento de que os palácios da memoria artificiosa são fortalezas vazias.
    • A adoção do conceito de "abuso da memória" cunhado por Tzvetan Todorov.
    • A distinção ricœuriana de três formas principais desse abuso.

1. Memória Impedida

  • A análise das manifestações patológicas da memória ferida ou doente, conforme se apresentam no trabalho clínico.
    • Sigmund Freud Freud Sigmund Freud como principal guia e sua contribuição em dois artigos fundamentais: "Recordar, repetir e elaborar" (1914) e "Luto e melancolia" (1915).
      • O interesse freudiano nas resistências encontradas pelo trabalho de interpretação (Deutungsarbeit) analítico, ao exigir do analisando um difícil "trabalho de rememoração" (Erinnerungsarbeit).
      • A introdução do termo "elaboração" (Durcharbeiten) como a contribuição mais relevante de Freud Freud Sigmund Freud à pragmática da memória, sendo o único capaz de superar o verdadeiro adversário da memória: a compulsão à repetição.
      • A noção de "trabalho de luto" (Trauerarbeit), introduzida no segundo ensaio, como única capaz de impedir que a perda do objeto amado engula o próprio eu, desastre característico da melancolia.
      • A tese ricœuriana que resume a contribuição freudiana, mantendo presente a inquietante parentesco entre luto e melancolia: "O trabalho de luto é o custo do trabalho de lembrança; mas o trabalho de lembrança é o benefício do trabalho de luto" (MHO 88).
      • O questionamento ricœuriano, em consonância com a tradição aristotélica, sobre a possibilidade de a melancolia se restringir à patologia mental.
      • A meditação sobre a Melencolia I de Dürer confirmando a necessidade de restituir à melancolia "sua profundidade enigmática que nenhuma nosologia esgota" (MHO 93).
    • A extrapolação dos termos "técnicos" de Freud Freud Sigmund Freud para a escala coletiva e sua importância crucial para a reflexão filosófica centrada na memória histórica.
      • A convicção de Ricœur Ricoeur
        Ricœur
        Paul Ricœur
        PAUL RICŒUR (1913-2005)
        Excertos por termos relevantes
        de que a "fenomenologia da memória ferida" (MHO 94) não deve se restringir à esfera privada.
      • A exigência de um custoso trabalho de luto também pelos traumas coletivos, análogos às feridas da memória individual.
      • A necessidade do trabalho de luto coletivo intensificada pelo fato de que os eventos fundadores de uma comunidade histórica frequentemente carregam a marca de uma violência original.
      • O paradoxo da experiência histórica encontrado por Ricœur Ricoeur
        Ricœur
        Paul Ricœur
        PAUL RICŒUR (1913-2005)
        Excertos por termos relevantes
        : a oscilação constante entre dois excessos (excesso de memória versus escassez de memória).
        • O excesso de memória conduz à repetição compulsiva dos mesmos recuerdos seletivos.
        • A escassez de memória domina nas estratégias de negação, exemplificadas sinistramente pelo negacionismo.
        • A compreensão essencial de que esses são dois modos opostos de eludir o trabalho de luto.
        • A citação ricœuriana sobre a memória-repetição e a crítica: "O que uns cultivam com deleite moroso, e o que outros fogem com má consciência, é a mesma memória-repetição. Uns amam perder-se nela, outros temem ser engolidos. Mas uns e outros sofrem do mesmo déficit de crítica. Não acedem ao que Freud Freud Sigmund Freud chamava o trabalho de rememoração" (MHO 96).
        • A definição de "memória crítica" como a única que pode ser considerada "feliz".
    • A transferência ricœuriana de uma hipótese formulada para a identidade narrativa ao trabalho de luto.
      • O questionamento sobre se o cruzamento entre trabalho de luto e trabalho de lembrança se aplica mais à memória coletiva do que à memória individual, ecoando a dúvida de Tempo e Narrativa III sobre a identidade narrativa ser mais adequada a entidades coletivas.
      • O início da percepção do vínculo entre o problema da memória e o da ipseidade.

2. Memória Manipulada

  • A manifestação mais evidente do entrelaçamento entre memória e identidade.
    • A fragilidade da memória como fator determinante da fragilidade da identidade, dada a exposição da memória às manipulações políticas.
    • A fragilidade essencial da memória por ter de enfrentar o enigma do tempo.
    • A necessidade de distinguir conceitualmente mêmeté (mesmidade) e ipseidade (si-mesmidade) para conceber uma identidade que se mantém ao longo do tempo.
    • A "tentação identitária" como mola propulsora oculta de todas as manipulações da memória: "no recolhimento da identidade ipse sobre a identidade idem" (MHO 98).
    • A recusa à ideia de que a alteridade possa ser constitutiva da própria ipseidade.
    • A segunda fonte da memória manipulada na "alteridade mal tolerada" (MHO 99), manifestada como intolerância.
    • A manipulação da memória como fruto de um obscurecimento "ideológico": a ideologia como cão de guarda de uma identidade coletiva rígida, ignorando a violência fundadora à qual se vincula.
    • A constatação ricœuriana, seguindo Max Weber, de que nenhuma forma de autoridade está imune às tentações da manipulação.
      • Diferentes manipulações nos sistemas de autoridade:
        • Sistema carismático: "O chefe, ou o ’pastor’, nos é enviado do alto".
        • Sistema fundado na tradição: "Sempre se fez assim".
        • Sistema burocrático: O especialista é o "sujeito suposto saber".
    • A astúcia perversa da manipulação na aliança entre a memória abusiva e a inteligência narrativa, inteiramente subjugada a relatos fabricados para consolidar uma identidade infalível e incapaz de autoquestionamento.

3. Memória Obrigada

  • O tratamento do tema ético-político do "dever de memória".
    • A dificuldade de confinar o problema à simples fenomenologia da memória.
    • O envio a uma "hermenêutica da condição histórica": a reflexão sobre as situações históricas que exigem o dever de memória e a imperatividade da injunção: "Tu te lembrarás!".
    • O mal-entendido resultante da escuta da injunção:
      • O "sintoma de assombro" gerado pelo "frenesi da comemoração".
      • A "captação da palavra muda das vítimas" (MHO 109).
    • A intenção de Ricœur Ricoeur
      Ricœur
      Paul Ricœur
      PAUL RICŒUR (1913-2005)
      Excertos por termos relevantes
      de escapar de todas as formas de "tirania da memória" em sua:
      • Fenomenologia da memória.
      • Epistemologia do conhecimento histórico.
      • Hermenêutica da condição histórica, onde defende a "natureza verdadeira da relação da história com a memória que é a de uma retomada crítica, tanto interna quanto externa" (MHO 337).

Ver online : Paul Ricoeur


GREISCH, Jean. Paul Ricoeur, l’itinérance du sens. Grenoble: J. Millon, 2001.