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Carneiro Leão – humanismo
terça-feira 18 de março de 2025, por
Excertos do livro "Aprendendo a Pensar", Tomo I.
Será que poderemos aceitar simplesmente alguma dessas caracterizações em que se exprimiu a experiência do homem com a filosofia no fim da antiguidade? Em que medida nós, homens modernos, filhos do átomo e da máquina, desdobramos ainda nossa existência no espaço de experiência do que os gregos chamavam "on", "theós", "episteme", "techne" e que traduzimos por "ser", "Deus", "ciência", "arte ou técnica"? Ainda dispomos de tanta força criadora de espírito para opor à experiência filosófica grega uma outra, ao mesmo tempo moderna e originária, que sirva de fundo e fundamento a um novo humanismo ? Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
A consciência de poesia, de mito, de política, de educação e culto que reinava no século VI AC, prende-se a este sentido humano da tragédia. O pensamento dos primeiros pensadores gregos questiona-lhe o humanismo , buscando restituir o mistério da tragédia originária. Trágico é o jogo de Dionísio na identidade universal das diferenças. A tragédia não é uma condição simplesmente humana. É o ser da própria realidade. A totalidade do real, o espaço-tempo de todas as coisas, não é apenas o reino aberto das diferenças, onde tudo se distingue de tudo, onde cada coisa é somente ela mesma, por não ser nenhuma das outras, onde os seres são indivíduos, por se definirem em estruturas diferenciais. A totalidade do real é também o reino misterioso da identidade, onde cada coisa não é somente ela mesma, por ser todas as outras, onde os indivíduos não são definíveis, por serem uni-versais, onde tudo é uno — Frag. 50: hen panta. No movimento de sua realização, a realidade é tanto o horizonte em expansão da luz de todas as singularidades como a uni-versalidade protetora da noite, onde todos os gatos são pardos. A noite dá à luz os indivíduos para no fim do dia os recolher em seu seio materno. O mundo é a articulação das diferenças de Dionísio Zagreu, dividido e fragmentado, com a identidade de Hades, simples e indiferenciado. Na tensão desta tragédia o homem assume as dimensões ontológicas de uma uni-versalidade individual. É a coisa mais estranha do mundo, to deinotaton, Nele advém a si mesma a estranheza do próprio mundo. Sua existência é um contínuo romper e prorromper de estruturas nas quais lhe é dada uma fisionomia, um sentido, uma lei. Tanto nos indivíduos come nas comunidades, a constituição humana transcende o querer das vontades porque quer sempre a ordem e con-juntura do cosmos. O homem não é micro-cosmos no sentido de miniatura do mundo. O homem é micro-cosmos no sentido de con-juntura da identidade, isto é, de con-juntura em que se juntam as diferenças no ser de tudo que é. E-ducar é e-duzir, ex-trair da individualidade de cada um a con-juntura uni-versal do mundo: paideia. O paradigma da paideia, os gregos o buscam na luta de seus mitos entre as forças noturnas da terra e as forças diurnas do céu, entre os titãs e os olímpios. Em estórias profundas de deuses e heróis, a mitologia grega narra as vicissitudes desta luta do princípio luminoso do espírito contra o princípio tenebroso da natureza. Os feitos de Hércules são os feitos da existência grega no caminho paideia. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
Sobre o Humanismo (GA9 ) é de uma composição muito bem estudada. Das questões propostas por Beaufret escolhe Heidegger, para tema de sua resposta, a mais fundamental, relativa ao humanismo : Comment redonner un sens au mot "Humanisme"? Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo
A discussão de seus pressupostos abre toda uma outra dimensão de pensamento: a dimensão do Pensamento Essencial, que, reconduzindo a vigência histórica do humanismo às suas raízes na metafísica, redimensiona a própria questão. Impõe a necessidade de questioná-la em seus fundamentos. O humanismo deixa de ser um valor indiscutível e, portanto, um trauma para o pensamento. Transforma-se na maior provocação para pensar na medida em que força o esforço pelo homem na direção das vicissitudes históricas da Verdade do Ser. Redimensionar o humanismo significa então superar-lhe as raízes num pensamento que é essencial por pensar a proveniência de sua própria Essência, isto é, por pensar a proveniência da Essência do homem. Por não des-cobrir e sim, antes, en-cobrir essa proveniência, o humanismo , não só como designação, mas principalmente como visão e esforço, é um lucus a non lucendo. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo
Todo humanismo , em suas diversas modalidades — desde o humanismo romano , passando pelo humanismo cristão e renascentista até o humanismo socialista e existencialista — se funda sempre na interpretação metafísica do homem. Articulado no binômio de essência e existência, determina o ser do homem como a realização (existência) das possibilidades (essência) de animalidade e racionalidade, quer confira o primado à essência, quer faça prevalecer a existência em suas várias dimensões. Uma determinação que não surgiu e se impôs por acaso. Vigora, ao contrário, na força de uma de-cisão do Sentido do Ser, como tal. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo
Daí a tese do Sein und Zeit de que, edificando-se num esquecimento do Ser, a metafísica exige ser re-pensada no fundamento de sua possibilidade e assim superada em seu esquecimento. O primeiro esforço nesse sentido é procurar arrancar o ser do homem à interpretação metafísica, re-pensando-o em relação ao Ser. Assim os termos Essência, Existência, Dasein, Substância, usados em Sein und Zeit , não visam a pensar o homem por seus significados metafísicos e em consequência não se identificam com a essentia, a existentia, o Dasein e a substância da metafísica e do humanismo . Procuram antes pensar a essencialização do homem dentro da referência do Ser e o fazem, como o espaço de articulação (Da-) da Verdade do Ser (Sein). Ora, uma vez que, de um lado, a grandeza e a dignidade do homem se essencializam originariamente nessa re-ferência e, de outro, o humanismo , em sua virulência metafísica, não a questiona nem a pensa, a tarefa imposta a um Pensamento Essencial é abandonar o humanismo , para, pensando a Verdade do Ser, tornar-se essencialmente humano. Na preparação desta tarefa concentram-se as investigações de Sein und Zeit . Por tais esclarecimentos Sobre o Humanismo é o passaporte para a dimensão onde se move o pensamento de Heidegger ao nível da Analítica Existencial. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo
Para responder às novas urgências desta inesperada viragem, já não servem as categorias de semântica e ideologia vigentes nos discursos tanto do humanismo liberal como da luta de classes. Mesmo as mais recentes preocupações ecológicas não atingem o sentido da revolta da vida contra a opressão que lhe movem as sociedades industrializadas, sejam capitalistas ou socialistas. É que, viajando na mesma viagem, toda categoria e preocupação se ressentem da mesma necessidade de revitalização. Procuram sair do pântano, puxando-se a si mesmas pelos cabelos. De sua pretensão ecológica valem as palavras de Heráclito : katharontai d’allos haimati miainomenoi, oion ei tis pelon embas pelo aponizoito: "É em vão que se purificam, aspergindo-se de sangue, como se alguém, tendo entrado na lama, pudesse lavar-se com lama"! Aprendendo a pensar I: A Morte do Pensador
As mesmas cadeias lógicas, que unem a estrutura di-mórfica da metafísica ao humanismo , ligam-na também ao monoteísmo. E assim como o humanismo masca e mascara a experiência originária do homem com o Ser, assim também o monoteísmo metafísico diverte e perverte a experiência originária do homem com o Divino. Ora, o Divino constitui o horizonte pluridimensional da deidade, o elemento misterioso onde poderá haver uma cor-respondência com Deus e os Deuses. Por isso o Pensamento Essencial procura sua Verdade fora da dualidade metafísica do teísmo e ateísmo. O ateísmo moderno não passa de uma conseqüência do cristianismo. É o cristianismo perfeitamente humanizado, isto é, no fundo totalmente descristianizado. Aprendendo a pensar I: Cristo e a Re-volução do Pensamento
Esforçando-se por retirar o enorme entulho da metafísica, o Pensamento Essencial se mantém equidistante do cristianismo e de seu reverso, o ateísmo, a fim de poder fazer a experiência da dessacralização, o horizonte comum de todos os modernos. A passagem, que conduz do Deus impessoal dos filósofos ao Deus pessoal do cristianismo, esta passagem considerada à luz da Verdade esquecida do Sagrado é tão ilusória como a passagem, que leva do humanismo da substância ao humanismo do sujeito. Heidegger lembra que a categoria de pessoa não é menos carregada das potências metafísicas de dessacralização e desumanização do que as categorias de objeto e de coisa. O Deus, para cujo nome o Pensamento Essencial procura a devida linguagem, não é, portanto, nem o Deus de Hegel nem o de Kierkegaard . É o Deus Divino de Jesus Cristo, que justamente por não ser da metafísica não pode ser também nem o Deus da religião do Absoluto nem o Deus da religião do Paradoxo. Tanto num como no outro caso, o pensamento fica enredado numa aberração não pensada do Ser, a cuja rede se atrelam então as disputas históricas sobre os preâmbulos da fé, sobre o Deus dos geómetras e o Deus dos cristãos, sobre a desmitização, sobre a dialética e o retorno sublimado do reprimido. Aprendendo a pensar I: Cristo e a Re-volução do Pensamento
10. No tocante à diferença entre autoridade e poder, esta provocação nos chega hoje na virulência da funcionalidade de tudo e de todos. Em seu processo de elaboração, o Ocidente aciona a integração das possibilidades humanas numa estrutura que submete a seu serviço todas as estruturações possíveis da humanidade. A vida desta estrutura é a força da igualdade. No movimento de sua tendência absorvente, a estrutura ocidental se impõe como a única integração humana possível. É o humanismo . A sua verdade é una, universal, necessária. No Cristianismo está a verdade do crer, na ciência, a verdade do saber, na técnica, a verdade do fazer. O agenciamento do humanismo é a História da funcionalidade, que atinge hoje o paroxismo de suas virtualidades. Pois o que vale são as funções. Tudo, que preencher a mesma função, se equivale. Na procura da função universal se concentram todos os esforços da modernidade. Aprendendo a pensar I: Poder e Autoridade no Cristianismo
A perspectiva de diferença do presente diálogo é constituida pelo Pensamento Essencial (das wesentliche Denken) de Martin Heidegger. Em seu processo de elaboração, o Ocidente é o movimento de integração das possibilidades do homem numa estrutura determinada, que submete a seu serviço todas as demais estruturas possíveis de hominização. O característico desta estrutura é a identidade "lógica" de racionalidade e animalidade. Segundo a tendência absorvente de sua virulência, a estrutura ocidental se impõe como a única integração humana possível. É o humanismo . A verdade é una, universal e necessária. Sua essência está na adequação como na lógica reside o seu lugar gerador. No Cristianismo está a verdade do crer, na ciência, a verdade do saber, na técnica, a verdade do fazer. O agenciamento do humanismo é a História da Metafísica que atinge sua plenitude no Espírito Absoluto. Aprendendo a pensar I: Hegel , Heidegger e o Absoluto
Esta de-cisão metafísica não é um presente para sempre passado nem se reduz a simples fato de um passado encoberto pela poeira de dois mil e quatrocentos anos. É mais do que objeto de curiosidade historiográfica. Mais do que uma relíquia no museu do Ocidente. É um passado tão vigente que constitui a fonte donde vivemos hoje, a tradição, que nos sustenta. Seu vigor Histórico promoveu as transformações, as experiências e as interpretações de quase 25 séculos. Deu lugar a motivos orientais. Concebeu o Cristianismo. Provocou o Humanismo, o Esclarecimento e a Ciência Moderna. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
Juntamente com uma interpretação da Alegoria da Caverna de Platão , o opúsculo Sobre o Humanismo foi publicado em 1947 na Suíça pela editora Francke. Apresenta o texto reelaborado de uma carta de 1946, em que Martin Heidegger responde a umas perguntas de Jean Beaufret . Ainda em 1947, apareceu na Alemanha uma outra edição de Vittorio Klostermann em que se troca o texto final do quarto último parágrafo. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo
No itinerário do pensamento heideggeriano, Sobre o Humanismo serve ao segundo momento de sua marcha dialética de pro-gresso e re-gresso para superar a metafísica. Nesse serviço desempenha uma função didática, esclarecendo o sentido do primeiro momento, exposto em Sein und Zeit e nas primeiras obras. Como introdução à leitura, vamos ressaltar aqui três pontos principais dessa contribuição. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo
1. Sobre o Humanismo e a Essência do Homem. Ao preparar o questionamento do problema sobre o Sentido do Ser, Sein und Zeit se propõe, por motivos inerentes à própria tarefa, re-pensar a Essência do homem a partir da "experiência fundamental do esquecimento do Ser". Para isso se serve dos termos e da gramática vigentes na filosofia, como essência, existência, substância, Dasein, ente, ser etc, como sujeito, participio, objeto, genitivo subjetivo e objetivo etc. Mas o emprego desses termos e dessa gramática tem uma função bem precisa. Visa acionar o superamento da metafísica. Isso veio provocar uma situação fundamental e intencionalmente ambígua. A desconsideração dessa ambigüidade levou a "erros" palmares de interpretação e entendimento. É que a compreensão dessa linguagem "intencionalmente ambígua" exige que, ao esforço de aprender-lhe o sentido habitual, corresponda um esforço de superá-la num pensamento que ponha em questão a própria Essência da linguagem. A ambigüidade da linguagem reflete em si mesma a dialética inerente ao movimento de superação. Por isso toda tentativa de se determinar o sentido dos termos e das funções gramaticais fora do contexto de pensamento, em que se articulam, tranca-se a qualquer possibilidade de entendimento. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo
Sobre o Humanismo vem remediar essa incompreensão, esclarecendo em que direção Sein und Zeit procura pensar a Essência do homem. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo
2. Sobre o Humanismo e a Essência da História: Dentro da originalidade de um Pensamento Essencial o homem não é um sujeito cuja "subjetividade" consiste em sujeitar às forças de suas pró-spectativas técnicas o ser dos entes, transformando-o na objetividade de simples objetos. No vigor de sua essencialização o homem é a locanda, em cujo espaço se desdobra a verdade dos entes. É no homem, como locanda do Ser, que os entes encontram lugar para serem o que são. Pois tanto a abertura da locanda como o desdobramento das possibilidades dos entes são instalados pela dinâmica de estruturação do Ser. O Ser é como Ser, estruturando a verdade dos entes na essencialização do homem, enquanto referência do Ser. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo
3. Sobre o Humanismo e os Pensadores Essenciais: o homem é o lugar de que necessita e, por conseguinte, cria o Ser, destinando-se "epocalmente", isto é, sendo o Ser. A consolidação da necessidade, que assim se destina, é a Linguagem onde mora o homem. A custódia desse ser da Linguagem se dá originariamente na palavra dos poetas e no pensamento dos pensadores, que articulam o destino "epocal" do Ser. Nesse sentido a Linguagem "é a casa do Ser" e "os poetas e pensadores são os seus vigias". Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo
É essa a-patridade essencial que opera no vigor de planetarização do mundo moderno. Heidegger vê nela as raizes históricas da experiência da alienação feita no pensamento de Marx . O que Marx quis pensar na alienação era o destinar-se do Ser na a-patridade, acirrada na "época" da Primeira Revolução Industrial. Sobre o Humanismo o ressalta sem possibilidade de equívocos: "Porque, ao fazer a experiência da alienação, Marx alcança uma dimensão essencial da História, a visão marxista da História é superior às restantes interpretações da história (Historie)". O desenvolvimento dessa interpretação foi iniciado num seminário (fechado aliás pelo serviço de segurança do nazismo) ministrado para um pequeno círculo de professores universitários no inverno de 1939-1940 a propósito do livro de E. Jünger , Der Arbeiter (O Trabalhador), e completado depois num longo seminário sobre Marx . É nesse último que Heidegger faz a distinção entre o marxismo e o comunismo como partido e concepção de mundo e o marxismo e comunismo como pensamento. A essa distinção alude Sobre o Humanismo quando diz: "Como quer que se tome posição frente às doutrinas do comunismo e suas fundamentações, no plano da História do Ser não há dúvida de que nele se exprime uma experiência elementar da História do mundo. Quem toma o comunismo apenas como "partido" ou como "concepção de mundo", pensa tão curto como quem, com a etiqueta de "americanismo", entende apenas — e de modo pejorativo — um estilo de vida particular". Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo
Em abrir a dimensão originária, onde um Pensamento Essencial pode questionar a Essência do homem, a Essência da História e a Essência do Pensamento, está a principal contribuição dessa Carta sobre o Humanismo. Mas se trata de uma con-tribuição que só se nos atribui, se aliarmos, à leitura do texto, o exercício do Pensamento. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo
Antes de responder e para poder simplesmente perguntar, o pensamento tem de pensar primeiro e sobretudo o que há com este "é" que se evoca necessariamente quando se pensa que o Ser é ou não é Deus. Pois há uma seqüência irreversível no itinerário do pensamento: a inteligência da divindade e deidade só é conhecida em sua verdade originária pelo advento cairológico, o Ser. Heidegger o exprimiu numa passagem já célebre da Carta sobre o Humanismo: "Erst aus der Wahrheit des Seins lásst sich das Wesen des Heiligen denken. Erst aus dem Wesen des Heiligen ist das Wesen von der Gottheit zu denken. Erst im Licht des Wesens von der Gottheit kann gedacht und gesagt werden, was das Wort "Gott" nennen soll". (Brief über den "Humanismus", in: Martin Heidegger, Wegmarken , Frankfurt a.M., Vittorio Klostermann, 1967, p.181.) "Não é senão a partir da Verdade do Ser que se poderá pensar a Essência do Sagrado. Não é senão a partir da Essência do Sagrado que se há de pensar a Essência da deidade. Não é senão na luz da Essência da deidade que se poderá pensar e dizer o que a palavra "Deus" há de evocar". Aprendendo a pensar I: Cristo e a Re-volução do Pensamento