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Barbuy: A Nação e o Romantismo

sexta-feira 8 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

7. Fichte  , Schelling   e Hegel   são essencialmente os filósofos do processo dinâmico. Concebem o mundo com todos os seus fenômenos como posição, oposição e síntese provisória dos contrários. Deus, a Natureza e o Estado são partes de um processo absoluto no qual o ser, o vir-a-ser e o dever-ser se identificam. Schelling   não altera essa perspectiva quando põe o Estado, não como sujeito do processo dialético, e sim como a condição desse processo. Schelling   diz, na sua Philosophie der Mythologie (23.a lição), que o Estado, com sua raiz na Eternidade, é a base durável e indestrutível de toda a vida humana e de todo o desenvolvimento posterior do espírito. Ele é o que é estável e o que não comporta revoluções. No processo dinâmico, o Estado é o reflexo do que permanece; todas as reformas devem dar-se dentro dele e não contra ele; a missão do Estado é garantir ao indivíduo a máxima liberdade, uma liberdade que se exerça acima e fora do Estado e nunca no âmbito do Estado; o Estado é uma base, uma hipótese, uma ponte de passagem necessária no processo do Espírito. O Estado, como espelho da Nação, deve permanecer desenvolvendo-se, refletindo o processo de que é a emanação.

Hegel   insere a Nação no processo universal dialético, como o desenvolvimento coerente de um princípio particular que exprime o Espírito Absoluto. A Nação é uma determinação particular, característica e inconfundível, do Espírito universal; o Volksgeist, ou espírito do povo, é a manifestação do Welt-geist, ou espírito do mundo; mas há no Volk um absoluto, enquanto ele encarna um destino intransferível, constituído pela explicitação das suas virtualidades.

Em Hegel  , a Natureza e a História são exteriorizações do Espírito, que toma consciência de si, determinando-se em entidades particulares. O Espírito Absoluto é a essência da Natureza e da História, que são etapas do seu desenvolvimento. A História é o Espírito nas épocas e nas Nações. A Nação, que se identifica com o Estado que a espelha, aparece como realidade muito mais concreta que o indivíduo, porque mais universal do que este último e porque encarnação mais ampla do Espírito universal. Um Volk em Hegel   se define como determinação do Absoluto incarnando-se no Estado. É uma determinação do Espírito Absoluto sob a forma do Espírito de um Povo. O Espírito do Povo é a fonte da liberdade; Hegel   diz, numa passagem da Filosofia do Espírito (§ 73), que a pessoa só existe como tal pela força interna e pela necessidade que o espírito do povo lhe comunica; a pessoa só é livre no espírito do Povo. Em outra passagem (§ 257) Hegel   diz que o Estado é a realidade em ato da Ideia moral objetiva; é o espírito moral como vontade substancial revelada, ciara a si mesma, que se conhece, se pensa, e realiza o que sabe por sabê-lo; o indivíduo tem sua liberdade substancial ligando-se ao Estado, como à sua essência, como fim e como produto de sua atividade.

Seria absurdo então confundir o Estado com a sociedade civil, como a Revolução Francesa e os regimes individualistas confundiram. Quando o Estado é confundido com a sociedade civil e visto como instituição destinada à segurança e à proteção da propriedade e da liberdade individual — quando em suma os interesses individuais são vistos como o fim do Estado, então o Estado não passa de um contrato civil e se torna facultativo ser membro ou não de um Estado. Mas se o Estado, como afirma Hegel  , é o Espírito objetivo, então o indivíduo não tem objetividade, nem verdade, nem moralidade senão com a condição de exprimir o espírito do seu Volk, cuja corporificação deve ser o Estado. O Volk é uma categoria mais geral que o indivíduo; nele se nasce e se morre; nele não se entra, dele não se sai por um ato de vontade deliberada. Sair do seu Volk seria o mesmo que querer sair de si mesmo, ser o que não se é. Numa passagem da Filosofia do Espírito (§98) Hegel   critica os conceitos de liberdade, igualdade e fraternidade; e noutra passagem (Phil. des Rechts, § 279) critica a noção de “soberania do povo”. Tais críticas decorrem espontaneamente da visão hegeliana do Estado e da noção do Volk como totalidade anterior às partes que a representam e como fonte da liberdade. Em Schelling   também (Phil. de Myth., lição 23) o Estado, longe de suprimir a liberdade individual, ao contrário, a torna possível, elevando o indivíduo à dignidade de pessoa. A lei, que o Estado impõe, só se torna opressiva quando não se processa a libertação moral interior.

Mas o Estado, assim visto por esses filósofos, não é o Estado burguês, o Estado mercador e o Estado de classes, e sim o Estado como reflexo da imagem divina, como forma superior da comunidade, no sentido verdadeiro de Gemeinschaft.

Não só em Fichte  , Hegel   e Schelling  , mas nos românticos em geral, inclusive nos católicos, a nacionalidade, com o Estado que dela decorre, assume o significado de um reflexo da imagem divina, isto é, do que Hegel   chamava o Espírito Absoluto. Schleiermacher  , teólogo, Arndt, poeta, Humboldt  , filólogo, veem a Nação sob essa perspectiva. Define-se claramente em Schleiermacher   e Hegel   a tese de que Deus confere a cada nacionalidade a sua missão terrena, animando-a de um espírito definido, que promove as suas inconfundíveis características peculiares, e cujo fim é sublimar o Espírito de Deus no mundo. Os católicos se lembravam da antiga doutrina patrística de que cada Nação tem a marca do seu Anjo.

Só no Estado se realizam todas as características do Volk, e o Volk é uma totalidade que assume e transcende o indivíduo. O destino do indivíduo se define em função duma escala de valores que emanam da cultura do seu Volk; os destinos e as realizações individuais não se compreenderiam fora dessas opções cuja essência está no Volk. O Espírito do Povo, assim como é concebido pelos românticos, não é portanto resultado do desenvolvimento histórico (ou dos sentimentos comuns, ou das experiências e derrotas sofridas em comum) e sim ao contrário, o desenvolvimento histórico de um povo é que é o resultado do seu Espírito particular. O Espírito particular emana de uma determinação do Absoluto, que projeta esse Volk, juntamente com a sua particular visão do mundo, com todo o conjunto das exteriorizações orgânicas da sua vitalidade, com sua língua e com sua música, numa determinada e intransferível missão histórica. De Hegel   — como de Fichte   e Adam Müller — derivam todas as doutrinas de Weltanschauung, toda a Völkerpsychologie, bem como a teoria spengleriana das fisionomias culturais. Porque Spengler  , afinal, pertence à linhagem dos idealistas, e não dos positivistas, como se tem erradamente afirmado.

O destino, ou a missão histórica de cada nacionalidade se explica em função do espírito que a produz. Cada povo que desempenhou um papel realmente histórico, executou uma parte da tarefa divina. De Hegel   pode-se dizer que realmente deu forma à filosofia da História como processo: Processo global evolutivo, marcado pelo desenvolvimento, pelo conflito e pela harmonia final das individualidades nacionais. Com Hegel   tomou corpo um tipo de pensamento histórico, que se afastava em linha diametral da noção racionalista e profana da História. — Voltaire havia lançado a expressão philosophie de l’histoire: era como se deveria chamar uma explicação puramente racional e geométrica dos acontecimentos históricos, explicação que Voltaire jamais encontrou, acabando por fazer derivarem os grandes acontecimentos de causas pessoais e fúteis; o esforço de Voltaire para encontrar as leis universais da história, faliu na sua própria obra, onde o acaso e o capricho dos indivíduos se tornaram mais importantes do que as “leis” universais da razão. — Os discípulos de Herder, ao contrário, graças ao método genético, puderam formular uma visão da História” sistemática e coerente. Puderam eliminar todas as explicações causais mecânicas, e puderam ver a História, não como crônica de fatos estáticos, que se passam no espaço e no tempo físico, mas como processo vital, que projeta e funda seus espaços e tempos próprios.