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Pensamento Ocidental Moderno
Lyotard - O transcendental em Husserl
Filósofos e Pensadores
quarta-feira 23 de março de 2022, por
Excertos da tradução em português feita por Mary Amazonas Leite de Barros, do livro de Lyotard , "A Fenomenologia".
Excertos da tradução em português feita por Mary Amazonas Leite de Barros, do livro de Lyotard , "A Fenomenologia".
IV — A problemática do sujeito.
A fenomenologia tomava pois o sentido de uma propedêutica às "ciências do espírito". Mas, a partir do segundo tomo das Investigações Lógicas esboça-se um salto que nos vai fazer entrar na filosofia propriamente dita. A "problemática da correlação", isto é, o conjunto dos problemas demonstrados pela relação do pensamento com seu objeto, uma vez aprofundada, deixa emergir a questão que constitui o seu núcleo: a subjetividade. É aqui provavelmente que a influência exercida por Brentano sobre Husserl (do qual havia sido aluno) se faz sentir; a observação chave da psicologia brentaniana era que a consciência é sempre consciência de alguma coisa, em outros termos que a consciência é intencionalidade. Se transferimos esse tema para o nível da eidética, isto significa que todo objeto em geral, o próprio eidos, coisa, conceito etc., é objeto para uma consciência, de tal modo que é necessário descrever presentemente a maneira pela qual eu conheço o objeto e segunda a qual o objeto é para mim. Poder-se-ia dizer que voltamos ao psicologismo? Chegou-se erroneamente a acreditar nisso.
A preocupação de fundar radicalmente o saber havia levado Husserl à eidética formal, isto é, a uma espécie de logicismo. Mas, a partir do sistema das essências, duas orientações se abrem: ou desenvolver a ciência lógica em mathesis universalis, quer dizer, constituir do lado do objeto uma ciência das ciências; ou então, em oposição, passar à análise do sentido para o sujeito dos conceitos lógicos utilizados por esta ciência, do sentido das relações que ela estabelece entre esses conceitos, do sentido das verdades que ela quer estabilizar, isto é, em resumo, pôr em discussão o próprio conhecimento, não para dele construir uma "teoria" mas para fundamentar com raízes mais profundas o saber eidético radical. Tomando consciência de que já na simples doação do objeto havia implicitamente uma correlação do eu e do objeto que devia remeter à análise do eu, Husserl escolheu uma segunda orientação. A radicalidade do eidos pressupõe uma radicalidade mais fundamental. Por quê? Porque o próprio objeto lógico me pode ser dado confusa ou obscuramente, porque eu posso ter de tais leis, de tais relações lógicas "uma simples representação", vazia, formal, operatória. Na sexta Investigação Lógica, Husserl mostra que a intuição lógica (ou categorial) não escapa a essa compreensão simplesmente simbólica a não ser quando é "fundada" na intuição sensível; trata-se de um retorno à tese kantiana segundo a qual o conceito sem intuição é vazio? Assim o creram os neokantianos.
Deste modo no segundo tomo das Investigações Lógicas destinguimos dois movimentos entrelaçados, um dos quais, introduzindo a análise do vivido como fundamento de todo conhecimento, parece conduzir-nos ao psicologismo; o outro, perfilando a compreensão evidente do objeto ideal sobre o fundo da intuição da coisa sensível, parece dobrar a fenomenologia sobre as posições do kantismo. Por outro lado, entre as duas vias definidas a cima, Husserl ingressa na segunda, e do "realismo" das essências parece deslizar para o idealismo do sujeito: "A análise do valor dos princípios lógicos conduz às investigações centradas no sujeito" (Lógica formal e transcendental, 203). Parece, portanto, que nesse estágio teremos de escolher entre um idealismo concentrado sobre o eu empírico e um idealismo transcendental à maneira kantiana: mas nem um outro podia satisfazer a Husserl , o primeiro porque torna incompreensíveis proposições verdadeiras, reduzidas pelo psicologismo a estados de consciência não privilegiados e porque derrama no próprio fluxo dessa consciência, tudo junto, aquilo que vale e aquilo que não vale, destruindo assim a ciência e destruindo-se a si mesmo enquanto teoria universal; o segundo porque explica somente as condições a priori do conhecimento puro (matemática ou física puras) mas não as condições reais do conhecimento concreto: a "subjetividade" transcendental kantiana é simplesmente o conjunto das condições que regulam o conhecimento de iodo objeto possível em geral, o eu concreto é remetido ao nível do sensível como objeto (motivo pelo qual Husserl acusa Kant de psicologismo) e o problema de saber como a experiência real entra efetivamente no quadro apriorístico de todo conhecimento possível para permitir a elaboração das leis científicas particulares permanece sem resposta, pelos mesmos motivos que na Crítica da Razão Prática a integração da experiência moral real nas condições a priori da moralidade pura permanece insolúvel, segundo confissão do próprio Kant . Husserl conserva, portanto, o princípio de uma verdade fundada no objeto do conhecimento, mas rejeita a separação deste e do sujeito concreto; é nesta etapa que se liga a Descartes .
Ver online : Jean Lyotard