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Pensamento Ocidental Moderno

Lyotard - O transcendental em Husserl

Filósofos e Pensadores

quarta-feira 23 de março de 2022, por Cardoso de Castro

Excertos da tradução em português feita por Mary Amazonas Leite de Barros, do livro de Lyotard  , "A Fenomenologia".

VII. — A intencionalidade.

Se o objeto pode ter o sentido de transcendência no próprio seio da imanência do eu é, em resumo, porque não existe, para sermos exatos, imanência na consciência. A distinção, entre os dados imanentes e os dados transcendentes sobre a qual Husserl   funda a primeira separação da consciência e do mundo é ainda uma distinção mundana. Na realidade a epoche fenomenológica revela um caráter essencial para a consciência, a partir do qual se esclarece o paradoxo que sublinhamos há pouco. A intencionalidade com efeito não é somente esse dado psicológico que Husserl   herdou de Brentano  , mas é ela que torna possível a própria epoche: perceber este cachimbo sobre a mesa é ter não uma reprodução em miniatura deste cachimbo no espírito como pensavam os associacionistas, mas visar o objeto cachimbo em si. A redução colocando fora de circuito a doxa natural (posição espontânea da existência do objeto) revela o objeto enquanto visado, ou fenômeno, o cachimbo agora é apenas algo à nossa frente (Gegenstand) e minha consciência aquilo para que existem coisas à nossa frente. Minha consciência não pode ser pensada se imaginariamente lhe retiramos aquilo de que ela é consciência, não se pode sequer dizer que ela seria então consciência de nada, pois esse nada seria de imediato o fenômeno do qual ela seria consciência; a variação imaginária operada sobre a consciência nos revela perfeitamente seu ser próprio que é ser consciência de algo. Pelo fato de ser a consciência intencionalidade torna-se possível efetuar a redução sem perder aquilo que é reduzido: reduzir é no fundo, transformar todo dado em algo que nos defronta, em fenômeno, revelar assim os caracteres essenciais do Eu: fundamento radical ou absoluto, fonte de toda significação ou força constituinte, liame de intencionalidade com o objeto. Bem entendido, a intencionalidade não tem apenas um caráter perceptivo; Husserl   distingue diversos tipos de atos intencionais: imaginações, representações, experiência de outrem, intuições sensíveis e categorias, atos da receptividade e da espontaneidade etc.; em suma todos os conteúdos da enumeração cartesiana: "Quem sou eu, eu que penso? Uma coisa que duvida, que ouve, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente." Por outro lado, Husserl   distingue o eu atual no qual existe consciência "explícita" do objeto e o Eu não-atual, no qual a consciência de objeto está implícita, "potencial". A vivência aluai (por exemplo o ato de apreensão atenta) é sempre limitada por uma área de vivências não-atuais, "o fluxo da vivência não pode jamais ser constituído de puras atualidades" (Ideen, 63). Todas as vivências atuais ou não-atuais são igualmente intencionais. Não se deve, portanto, confundir intencionalidade e atenção. Existe, pois, uma intencionalidade desatenta, implícita. Teremos oportunidade de retomar esse ponto, essencial para a ciência psicológica: contém em suma toda a tese fenomenológica referente ao inconsciente.

Vemos, pois, que podemos, com Husserl  , falar de uma inclusão do mundo na consciência, pois a consciência não é somente o pólo Eu (noesis) da intencionalidade, mas igualmente o pólo isto (noema); mas é necessário sempre precisar que esta inclusão não é real (o cachimbo está no quarto) mas intencional (o fenômeno cachimbo está na minha consciência). Esta inclusão intencional, revelada em cada passo particular pelo método de análise intencional, significa que a relação da consciência com seu objeto não é o de duas realidades exteriores e independentes, porquanto de um lado o objeto é Gegenstand, fenômeno que remete à consciência para a qual ele aparece, e de outro lado a consciência é consciência deste fenômeno. Sendo a inclusão intencional, é possível fundar o transcendente no imanente sem degradá-lo. Assim, a intencionalidade é por si mesma uma resposta à indagação: como pode haver um objeto em si para mim? Perceber o cachimbo é precisamente visá-lo como existente real. Assim, o sentido do mundo é decifrado como sentido que eu dou ao mundo, mas esse sentido é vivido como objetivo, eu o descubro, sem o que ele não seria o sentido que tem o mundo para mim. Colocando em nossas mãos a análise intencional, a redução nos permite descrever rigorosamente a relação sujeito-objeto. Essa descrição consiste em fazer operar a "filosofia" imanente à consciência natural e não em esposar passivamente o dado. Ora, esta "filosofia" é a própria intencionalidade que a define. A análise intencional (donde o seu nome) deve, pois, definir como o sentido do ser (Seinssinn) do objeto é constituído; pois a intencionalidade é um visar, mas é igualmente por sua vez um dar sentido. A análise intencional se apodera do objeto constituído como sentido e revela essa constituição. Assim; nas Ideen II, Husserl   procede sucessivamente às constituições da natureza material, da natureza animada e do Espírito. Não é preciso dizer que a subjetividade não é "criadora" pois ela por si mesma é apenas Ichpol, mas, por sua vez, a "objetividade" (Gegenstandlichkeit) só existe como pólo de uma visada intencional que lhe confere seu sentido de objetividade.


Ver online : Jean Lyotard