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Pensamento Ocidental Moderno
Lyotard - O transcendental em Husserl
Filósofos e Pensadores
quarta-feira 23 de março de 2022, por
Excertos da tradução em português feita por Mary Amazonas Leite de Barros, do livro de Lyotard , "A Fenomenologia".
VI. — O eu puro
Qual é o resultado dessa operação redutora? Na medida em que o eu concreto está entrelaçado com o mundo natural, é claro que está ele mesmo reduzido; em outros termos, eu devo me abster de toda tese a respeito do eu como existente; mas é igualmente claro que existe um eu, que justamente se abstém, e que é o próprio eu da redução. Esse eu é chamado eu puro e a epoche é o método universal pelo qual eu me apreendo como eu puro. Esse eu puro encerra um conteúdo? Não, no sentido em que ele não é um continente; sim, no sentido em que esse eu é alvo de alguma coisa; mas não se deverá aplicar a redução a esse conteúdo? Antes de responder a essa questão, convém constatar que à primeira vista a redução dissocia plenamente, de um lado o mundo como totalidade das coisas e de outro a consciência sujeito da redução. Procedamos à análise eidética da região coisa e da região consciência.
A coisa natural, por exemplo aquela árvore, me é dada dentro e por um fluxo incessante de esboços, de silhuetas. (Abschattungen). Estas silhuetas, através das quais se perfila a coisa, são vivências que se relacionam à coisa pelo seu sentido de apreensão. A coisa é como um "mesmo" que me é dado através das modificações incessantes e aquilo que faz com que ela seja coisa para mim (isto é em si para mim) é precisamente a inadequação necessária de minha apreensão dessa coisa. Mas essa ideia de inadequação é equívoca: enquanto a coisa se perfila através das silhuetas sucessivas, eu acedo a ela apenas unilateralmente, por uma de suas faces, mas simultaneamente me são "dadas" as outras faces da coisa, não "em pessoa", mas sugeridas pela face dada sensorialmente; em outros termos, a coisa tal como é dada pela percepção é sempre aberta sobre horizontes de indeterminação, "ela indica com antecedência um diversificado de percepções cujas fases, passando continuamente uma para a outra, se fundem na unidade de uma percepção" (Ideen, 80). Assim, a coisa não pode jamais ser dada a mim como um absoluto, há portanto "uma imperfeição indefinida que depende da essência insuprimível da correlação entre coisa e percepção de coisa" (ibid). No curso da percepção os esboços sucessivos são retocados e uma silhueta nova da coisa pode vir a corrigir uma silhueta precedente, não havendo, entretanto, contradição, pois o fluxo de todas essas silhuetas se funde na unidade de uma percepção, mas ocorre que a coisa emerge através de retoques sem fim.
A própria vivência, pelo contrário, é dada a si mesma numa "percepção imanente". A consciência de si dá a vivência em si mesma, isto é, tomada como um absoluto. Isto não significa que a vivência seja sempre apreendida adequadamente em sua plena unidade: na medida em que é um fluxo, está sempre já longe passada quando a quero tomar; eis por que, como vivência, é retida, somente como retenção que posso apreendê-la e por que o "fluxo total de minha vivência é uma unidade de vivência impossível, por princípio, de ser apreendido numa percepção, deixando-nos inteiramente "ao sabor" dele" (Ideen, 82). A dificuldade particular, que é ao mesmo tempo uma problemática essencial da consciência, se prolonga no estudo da consciência do tempo interior, mas ainda que não haja adequação imediata da consciência a si mesma, verifica-se que toda vivência traz em si a possibilidade de princípio de sua existência. "O fluxo da vivência, que é meu fluxo, o do sujeito pensante, pode ser, na medida da nossa vontade, não apreendida, desconhecido quanto às partes já decorridas e a decorrerem, bastando que eu aplique o olhar sobre a vida que se desenrola na sua presença real e que nesse ato eu me apreenda a mim mesmo como sujeito puro dessa vida, para que eu possa dizer sem restrições e necessariamente: eu sou, esta vida é, eu vivo: cogito" (Ideen, 85).
Por conseguinte, o primeiro resultado da redução era obrigar-nos a dissociar nitidamente o mundano ou natural em geral de um sujeito não mundano; mas, prosseguindo na descrição, conseguimos hierarquizar de certo modo essas duas regiões do ser em geral: concluímos com efeito pela contingência da coisa (tomada como modelo do mundano) e pela necessidade do eu puro, resíduo da redução. A coisa e o mundo em geral) não são apodíticos (Med. Cart.), não excluem a possibilidade de se duvidar deles, portanto, não excluem a possibilidade de sua não-existência; todo o conjunto das experiências (no sentido kantiano) pode revelar-se simples aparência e ser apenas um sonho coerente. Nesse sentido a redução e já por ela mesma, enquanto expressão da liberdade do eu puro, a revelação do caráter contingente do mundo. O sujeito da redução, ou eu puro é, pelo contrário, evidente a si mesmo de uma evidência apodítica, o que significa que o fluxo de vivência que o constitui enquanto ele se aparece a si mesmo não pode ser questionado nem na sua essência, nem na sua existência. Esta apodicidade não implica numa adequação; a certeza do ser do eu não garante a certeza do conhecimento do eu; mas ela basta para opor a percepção transcendental da coisa e do mundo em geral à percepção imanente: "A posição do mundo que é uma posição "contingente" se opõe à posição de meu eu puro e de minha vivência egológica, que é uma posição "necessária" e absolutamente indubitável. Toda coisa dada em "pessoa" pode também não ser, nenhuma vivência dada "em pessoa" pode não ser (Ideen, 86). Esta lei é uma lei de essência.
Indagamos anteriormente: a redução fenomenológica deve aplicar-se ao conteúdo do eu puro? Compreendemos agora que essa indagação supõe um contra-senso radical, o mesmo que Husserl imputa a Descartes : consiste ele em admitir o sujeito como coisa (res cogitans). O eu puro não é uma coisa, pois ele não se dá a si mesmo como a coisa lhe é dada. Ele não "coabita pacificamente" com o mundo e não tem igualmente necessidade do mundo para ser; pois, imaginemos que o mundo seja aniquilado (reconhecemos de passagem a técnica das variações imaginárias que fixam a essência), "o ser da consciência seria certamente modificado…, mas não seria atingido na sua própria existência". Com efeito, um mundo aniquilado significaria somente para a consciência que visa este mundo o desaparecimento no fluxo de suas vivências de certas conexões empíricas ordenadas, desaparecimento que acarretaria o de certas conexões racionais reguladas pelas primeiras. Mas esse aniquilamento não implica a exclusão de outras vivências e de outras conexões entre as vivências. Em outro termos, "nenhum ser real é necessário para o ser da própria consciência. O ser imanente é, portanto, indubitavelmente, um ser absoluto, na medida em que nulla "res" indiget ad existendum. Por outro lado, o mundo das res transcendentes se refere totalmente a uma consciência, e de modo algum, a uma consciência concebida logicamente, mas a uma consciência atual" (ibid., 92).
Assim, a epoche tomada na etapa dos Ideen 1 tem uma significação dupla: de um lado negativa, porquanto isola a consciência como resíduo fenomenológico e é nesse nível que a análise eidética (isto é ainda natural) da consciência se opera; por outro lado, positiva porque faz emergir a consciência como radicalidade absoluta., Com a redução fenomenológica, o programa husserliano de um fundamento indubitável e originário se realiza numa nova etapa: da radicalidade eidética ela nos faz descer a uma radicalidade pela qual toda transcendência tem fundamento. (Lembremos que é preciso entender por transcendência o modo de apresentação do objeto em geral). Perguntamos como uma verdade matemática ou científica pode ser possível e, contra o ceticismo, vimos que ela só é possível pela posição de essência daquilo que é pensado; esta posição de essência fazia intervir apenas um "ver" (Schau) e a essência era tomada numa doação originária. Depois, meditando sobre essa própria doação e mais precisamente sobre a doação originária das coisas (percepção) descobrimos, aquém da atitude pela qual somos para as coisas, uma consciência cuja essência é heterogênea a tudo aquilo de que ela é consciência a toda transcendência, e pela qual o próprio sentido da transcendência é colocado. Tal é a verdadeira significação da colaboração entre parênteses: voltar o olhar da consciência sobre si mesma, inverter a direção desse olhar e retirar, ao suspender o mundo, o véu que ocultava ao eu sua própria verdade. Sua suspensão exprime que o eu permanece exatamente aquilo que ele é, isto é, "entrelaçado" com o mundo e que seu conteúdo concreto continua a ser o fluxo dos Abschattungen através do qual se desenha a coisa. "O conteúdo concreto da vida subjetiva não desaparece na passagem para a dimensão filosófica, mas revela-se ali em toda a sua autenticidade. A posição do mundo foi "posta fora de ação" e não aniquilada: ela permanece viva ainda que sob uma forma "modificada" que permite à consciência ser plenamente consciente dela mesma. A epoche não é uma operação lógica exigida petas condições de um problema teórico, ela é o passo que dá acesso a um modo novo da existência a existência transcendental como existência absoluta. Tal significação só pode realizar-se num ato de liberdade (Tuan-Duc-Thao, Phénoménologie et matérialisme dialectique, págs. 73-74. Tudo que se dissesse a favor desse livro notável seria insuficiente)."
Ver online : Jean Lyotard