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Pensamento Ocidental Moderno
Lyotard - O transcendental em Husserl
Filósofos e Pensadores
quarta-feira 23 de março de 2022, por
Excertos da tradução em português feita por Mary Amazonas Leite de Barros, do livro de Lyotard , "A Fenomenologia".
VII. — Eu puro, eu psicológico, sujeito kantiano.
Não se trata, portanto, de uma volta ao subjetivismo psicologista, pois o eu revelado pela redução não é exatamente o eu natural psicológico ou psicofísico; não se trata tampouco de uma retomada da posição kantiana, pois o eu transcendental não é "uma consciência concebida logicamente, mas uma consciência atual."
1) Não se pode confundir eu transcendental e eu psicológico e sobre este ponto insistem as Méditations cartésiennes. É certo que, diz Husserl , "eu, que permaneço na atitude natural, eu sou também e a todo instante eu transcendental. Mas (acrescenta) só o percebo efetuando a redução fenomenológica". O eu empírico é "interessado no mundo", aí vive naturalmente; sobre a base deste eu a atitude fenomenológica constitui um desdobramento do eu, pelo qual se estabelece o espectador desinteressado, o eu fenomenológico. É esse eu do espectador desinteressado que examina a reflexão fenomenológica, sustentada ela própria por uma atitude desinteressada de espectador. É necessário, portanto, admitir simultaneamente que o eu de que se trata é o eu concreto, pois não existe Cambem nenhumas diferença de conteúdo entre psicologia e fenomenologia e que não é o eu concreto, porquanto está separado do seu ser no mundo. A psicologia intencional e a fenomenologia transcendental partirão ambas do cogito, mas a primeira permanece no nível mundano enquanto que a segunda desenvolve sua análise a partir de um cogito transcendental que envolve o mundo em sua totalidade, inclusive o eu psicológico.
2) Estaremos, por conseguinte, diante do sujeito transcendental kantiano? Muitas passagens tanto nas Ideen I como nas Méditations cartésiennes dão-nos tal impressão e não foi por acaso que o criticista Natorp manifestou sua concordância com as Ideen I (Husserls Ideen zun einer reinen Phänomenologie, Logos, VII, 1917-18). Tais sugestões provém principalmente do fato de Husserl insistir sobre o ser absoluto da consciência, a fim de evitar que se creia que esse eu não passa de uma região da natureza (o que é o próprio postulado da psicologia). Ele demonstra que, pelo contrário, a natureza só é possível pelo eu: "A natureza só é possível a título de unidade intencional motivada na consciência por meio de conexões imanentes… O domínio das vivências enquanto essência absoluta… é essencialmente independente de todo ser pertencente ao mundo, à natureza e não tem necessidade dele nem para a sua existência. A existência de uma natureza não pode condicionar a existência da consciência, pois uma natureza se manifesta ela mesma como correlato da consciência" (Ideen, 95-6). Os criticistas (Natorp , Rickert, Kreis, Zocher) se apoiam nessa filosofia transcendental, mostram que para Husserl assim como para Kant a objetividade depende do conjunto dessas condições a priori e que o grande problema fenomenológico é o mesmo que o da Crítica: como é possível um dada? Quanto ao aspecto intuicionista, e especialmente quanto a esta pura apreensão da vivência por ela mesma na percepção imanente, não resta dúvida de que para Kreis sua origem está num pressuposto empirista: como, com efeito, poderia ocorrer que um sujeito, que é apenas o conjunto das condições a priori de toda objetividade possível, seja também um fluxo empírico de vivência apto a apreender sua indubitabilidade radical numa presença originária para si? Kant escrevia: "Fora da significação lógica do eu, não possuímos nenhum conhecimento do sujeito em si, que está na base do eu como de todos os pensamentos, na qualidade de substrato." O princípio de imanência husserliano resulta de uma psicologia empirista, é incompatível com a constituição da objetividade. Salvo essa ressalva, Husserl seria um bom kantiano.
Num artigo célebre (Die phanomenologische Philosophie E. Husserls inder gegenwartigen Kritik, Kantstudien, 1933. Referendado por Husserl ) E. Fink , na ocasião assistente de Husserl , responde a esses comentários de forma propícia a esclarecer nosso problema: a fenomenologia não se coloca o problema da origem do mundo, problema que se propunham as religiões e as metafísicas. Sem dúvida o problema foi eliminado pelo criticismo porque era sempre colocado e resolvido em termos aporísticos. O criticismo substituiu-o pelo das condições de possibilidade do mundo para mim. Mas essas condições são por si mesmas mundanas e toda a análise kantiana fica no nível eidético apenas, isto é, mundano. É, portanto, evidente que o criticismo comete um erro de interpretação sobre a fenomenologia. Esse erro é especialmente manifesto no que concerne à questão da imanência e da "fusão" do sujeito transcendental com o sujeito concreto. Na realidade não existe fusão, mas, ao contrário, desdobramento; pois aquilo que é dado anteriormente a toda construção conceituai é a unidade do sujeito; e o que é incompreensível no criticismo em geral é que o sistema das condições o priori da objetividade seja um sujeito, o sujeito transcendental. Na realidade o sujeito perceptivo é o mesmo que constrói o mundo, no qual entretanto ele está pela percepção. Quando se explora na perspectiva de seu entrelaçamento com o mundo, para distingui-lo desse mundo, utiliza-se o critério da imanência; mas a situação paradoxal provém do fato de que o próprio conteúdo dessa imanência é tão-somente o mundo enquanto visado, intencional, fenômeno, ao passo que esse mundo é colocado como existência real e transcendente pelo eu. A redução que provém desse paradoxo permite-nos precisamente apreender como existe para nós um em si, isto é, como a transcendência do objeto pode ter um sentido de transcendência na imanência do sujeito. A redução devolve ao sujeito sua verdade de constituinte das transcendências, implícita na atitude alienada que é a atitude natural.
Ver online : Jean Lyotard