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Jean Wahl (1998:239-241) – filosofar é transcender
quinta-feira 17 de outubro de 2024, por
Hoje eu gostaria de concluir o que temos a dizer sobre essa palestra de Heidegger [GA27 ], e gostaria de lembrá-los do que dissemos no final da última aula que, para colocar o problema do ser, é necessário opor o ser a algo, como ele afirma. Portanto, o problema do ser implica a afirmação do nada. É somente se houver o nada, diz ele, que o ser pode ser revelado, e ele também afirma — e podemos questionar essas duas afirmações — que, para que haja o nada, deve haver algo que ele chama de mundo ou transcendência. Ele conclui, a partir dessa segunda afirmação, que o problema do nada está ligado ao problema da transcendência, e essa transcendência é o que ele chama de Grundcharakter, o fato primitivo e fundamental. O que é essa transcendência, esse fato fundamental? É o fato de que algo como a realidade humana de repente se introduz no meio do ente, de tal forma que nessa realidade humana pode ser revelado um ente que não é a realidade humana e que também é a própria realidade humana. Isso quer dizer, de uma forma complicada, que a transcendência é o fato de que existe essa realidade humana que vê coisas diferentes de si mesma e que se vê ela mesma. Também me lembro de que dissemos depois que essa questão a respeito do ente, em sua totalidade, nasce do fundamento deste ente. Este fundamento, que não é outro senão o nada, nos leva a estudar a questão do que ele chama de forças fundamentais do ente. Esse tipo de dominação, esse tipo de Beherrschung da natureza no devir histórico mostra que a história e a natureza não são regiões separadas, e o que teremos de ver é o ser da natureza no devir da história, teremos de estudar a relação das forças fundamentais do ser.
Assim, vemos que, de acordo com Heidegger, o problema [240] do ser que desenvolvemos, ou melhor, que colocamos na primeira parte do curso, desenvolve-se no problema do mundo; e, por outro lado, é a partir do problema do mundo que o problema do ser adquire seu verdadeiro significado, coloca-se no horizonte a partir do qual deve ser colocado. Assim, vemos no que Heidegger diz aqui uma espécie de subordinação do problema do ser [1], que parecia fundamental, ao que ele chama de problema do mundo. Em todo caso, não há nenhuma relação de exterioridade entre esses dois problemas, pois é o conjunto desses dois problemas que constitui o problema da transcendência, e este foi geralmente mal colocado pelos filósofos, tomou formas que não são a forma autêntica. Para dizer a verdade, este problema não pode ser completamente resolvido hoje em dia, e o importante, pelo menos de acordo com Heidegger, é apresentá-lo bem.
A falha da filosofia, de acordo com ele — e uma das características deste curso é afirmar isso — tem sido dar preeminência ao problema do ser, enquanto o que é preeminente é o problema do mundo. Mas, na realidade, nenhum deles pode ser separado do outro, e é a totalidade desses dois caminhos que seguimos que faz a filosofia. A partir disso, podemos ver em que sentido filosofar é transcender autenticamente — essa é a definição de filosofia para ele. Agora, a transcendência do Dasein é vista em ambos os problemas. De fato, teremos de nos perguntar se é o mesmo tipo de transcendência, porque no primeiro problema, o problema do ser, filosofar é ir do ente ao ser, é transcender indo do ente em direção ao ser, ao passo que no segundo problema, filosofar é tomar consciência de que há um mundo que é um ente outro que nós. É uma transcendência menos transcendente do que a primeira.
Mas vamos deixar essa observação de lado. O que precisa ser dito é que a filosofia não tem como tema a transcendência da mesma forma que as ciências têm como objeto tal e tal tema: a natureza do mundo físico, fenômenos relacionados à vida etc. Pois aqui não há nada manifesto [241] (Vorhanden) e a filosofia não descreve a transcendência porque ela não pode ser descrita, e filosofar é transcender. Aqui, mais uma vez, teremos de nos fazer uma pergunta: é provável que não devamos tomar a transcendência como um tema da mesma forma que a ciência toma tal e tal domínio do ser como um tema. A conclusão seria que, se não tomarmos uma coisa como tema, teremos de viver essa coisa e não lidar com ela. Portanto, há outro problema aqui: o problema de como lidar com a transcendência. Em todo caso, de acordo com Heidegger, a transcendência não pode ser isolada da filosofia, ela é formada na filosofia: filosofar é permitir que a transcendência chegue. No ato de filosofar, a transcendência se mostra e se torna um fenômeno, deixamos que ela se construa, e devemos sempre evitar tomá-la como uma coisa: devemos tomá-la como um fenômeno transcendental, inspirado por certas indicações da fenomenologia. De fato, o livro fundamental de Heidegger, o único que possuímos em sua totalidade, é, diz ele, apenas uma pré-concepção (Vorbegriff) da fenomenologia. Devemos ir além do que Heidegger diz em Ser e Tempo (§7), e mostrar que filosofar é essencialmente construir; e vemos novamente algo que já foi indicado: é a tendência idealista em certas partes da filosofia de Heidegger.
Ver online : Philo-Sophia
WAHL, Jean. Introduction à la pensée de Heidegger. Paris: Livre de Poche, 1998
[1] Cf. GA 27, § 45, p. 391 e seguintes