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Caron (2005:104-106) – O si-mesmo é, em si, hermenêutico

sábado 19 de abril de 2025, por Cardoso de Castro

Caron2005  

O mais importante na abordagem da origem da subjetividade não é constatar como ela se desdobra e a partir de qual instância, mas ir além dessa própria instância para captar o que torna possível tal comportamento: é preciso retornar à fonte da singularidade dos comportamentos fundamentais da subjetividade e praticar um método de acesso a essa [105] abordagem de retorno que seja ela mesma explicada na estrutura daquilo que está em questão. A orientação da abordagem filosófica deve estar ancorada, em sua própria possibilidade, naquilo para o qual ela se torna uma abordagem, caso contrário, para Heidegger, ela é considerada sem fundamento e apenas como uma abordagem entre outras possíveis — o que abre caminho para a proliferação de concepções de mundo (Weltanschauungen) e, consequentemente, para o relativismo.

Se a fenomenologia quer alcançar o que almeja, ou seja, o estabelecimento de seu método como ciência absoluta, ela se vê obrigada às mesmas exigências que foram as de Fichte   ou Hegel  : fundamentar o método no próprio desdobramento daquilo que se quer trazer à luz como fundamento. Mas, apesar das ambições de ciência absoluta e da sincera aversão de Husserl   às Weltanschauungen, esse problema, segundo Heidegger, não tem importância suficiente aos olhos de Husserl   para que ele faça tudo para resolvê-lo, e a fenomenologia permanece assim um método não fundamentado que chega a um princípio (o ego transcendental) que não carrega em si a necessidade do método que o conduz. De acordo com Heidegger, Husserl   acabará por reconhecer nesse problema uma falha em sua própria abordagem, mas não conseguirá resolvê-lo.

Ora, se a fenomenologia não consegue fundamentar seu método, se se contenta em ser apenas uma clarificação de conceitos metodológicos e de conceitos alcançados precisamente por esses conceitos metodológicos — ou seja, se não dirige seu olhar para as condições ontológicas de possibilidade daquilo em que se apoia —, ela inevitavelmente recai ao nível de uma Weltanschauung. Para Heidegger, é preciso manter na pensamento o fundamento de toda atividade hermenêutica ou especulativa, ou seja, "interrogar as condições ontológicas originárias de possibilidade de toda visão de mundo" (GA61  :27). E essa exigência se cumpre quando a "vivência da interrogação" (GA56-57  :67) em si mesma é assumida pelo pensamento.

O si-mesmo é, em si, hermenêutico. Esse é até mesmo seu comportamento fundamental: ele fala, ele quer produzir sentido, e essa atividade às vezes assume as proporções da produção de uma filosofia inteira. O si-mesmo, naturalmente hermenêutico e filosófico, projeta sobre o ser do ente uma interpretação: "todo Dasein humano realiza interpretação, interpreta a si mesmo como [106] todo ente de um modo ou de outro, e nessa interpretação, seja ela qual for, um sentido de ser se encontra justamente vivo" (GA19  :467). Essa dimensão deve, para Heidegger, não apenas ser notada, mas se tornar a pedra angular de todo pensamento sobre a essência do homem, "pois toda investigação exige um já aberto dentro do qual seu movimento se torna possível" (GA5  :77). A dimensão hermenêutica do si-mesmo deve ser levada em conta, para que não se oculte o caráter fundamental de um si-mesmo que é por natureza filósofo, e para que não se perca assim a questão da própria possibilidade da filosofia — ou seja, a relação com o ser que permite uma posição do si-mesmo sobre si mesmo e sobre o ser. [1]

 


[1Essa capacidade, por sua vez, deverá ter sua própria possibilidade interrogada: o si-mesmo só pré-compreende o ser, ele que está "sob a verdade", como diz Heidegger em seu curso de 1931-1932 sobre Platão, porque o ser se dirige a ele. Trataremos desse ponto em detalhes na segunda seção deste trabalho.