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Caron (2005:104-106) – O si-mesmo é, em si, hermenêutico
Caron2005
O mais importante na abordagem da origem da subjetividade não é constatar como ela se desdobra e a partir de qual instância, mas ir além dessa própria instância para captar o que torna possível tal comportamento: é preciso retornar à fonte da singularidade dos comportamentos fundamentais da subjetividade e praticar um método de acesso a essa [105] abordagem de retorno que seja ela mesma explicada na estrutura daquilo que está em questão. A orientação da abordagem filosófica deve estar ancorada, em sua própria possibilidade, naquilo para o qual ela se torna uma abordagem, caso contrário, para Heidegger, ela é considerada sem fundamento e apenas como uma abordagem entre outras possíveis — o que abre caminho para a proliferação de concepções de mundo (Weltanschauungen) e, consequentemente, para o relativismo.
Se a fenomenologia quer alcançar o que almeja, ou seja, o estabelecimento de seu método como ciência absoluta, ela se vê obrigada às mesmas exigências que foram as de Fichte
Fichte
Johann Gottlieb Fichte
JOHANN GOTTLIEB FICHTE (1762-1814)
ou Hegel
Hegel
Georg Wilhelm Friedrich Hegel
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831)
: fundamentar o método no próprio desdobramento daquilo que se quer trazer à luz como fundamento. Mas, apesar das ambições de ciência absoluta e da sincera aversão de Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
às Weltanschauungen, esse problema, segundo Heidegger, não tem importância suficiente aos olhos de Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
para que ele faça tudo para resolvê-lo, e a fenomenologia permanece assim um método não fundamentado que chega a um princípio (o ego transcendental) que não carrega em si a necessidade do método que o conduz. De acordo com Heidegger, Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
acabará por reconhecer nesse problema uma falha em sua própria abordagem, mas não conseguirá resolvê-lo.
Ora, se a fenomenologia não consegue fundamentar seu método, se se contenta em ser apenas uma clarificação de conceitos metodológicos e de conceitos alcançados precisamente por esses conceitos metodológicos — ou seja, se não dirige seu olhar para as condições ontológicas de possibilidade daquilo em que se apoia —, ela inevitavelmente recai ao nível de uma Weltanschauung. Para Heidegger, é preciso manter na pensamento o fundamento de toda atividade hermenêutica ou especulativa, ou seja, "interrogar as condições ontológicas originárias de possibilidade de toda visão de mundo" (GA61
GA61
GA 61
GA LXI
GA61EPG
GA61JAE
GA61RR
WS 1921-1922
Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles: Einführung in die phänomenologische Forschung (WS 1921-1922) [1985]
:27). E essa exigência se cumpre quando a "vivência da interrogação" (GA56-57
GA56-57
GA 56-57
GA LVI-LVII
SS 1919
Zur Bestimmung der Philosophie. 1. Die Idee der Philosophie und das Weltanschauungsproblem (post war semester 1919); 2. Phänomenologie und transzendentale Wertphilosophie (SS 1919); 3. Anhang: Über das Wesen der Universität und akademischen Studiums (SS 1919) [1987]
:67) em si mesma é assumida pelo pensamento.
O si-mesmo é, em si, hermenêutico. Esse é até mesmo seu comportamento fundamental: ele fala, ele quer produzir sentido, e essa atividade às vezes assume as proporções da produção de uma filosofia inteira. O si-mesmo, naturalmente hermenêutico e filosófico, projeta sobre o ser do ente uma interpretação: "todo Dasein humano realiza interpretação, interpreta a si mesmo como [106] todo ente de um modo ou de outro, e nessa interpretação, seja ela qual for, um sentido de ser se encontra justamente vivo" (GA19
GA19
GA 19
GA XIX
GA19MAC
GA19RS
Platon: Sophistes (WS 1924-1925) [1992] — Platão: Sofista
:467). Essa dimensão deve, para Heidegger, não apenas ser notada, mas se tornar a pedra angular de todo pensamento sobre a essência do homem, "pois toda investigação exige um já aberto dentro do qual seu movimento se torna possível" (GA5
GA5
GA5BD
GA5CL
GA5WB
Holzwege
GA 5
GA V
HW
CF2002
CB2012
CMNP
Chm
Holzwege (1935-1946) [1977]
:77). A dimensão hermenêutica do si-mesmo deve ser levada em conta, para que não se oculte o caráter fundamental de um si-mesmo que é por natureza filósofo, e para que não se perca assim a questão da própria possibilidade da filosofia — ou seja, a relação com o ser que permite uma posição do si-mesmo sobre si mesmo e sobre o ser. [1]
[1] Essa capacidade, por sua vez, deverá ter sua própria possibilidade interrogada: o si-mesmo só pré-compreende o ser, ele que está "sob a verdade", como diz Heidegger em seu curso de 1931-1932 sobre Platão, porque o ser se dirige a ele. Trataremos desse ponto em detalhes na segunda seção deste trabalho.