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Agamben (2015:255-259) – Amor
sexta-feira 11 de outubro de 2024, por
Foi muitas vezes observado que o problema do amor está ausente da obra de Heidegger. Em Sein und Zeit , que contém até uma ampla reflexão sobre o medo, a angústia e outras Stimmungen, o amor é mencionado uma única vez, em uma nota que reenvia para duas citações, uma de Pascal e outra de Santo Agostinho . Desse modo, Koepp, [1] em 1928, e Binswanger , [2] em 1942, censuraram Heidegger por não ter dado nenhum lugar ao amor em sua analítica do Dasein, fundada unicamente na Sorge; e, em uma Notiz, sem dúvida hostil, Jaspers pôde escrever que a filosofia de Heidegger é “ohne Liebe, daher auch im Stil unliebenswurdig” [“sem amor, e por isso, também no estilo, pouco amável”]. [3]
Tais críticas, como foi observado por Karl Löwith , [4] não deixam de ser ociosas enquanto não conseguirem substituir a analítica heideggeriana por uma analítica centrada no amor. Não obstante, o silêncio — ou o aparente silêncio — de Heidegger sobre o amor não deixa de ser problemático. Sabemos, de fato, que, entre 1923 e 1926, enquanto preparava sua obra fundamental, Heidegger viveu uma apaixonada relação amorosa com Hannah Arendt , então sua aluna em Marburgo. Ainda que as cartas e os poemas que documentam essa relação, conservados no Deutsches Literaturarchiv de Marbach, não sejam ainda acessíveis, [5] sabemos por um testemunho de Arendt que, mesmo 20 anos depois do fim da relação, Heidegger declarou que aquela tinha sido “a paixão de sua vida” [6] e que a elaboração de Sein und Zeit tinha acontecido sob o signo do amor.
Como explicar, então, a ausência do amor da analítica do Dasein? Tanto mais porque, da parte de Hannah Arendt , a relação tinha produzido um livro sobre o amor. Refiro-me à Doktordissertation, publicada em 1929, Der Liebesbegriff bei Augustin , em que não é difícil encontrar a influência de Heidegger. Por que Sein und Zeit permanece tão silencioso sobre a questão do amor? Examinemos um pouco mais de perto a nota sobre o amor em Sein und Zeit . Encontra-se no parágrafo 29, que é dedicado à Befindlichkeit e às Stimmungen. A nota não contém uma única palavra de Heidegger, mas apenas duas citações, a primeira de Pascal : “E daí deriva que em vez de dizer, falando das coisas humanas, que é necessário conhecê-las para amá-las, o que se tornou uma máxima, os santos, ao contrário, dizem, falando das coisas divinas, que é necessário amá-las para conhecê-las, e que só se entra na verdade pela caridade, da qual eles fizeram uma de suas máximas mais úteis”; a segunda é de Agostinho : “Não se entra na verdade senão através da caridade” (no intratur in veritatem, nisi per caritatem). Ambas as citações — e a segunda em particular — afirmam uma espécie de primado ontológico do amor como acesso à verdade. Graças à publicação das últimas lições de Marburgo do segundo semestre de 1928, sabemos que a referência a esse papel fundamental do amor provém das conversas com Max Scheler sobre o problema da intencionalidade. Escreve Heidegger: “Scheler foi o primeiro a mostrar, em particular no ensaio Liebe und Erkenntnis, que os comportamentos intencionais são de diferente natureza e que, por exemplo, o amor e o ódio fundam o conhecimento. Scheler retoma aqui motivações que estão presentes em Pascal e Santo Agostinho ” (Met. Anf., 169). [7] Tanto no ensaio citado por Heidegger como em um texto da mesma época, mas publicado postumamente sob o título de Ordo Amoris, Scheler insiste na condição originária do amor. Podemos aí ler: “Der Mensch ist, ehe er ein ens cogitans oder ein ens volens ist, ein ens amans” [O homem, antes de ser um ens cogitans ou um ens volens, é um ens amans”]. Heidegger está perfeitamente consciente da importância fundadora do amor, fundadora no sentido em que condiciona precisamente a possibilidade do conhecimento e do acesso à verdade. Por outro lado, nas lições do semestre de verão de 1928, a referência ao amor tem lugar no contexto de uma discussão sobre o problema da intencionalidade, na qual Heidegger critica a concepção corrente da intencionalidade como relação cognitiva entre um sujeito e um objeto. Esse texto é precioso porque, através de tal crítica, que não poupa seu mestre Husserl , Heidegger mostra como, para ele, a noção de intencionalidade foi superada pela estrutura de transcendência que Sein und Zeit chama de In-der-Welt-Sein. Na concepção da intencionalidade como relação entre um sujeito e um objeto, o que, para Heidegger, permanece inexplicado é justamente o que seria preciso explicar, ou seja, a relação em si mesma:
Essa falta de explicação repercute sobre a indeterminação do que está aí em relação […] Procurou-se recentemente conceber essa relação como uma relação de ser […] Com essa explicação não se esclarece nada, enquanto não se disser que gênero de ser está aqui em questão e enquanto o gênero de ser dos entes, entre os quais a relação deve se dar, permanecer obscuro […] O ser é aqui pensado, à maneira de Hartmann e de Scheler , como ser disponível [Vorhandensein]. Ora, essa relação não é nada, mas também não é algo da ordem do ente, no sentido de algo simplesmente disponível […] Um dos objetivos preliminares fundamentais de Sein und Zeit é o de esclarecer essa relação em sua essência original (GA26 :Met. Anf., 163-164).
Mais original ainda que a relação sujeito-objeto é, para Heidegger, a autotranscendência do In-der-Welt-Sein, no qual o Dasein se abre ao mundo para além de toda subjetividade. Antes que algo como um sujeito ou um objeto possa se constituir, o Dasein — essa é uma das teses centrais de Sein und Zeit — está já aberto ao mundo: “Das Erkennen selbst vorgängig grundet in einem Schon-sein-bei-der-Welt” [“O conhecer em si mesmo se funda previamente em um já-ser-junto-ao-mundo”] (SuZ , p. 61). E é só a partir dessa transcendência original que algo como uma intencionalidade pode ser compreendida quanto a seu modo de ser próprio.
Portanto, se Heidegger, reconhecendo plenamente o estatuto do amor, não trata tematicamente desse problema, é precisamente porque o modo de ser da abertura mais original de todo conhecimento (aquela que, segundo Agostinho e Scheler , tem lugar no amor) é, em certo sentido, o problema central de Sein und Zeit . Por outro lado, o amor, se quisermos compreendê-lo a partir dessa abertura, não pode mais ser concebido segundo a representação corrente, como uma [258] relação entre um sujeito e um objeto ou como a relação entre dois sujeitos. Ele deve antes encontrar seu lugar e sua articulação própria no Schon-Sein-bei-der-Welt que caracteriza a transcendência do Dasein.
Ora, qual é o modo de ser desse Schon-Sein-bei-der Welt? Em que sentido o Dasein está sempre junto ao mundo e às coisas que o circundam antes ainda de conhecê-las? Como é possível para o Dasein se abrir a qualquer coisa sem fazer dela o correlato objetivo de um sujeito cognoscente? E como é possível que a própria relação intencional seja esclarecida quanto a seu modo de ser particular e em seu primado em relação ao sujeito e ao objeto?
É nesse contexto que Heidegger introduz a noção de facticidade (Faktizität).
Ver online : Philo-Sophia
AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento. Ensaios e conferências. Tr. Antônio Guerreiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2015
[1] KOEPP, Wilhelm. Merimna und Agapei. In: KOEPP, Wilhelm (Ed.). Reinhold-Seeberg-Festschrift. Leipzig: Deichert, 1929.
[2] BINSWANGER, Ludwig. Grundformen und Erkenntnis menschlichen Daseins. Zurich: Niehans, 1942. Heidegger respondeu 20 anos depois a essas críticas no seminário de Zollikon, evocando explicitamente o nome de Binswanger: “Uma vez que o cuidado é visto unicamente como a constituição fundamental do Dasein em seu isolamento como sujeito e como sua determinação antropológica, ele pode parecer, com boas razões, uma interpretação do Dasein unilateral e sombria, que requer uma integração através do ‘amor’. Mas o cuidado, corretamente entendido, isto é, de modo fundamental, nunca é separável do ‘amor’, ele nomeia a constituição extático-temporal do caráter fundamental do Dasein, isto é, a compreensão do ser. O amor se funda de maneira tão decisiva na compreensão do ser como o cuidado entendido antropologicamente. E podemos esperar que uma determinação essencial do amor, que procure seu fio condutor na determinação fundamentológica do Dasein, seja mais profunda e de maior alcance que a definição do amor, que vê nele apenas algo mais elevado em relação ao cuidado” (HEIDEGGER, Martin. Zollikoner Seminare. Frankfurt am Main: Klostermann, 1987. ρ. 237).
[3] JASPERS, Karl. Notizen zu Martin Heidegger. Munchen; Zurich: Piper, 1978. p. 34.
[4] LÖWITH, Karl. Phänomenologische Ontologie und protestantische Theologie. In: POGGELER, Otto (Ed.). Heidegger. Perspektiven zur Deutung seines Werks. Königstein: Athenäum, 1984. p. 76.
[5] As cartas foram depois publicadas: ARENDT, Hannah; HEIDEGGER, Martin. Briefe 1925 bis 1975 und andere Zeugnisse. Frankfurt am Main: Klostermann, 1998 (tradução italiana: Lettere 1925-1975 e altre testimonianza. Torino: Edizioni di Comu-nità, 2001).
[6] YOUNG-BRUEHL, Elisabeth. Hannah Arendt. For Love of the World. New Haven; London: Yale University Press, 1984. p. 247 (tradução italiana: Hannah Arendt 1906-1975. Per amore dei mondo. Torino: Bollati Boringhieri, 1990).
[7] As obras de Heidegger são citadas com as seguintes abreviaturas: SuZ (= Sein und Zeit. Tubingen: Niemeyer, 1927); Weg. (= Wegmarken. Frankfurt am Main: Klostermann, 1967); Nietzsche (Nietzsche. Pfullingen: Neske, 1961); Sache (= Zur Sache des Denkens. Tubingen: Niemeyer, 1976); Gel. (= Gelassenheit. Pfullingen: Neske, 1959); Ar. Met. (= Aristoteles, Metaphysik Theta 1-3. Frankfurt am Main: Klostermann, 1981. v. 33 da Gesamtausgabe)·, Met. Anf. (= Metaphysische Anfangsgrunde der Logik im Ausgang von Leibniz, ivi, 1978. v. 26 da Gesamtausgabe); Phän. Int. (= Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles. Frankfurt am Main: Klostermann, 1985. v. 61 da Gesamtausgabe).