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Luijpen (1973:395-397) – Ser para Deus?
terça-feira 19 de novembro de 2024, por
Entre os comentaristas de Heidegger, perdurou por longo tempo a incerteza quanto a saber-se se o filósofo, de acordo com seu sistema, deve ser chamado ateísta ou não. Sartre denomina-o representante do existencialismo ateu, mas não se dá ao trabalho de indicar as razões que o induziram a resolver uma questão que tanto preocupou a muitos comentadores. [1] Porém, as obras de Heidegger posteriores ao Ser e Tempo mostram que Sartre não tem razão.
Neste ponto, Heidegger precisa defender-se contra os maiores mal-entendidos. Por ter ele designado existência a essência do homem, alguns de seus críticos imaginaram que quis fazer o homem tomar o lugar de Deus, [2] visto que a metafísica tradicional concebia a essência de Deus como existência e Heidegger chama assim a essência do homem. [3] Não se viu, ou não se quis ver, que para ele o termo “existência” exprime precisamente o modo específico do ser do homem, distinto do modo de ser de uma coisa ou de Deus. A intenção do filósofo era indicar claramente que em nosso pensamento não podemos divinizar o homem, dado que o ser do homem é um ser-no-mundo, o que não se há de afirmar de Deus de modo algum. “Deus é, mas não existe”. [4]
Para alguns representantes do existencialismo e da fenomenologia, contudo, a maneira como denomina o homem “existência” constitui o fundamento direto de seu ateísmo. Já mencionamos que aqueles que definem o homem como puramente ser-no-mundo cortam a priori a possibilidade de chamar o ser do homem também um “ser para Deus”. [5] Ora, é digno de nota que Heidegger denomine, de fato, o homem um ser-no-mundo, mas que nunca tenha asseverado não ser ele outra coisa senão isso. Ao contrário, segundo Heidegger, pela interpretação do homem como ser-no-mundo ainda não se decidiu, nem positiva nem negativamente, a possibilidade de um “ser para Deus”, mas abriu-se a possibilidade de formular a questão do eventual relacionamento do homem com Deus. [6]
Entretanto, uma eventual relação do homem com Deus não será ilusória, já que ficou estabelecido que o ser-no-mundo não tem sobre si uma instância superior à morte? [7] Para K. H. Roessing, a teoria heideggeriana da morte indica que o filósofo não reconhece um “mundo superior”. [8] A conclusão, porém, não procede. Pode-se bem conceder a Heidegger que a morte é a suprema instância do ser-no-mundo. A questão toda é se o homem se resume em seu ser-no-mundo. Se o ser do homem se deve denominar também um ser-acima-do-mundo, a morte é e fica sendo a suprema instância do ser-no-mundo, mas não do ser-homem integral. Em parte alguma Heidegger adianta que o ser-homem se esgota com o ser-no-mundo. Em nenhuma passagem, portanto, exclui que o sujeito, entendido como intencionalidade funcionante, seja a “afirmação” do Absoluto Transcendente. Jamais o filósofo formulou explicitamente esse aspecto do sujeito existente, visto que primeiro quis preparar o terreno que possibilite qualquer autêntica afirmação.
Uma vez que a preocupação de Heidegger consiste no preparo de tal terreno, acha muito difícil, se bem que não impossível, a reflexão sobre o caminho para Deus. Ela será achada de novo quando o pensamento tiver encontrado sua dimensão própria, ou seja, quando se tiver desenvolvido como um pensamento da “verdade do ser”. “Somente a partir da verdade do ser será possível o ‘acontecer’ (a essência) do sagrado; somente a partir do ‘acontecer’ do sagrado pode pensar-se o ‘acontecer’ da ‘divindade’; somente na luz do ‘acontecer’ da ‘divindade’ pode ser pensado e dito o que a palavra ‘Deus’ pretende significar”. [9] Como o pensamento deve preparar um “lugar” para o “acontecer” do ser, onde o homem seja sensível ao “chamamento do ser”, e como, em outras palavras, o homem deve primeiramente reencontrar o alcance de sua própria essência a fim de que a verdade do ser possa “acontecer”, cumpre também que o homem ache primeiramente a dimensão do “acontecer” do sagrado, antes de esperar pensar ou dizer alguma coisa sobre o que significa a palavra “Deus”. Heidegger presume que a reflexão sobre a religiosidade pode constituir o caminho do pensamento para Deus.
Ver online : Luijpen
LUIJPEN, Wilhelmus Antonius Maria. Introdução à fenomenologia existencial. Tr. Carlos Lopes de Mattos. São Paulo: EDUSP, 1973
[1] Sartre, J.-P., L’Existencialisme est un Humanisme, Paris, 1954. (Cf. trad. port. de Vergílio Ferreira: O Existencialismo é um humanismo, 2.a ed. [Lisboa], Presença [s. d.])., p. 17.
[2] T. Ando, Metaphysics, A critical survey of its meaning, The Hague, 1963, p. 107.
[3] “O cúmulo da confusão seria, contudo, pretender explicar-se a frase sobre a ecsistente essência do homem como se fosse a transposição secularizada, para o homem, de uma ideia que na teologia cristã se aplica a Deus (Deus est suum esse)”. M. Heidegger, Über den Humanismus, pp. 16-17.
[4] M. Heidegger, Was ist Metaphysik? [GA9], p. 15.
[5] “Mas se reencontramos o tempo sob o sujeito, e se ligamos ao paradoxo do tempo os do corpo, do mundo, da coisa e de outrem, compreenderemos que não há nada a compreender além disso”. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 419.
[6] “Pela interpretação do ser-aí como ser-no-mundo, nada fica decidido, nem positiva nem negativamente, acerca de um possível ser para Deus. Mas, pelo esclarecimento da transcendência, adquire-se pela primeira vez um conceito suficiente do ser-aí, por meio do qual se pode agora perguntar como se põe ontologicamente a relação do ser-aí com Deus”. M. Heidegger, Vom Wesen des Grundes [GA9], Frankfurt a. M. 1949, p. 39, nota 56.
[7] Heidegger, M., Sein und Zeit, 6.a ed., Tübingen, 1949., p. 313.
[8] K. H. Roessing, Martin Heidegger ais Godsdienstwijsgeer, Assen, 1956, p. 149.
[9] M. Heidegger, Über den Humanismus [GA9], pp. 36-37.