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Fragata (1962) – O impulso psicológico da fenomenologia de Husserl
terça-feira 18 de março de 2025, por
Júlio Fragata S. I.
Professor da Faculdade de Filosofia de Braga
Problemas da Fenomenologia de Husserl
Edições Livraria Cruz
Braga 1962
I. — Durante os estudos secundários, efectuados em Olmutz, o talento de Husserl não despertou a atenção de ninguém. Era um aluno vulgar que gostava sobretudo da Matemática e das Ciências Naturais. Nestas predileções começavam a estender as suas raízes duas características fundamentais que depois nele se desenvolveriam pujantemente: A ânsia de rigor absoluto, característico na Matemática; e o impulso da elaboração científica a partir da observação ou contacto com a realidade, próprio das ciências experimentais. Esta segunda característica era corroborada por um espírito analítico que determinará a sua escolha, ao matricular-se na universidade de Leipzig, em 1876, dedicado à Astronomia, ciência peculiarmente analítica, de observação extravertida. Um transmutamento para a análise introvertida bastará para abrir um novo universo, todo interioridade, que é o ambiente das Ciências Psicológicas. Frequentou também um curso de Filosofia, como disciplina auxiliar. Não se sentiu, então, atraído por esta matéria; mas é de salientar que esse curso foi dado por Wilhelm Wundt, um dos nomes mais célebres na história da Psicologia Experimental.
Quando, formado em Matemáticas, se viu na necessidade de aprofundar a Filosofia, foi para Viena que se dirigiu onde, durante dois anos, assistiu entusiasmado, às aulas de Franz Bretano que desenvolvia as suas lições preponderantemente orientadas no sentido duma Psicologia. O contacto com Brentano foi decisivo na vocação filosófica de Husserl . E pois através de um autor particularmente interessado pela Psicologia que Husserl se insinua na Filosofia. A ele ficou a dever também um conceito fundamental da sua fenomenologia,—o conceito de intencionalidade. O termo fora já usado na Filosofia Escolástica para indicar o caracter representativo do objecto imanente que, por sua mesma natureza, tende a levar-nos ao objecto exterior. Brentano aplicou e desenvolveu esta doutrina a propósito dos actos psicológicos e, neste sentido, escreveu a frase citada por Husserl nas Investigações lógicas: «Qualquer fenômeno psíquico é caracterizado pelo que os escolásticos da Idade Média chamaram inexistência intencional (ou mental) de um objecto.
Entretanto, nesta mesma época, a par das ciências naturais, começava a desenvolver-se uma nova ciência — a Psicologia Experimental. Esta ciência, dado o seu método preponderantemente reflexivo, aproxima-se do impulso que anima a Filosofia pela qual Husserl começava a interessar-se, e, como ciência experimental e analítica, está também em consonância com o espírito positivo e analítico de Husserl . Além disso, essa disciplina ostentava-se não só com desenvolvimento pujante, mas também avassalador. Buscava-se um fundamento radical de todas as ciências. Onde encontrá-lo?— As atenções voltavam-se para a Psicologia: A Lógica e, com ela, a Filosofia e todas as ciências teriam que apoiar-se ultimamente na Psicologia. O próprio Husserl , nas suas Investigações lógicas, oferece-nos um resumo da argumentação psicologista: «De qualquer modo que consideremos a arte lógica…. esta implica sempre uma actividade ou produto psíquico, como objecto de regularização prática». Temos portanto uma espécie de matéria psicológica de cuja elaboração dependem todas as nossas actividades cognoscitivas que são fundamentais em qualquer ciência. Por isso, uma fundamentação radical tem que partir necessariamente das normas que regulam a elaboração dessa matéria, as quais constituem a ciência psicológica: «O fundamento teórico para a construção duma arte lógica, conclui Husserl no resumo desta argumentação, terá que ser portanto subministrado pela Psicologia, ou, mais precisamente, pela Psicologia do conhecimento». Tal opinião arrebatara o ânimo de muitos pensadores a que Husserl explicitamente se refere, como J. St. Mill na Inglaterra e Lipps, Wundt, Sigwart, Erdmann, na Alemanha.
O próprio Husserl começou por aderir também á mesma ideia. Terminada a sua estadia em Viena, em 1886, Brentano aconselhou-o a dedicar-se ao ensino na universidade de Halle, onde começou como assistente de um famoso psicólogo da época, Karl Stumpf. Foi aqui que Husserl escreveu um pequeno opúsculo Sobre o conceito de número, publicado em 1887, cujas ideias desenvolveu depois na Filosofia da Aritmética. Preocupa-o ainda o problema da fundamentação da Matemática, ou, dum modo mais radical, da Aritmética e do número. E esta fundamentação pretende vê-la precisamente na Psicologia: O número depende duma pluralidade que nós reunimos por um acto psíquico, e portanto duma conexão psicológica de objectos. O universo é, nesta altura, para Husserl , um conteúdo de actos psíquicos e, consequentemente, tudo depende da Psicologia.
2. — Esta concepção não dominou muito tempo o espírito de Husserl : «A função da análise psicológica pareceu-me fecunda, escreve, quando se tratava da origem das representações matemáticas ou da formação dos métodos práticos, que de facto está psicologicamente determinada. Mas quando se passava das conexões psicológicas do pensamento para a unidade lógica do conteúdo de pensamento já não se manifestava nenhuma clareza nem verdadeira continuidade». E surgiu a dúvida angustiosa: será a objectividade da Matemática e da Ciência em geral compatível com uma fundamentação da Lógica na Psicologia?…
Ao exame desta questão e à busca duma ciência capaz de substituir a Psicologia no seu caracter fundamentador dedicou Husserl as Investigações lógicas. Com elas podemos dizer que surge uma nova orientação na problemática filosófica que até então caminhava ainda profundamente influenciada pelo idealismo de Kant e que posteriormente se desvia para um plano mais concreto e realista.
O primeiro volume é o refutação cerrada do psicologismo, e portanto da mesma posição anteriormente defendida por Husserl , segundo a qual a Psicologia — e precisamente a Psicologia Experimental — deveria ser o fundamento último de todo o saber humano. Neste ataque, baseia-se Husserl na distinção fundamental entre acto e conteúdo do acto: «Em primeiro lugar, escreve, confundem-se as leis lógicas com os juízos no sentido de actos de juízo, nos quais elas possivelmente se manifestam, ou seja, as leis como conteúdo de juízo com os próprios juízos ». Esta confusão entre conteúdo da lei e acto de afirmar esse conteúdo, entre ideal e real, leva-nos a confundir a lei lógica que se refere ao conteúdo de pensamento com a lei psicológica que regula o acto de pensar. Identificadas as leis do conteúdo do acto com as leis que regulam o processo psicológico, seguir-se-ia que a verdade, que constitui o conteúdo, ficaria dependente do processo psíquico, ou seja, da constituição da natureza humana, e por isso « não existiria se não existisse essa constituição» e diversificar-se-ia também com ela. Teríamos portanto um mero relativismo: — a verdade deixaria de ser absoluta.
O segundo volume das Investigações lógicas, dividido em dois nas edições ulteriores, apresenta o primeiro impulso husserliano em ordem ao estabelecimento dum fundamento adequado. É aqui que aponta, pela primeira vez, para a fenomenologia. A ciência absolutamente fundamentadora deve fazer-nos ir, dum modo evidente, às mesmas coisas que depois apenas temos que descrever ou exprimir fielmente. Esta concepção do papel fundamentador da fenomenologia implica uma série de problemas de interesse psicológico e que Husserl há-de desenvolver, não só aqui, mas em obras ulteriores, com mentalidade fina de psicólogo.
O problema da evidência está na base desta concepção original. E é escusado salientar o seu interesse no âmbito da Psicologia. O contacto com as coisas, a que deve levar a evidência, mais uma vez revela o caracter positivo de Husserl e pode dizer-se um derivativo da antiga paixão pelas ciências naturais e pela Psicologia Experimental. E verdade que estas «coisas» têm que ultrapassar o caracter fáctico, ou contingente, e adquirir uma interpretação ideal, ou «eidética», para usar a palavra predilecta de Husserl . Mas conservar-se-á sempre a necessidade dum contacto imediato com essas realidades ideais— os «fenômenos» da fenomenologia.
Estas essências, no estádio evolutivo de Husserl na época das hivestigações lógicas, não perdem ainda inteiramente o caracter psicológico. E o próprio Husserl que o reconhece. Poderíamos, por isso, ser levados a afirmar que ele incorreria, afinal, nos inconvenientes do psicologistno que pretendia refutar. Essas essências nílo seriam mais que estados de consciência apreendidos intuitivamente, o portanto fenômenos psicológicos. Husserl chega mesmo a concordar que, nas Investigações lógicas, este assunto não estava suficientemente dilucidado. Na realidade, porém, tratava-se já duma superação da Psicologia Experimental, e, como ele nos esclarece, a fenomenologia eidética deve ser o fundamento próximo da Psicologia empírica. Opõe-se portanto a uma Psicologia empírica uma Psicologia metempírica.
O método desta ciência fundamental deve ser também analítico. Este método, embora num plano diferente, coincide com o método descritivo, característico da Psicologia Experimental. Simplesmente, esta ciência, visto referir-se aos acontecimentos psíquicos, apresenta-se, como qualquer ciência empírica, baseada na experiência dos factos, ao passo que a fenomenologia eidética, já não parte propriamente duma experiência, mas dum equivalente superior que é a intuição. Esta diferenciação há-de ser explicitamente salientada por Husserl , por exemplo no vol. III de Ideias, escrito em 1912 e publicado recentemente, em 1952, como obra póstuma: «O que se dedica ás ciências naturais precisa da experiência, porque busca verdades de factos; o que se dedica a investigação das essências não precisa da experiência, pois busca verdades de essências…. O que ele precisa é intuição».
3. — A revolução operada pelas Investigações lógicas foi decisiva, mas lenta. O caracter eminentemente especulativo e abstracto em que se mantinha, sobretudo o segundo volume, tornavam a sua leitura difícil e pouco acessível. Quando, na primeira entrevista, Edith Stein confessava a Husserl que tinha lido todo o tomo segundo desta obra, a reacção espontânea do Filósofo foi a seguinte: «Todo o tomo segundo?!… isso é uma heroicidade». Compreendemos também que, em 1905, a proposta de Husserl para professor ordinário da Universidade de Goettingen tinha sido rejeitada com esta lacônica nota: «Mangel an wissenschaftlicher Bedeutung» — «falta de interesse científico».
Apesar de tudo, no ano seguinte, conseguia a cátedra na Universidade de Goettingen. Por esta altura, urna nova grande evolução se ia operar no pensamento de Husserl . No seu impulso de fundamentação radical, um problema o preocupava, também de caracter psicológico: qual a relação entre a consciência e o objecto?… A busca da solução impunha-se, pois o fundamento radical deverá garantir, no nosso conhecimento, o aparecimento insofismável do objecto ou da coisa. Leu Descartes e leu Kant ; em nenhum encontrou solução satisfatória. Um e outro influíram porém profundamente na decisão tomada. Descartes chamou-lhe a atenção para o mundo da interioridade, o que mais uma vez manifesta a tendência psicológica de Husserl . Knnt fez-lhe cair na conta de que o grande escolho, na fundamentação das ciências, era o mundo em si, considerado como exterior e independente do sujeito.
Toda a actividade ulterior de Husserl vai orientada à eliminação deste escolho e àquilo que essa eliminação implica. A ideia fundamental é esta: Conservar com valor estritamente filosófico o mundo apenas enquanto conhecido, enquanto «sentido do mundo», pois da existência do mundo, assim concebido, possui-se uma «evidência apodíctica» que exclui absolutamente a possibilidade de qualquer dúvida; colocar «entre parênteses», suspender o juízo, ou seja, praticar a «epoché», relativamente ao enigmático mundo em si que «transcende» a consciência. Deste modo, o objecto ficará a ser considerado apenas como pensado, como mero cogitatum da cogitatio, num aspecto que Husserl chamará puramente «transcendental ».
4. — O desenvolvimento destas ideias iniciou-se num curso dado em Goettingen, em 1907, recentemente publicado (1950) sob o título A ideia da fenomenologia. Depois continuá-lo-á através de todas as suas obras fundamentais, escritas quer nesta cidade quer em Friburgo, na Brisgóvia, para onde se trasladará em 1916. Husserl poderia levar o leitor até ao ambiente da consciência transcendental dum modo preponderantemente racional que permitiria, talvez mais rapidamente, a transmutação que implica. Foi o que fez na Lógica formal e transcendental, publicada em 1929, quando já tinha deixado os seus labores de professor universitário. Mas em todas as outras obras, escritas quer antes (os três volumes de Ideias), quer depois (Meditações cartesianas e A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental), segue um processo que devemos caracterizar como «psicológico», pois procura, através de diferentes «reduções», levar psicologicamente o leitor a efectuar esta transmutação difícil.
Os passos fundamentais são dois: Primeiro, uma «redução psicológica» em que, a partir da «atitude natural » que considera as coisas como existentes fora da consciência, Husserl pratica a «epoché» ou suspensão relativamente a essas coisas enquanto exteriores, que assim ficam reduzidas ao cogito ou a conteúdos interiores dos actos de pensar. Neste seu processo, não deixa de ajudar psicologicamente o leitor servindo-se da comparação com a «dúvida metódica» de Descartes , embora a sua «epoché» não equivalha propriamente a uma dúvida.
Até á redução psicológica chegara Husserl já nas Investigações lógicas, embora não tivesse pensado ainda em lhe dar este nome, nem usasse os termos «redução» ou «epoché». E então, como salientámos, a sua posição equivalia a uma Psicologia metempírica, que superava a Psicologia empírica. Agora Husserl pretende ultrapassar a própria Psicologia metempírica dessa fase.
Para isso, efectuará um segundo passo, mais difícil, em que «sob a mais estrita epoché, a subjectividade psicológica se transforma na subjectividade transcendental». Praticando a epoché» relativamente ao mundo exterior,,ficou ainda o mundo interior, a própria realidade do eu e dos seus actos concretamente existentes. E preciso como que «desmundanizar» esta mesma subjectividade, pô-la também «entre parênteses», para poder considerá-la no seu conteúdo meramente significativo cuja apreensão oferece a garantia máxima de apodicticidade. O ego cogito de Descartes , apesar de incorpóreo, era ainda uma realidade existente a partir da qual se deduziam todas as outras verdades. O ego cogito de Husserl será apenas uma significação pura, cujo alcance não consiste no facto de ser a base dum edifício construído dedutivamente, mas sim um manancial exuberante de riqueza que é preciso explorar, um cogito com os seus cogitata considerados também como meramente significados.
Nas alturas da «atitude transcendental», a fenomenologia será uma «disciplina puramente descritiva, que explora, pela intuição pura, o campo da consciência transcendentalmente pura». Mais urna vez notamos, neste plano elevado a que Husserl nos conduziu, as características fundamentais do método psicológico: uma descrição fiel daquilo que se observa com evidência na consciência, e portanto uma analítica da consciência. «Segue-se daqui, escreve Husserl , que a Psicologia descritiva oferece um ponto de partida característico e natural para a elaboração da ideia de fenomenologia. E de facto foi este o caminho que me levou á fenomenologia.
5. — A análise fenomenológica tem, na mente de Husserl , uma dupla função: A primeira refere-se à própria consciência, enquanto constitutiva dum objecto universalmente válido; a segunda, à descrição reflexa dos diferentes conteúdos de consciência, e é uma consequência ou aplicação da ciência fenomenológica já constituída.
No primeiro aspecto, Husserl quer levar-nos ao contacto imediato e apodíctico com as «coisas», e estuda portanto a relação sujeito-«objecto transcendental». Refere-se assim, embora num plano superior, a um tema característico na antiga Psicologia Racional. Seria mesmo interessante salientar coincidências flagrantes entre a posição aristotélico-tomista e a husserliana, onde nem faltam os tradicionais elementos materiais que, em união com os formais, provenientes da mente, contribuem para a consciência do objecto. É aqui que a intencionalidade desempenha um papel importante nas duas posições, embora esta intencionalidade em Husserl se restrinja ao âmbito imanente, porque também o objecto se considera exclusivamente nesse âmbito. Também a distinção entre a consciência considerada subjectivamente e objectivamente tem certo equivalente na distinção husserliana entre nóesis e nóema. Husserl detém-se sobretudo no problema da constituição do «objecto» que é o «fenômeno» típico da sua fenomenologia. Também a tradicional Psicologia metafísica se preocupa com a formação imanente do objecto, designado como conceito ou ideia, liste objecto adquire igualmente, em Husserl , certa fixidez, ou permanência, através duma diversidade, o que possibilita a reflexão sobre ele, pois só se pode reflectir sobre aquilo que permanece. Esta possibilidade é fundamental no pensamento de Husserl e manifesta, uma vez mais, o impulso psicológico da sua fenomenologia.
As preocupações psicológicas de Husserl vão ainda mais longe, em ordem a um problema que sobretudo depois dele — e não podemos duvidar que, em grande parte, por influxo seu — se tornou corrente entre os psicólogos modernos: o problema do conhecimento do outro, ou da constituição em mim deste objecto singular que é o outro-eu. Para a solução deste problema introduz Husserl o conceito de «intropatia» (Einfuhlung) que exprime a experiência do outro em mim, um sentimento do outro em mim, semelhante ao que tenho de mim mesmo através do meu próprio corpo.
Tudo isto vai orientado por Husserl à busca da característica essencial, exigida na ciência absoluta mente fundamentadora: Um conhecimento perfeitamente garantido. O sujeito transcendental encontra-se, pela constituição do outro, fazendo parte duma comunidade de sujeitos, e o seu conhecimento, como membro dessa comunidade, é conhecimento da colectividade — possui portanto para Husserl a garantia suprema da objectividade, pois trata-se dum conhecimento que se apresenta como intersubjectivo, ou válido para todos.
Não nos detemos em salientar as desvantagens inerentes a esta concepção de objectividade; Husserl , no plano da «atitude transcendental», em que se coloca, não podia logicamente ir mais longe. Atingido este ponto culminante, o fenomenólogo não tem mais que descrever anallticamente as riquezas da subjectividade transcendental, numa observação atenta de todos os conteúdos de consciência. E a segunda função da fenomenologia que, na intenção de Husserl , se deveria aplicar ao desenvolvimento de todas as ciências, quer filosóficas, quer mesmo empíricas, que assim adquiriram uma segurança plenamente garantida, e por isso « científica » no sentido rigoroso da palavra. Na realidade, esta aplicação, tal como foi preconizada por Husserl , tornou-se quimérica. Os seus esforços complicados para manter o cientista na «atitude transcendental», em que apenas se atende A mera significação dos conteúdos de consciência, encontraram o desinteresse e mesmo a oposição dos mais predilectos sequazes de Husserl .
Mas o método reflexivo de análise descritiva e interiorista foi aproveitado pelo talento metafísico de M. Scheler e N. Hartmann, pelos chamados «filósofos existencialistas», particularmente por Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty , e teve a sua aplicação mais fecunda, como era de esperar, precisamente no âmbito da Psicologia. Wolfgang Köhler, Werlheimer e Kurt Koffka, que criaram a «psicologia da forma» (Gestaltpsychologie), eram discípulos de Husserl . Não admira que uma teoria baseada na percepção imediata, à qual Husserl , tantas vezes se refere na ânsia de contacto directo com as coisas, encontrasse na fenomenologia o seu impulso decisivo. A «teoria da forma» anuncia-se na mesma fenomenologia de Husserl pela doutrina da constituição do objecto que se forma através dum conjunto fluente de percepções imediatas. Tanto na «teoria da forma», como na da constituição do objecto transcendental, desempenha papel importante a intencionalidade que leva ao sentido apreendido.
6. —Na elaboração da sua fenomenologia, Husserl jamais perdeu o interesse pela Psicologia. As alusões a esta ciência, através da qual se insinuara na Filosofia, são inúmeras. É verdade que salienta vincadamente que a sua fenomenologia não é propriamente uma Psicologia; teme reservar-lhe este nome que, através dos séculos, adquiriu um sentido bem determinado que pretende superar. «A distinção radical entre subjectividade psicológica e transcendental indica uma distinção radical entre Psicologia e Filosofia transcendental».
Não se trata duma Psicologia Experimental, porque esta é uma ciência empírica, «a posterior», embora se refira a acontecimentos psíquicos, ao passo que a fenomenologia apresenta-se como ciência racional, independente da experiência, e, como tal, a priori. Segundo a comparação de Husserl , a fenomenologia paira acima da Psicologia empírica como a Matemática acima das ciências naturais. Apesar de tudo, salienta Husserl , a «Psicologia Experimental não se deve menosprezar; pelo contrário, a fundamentação fenomenologica deve torná-la incomparavelmente mais pujante e fazer dela uma ciência exacta e racionalmente esclarecedora, no sentido genuíno». E preconiza que os psicólogos «devem considerar a fenomenologia ainda como mais importante do que os instrumentos mecânicos».
Também não se trata duma Psicologia metafísica ou racional, no sentido vulgar da palavra. Esta era uma ciência dedutiva, ao passo que a fenomenologia pretende conservar-se como uma ciência intuitiva. Husserl observa mesmo que, apesar do caracter fundamental do conceito de intencionalidade, herdado da Escolástica através de Brentano , a sua fenomenologia está longe de coincidir com a Psicologia de Brentano .
A fenomenologia é, na mente de Husserl , uma ciência destinada a fundamentar e reformar todas as outras ciências, particularmente a Filosofia e a Psicologia. Deste modo, a Psicologia deve desenvolver-se impregnada de fenomenologia, transformondo-se numa Psicologia transcendental. Enquanto a fenomenologia transcendental se mantém num plano de racionalização radical, Husserl aspira mesmo a uma nova «Psicologia Racional», num sentido porém diverso daquela a que anteriormente se dava o mesmo nome. Por isso, não duvidou escrever que «a fenomenologia constitui já uma parte importante duma Psicologia Racional». E, enquanto esta parte é uma ciência universalmente fundamentadora, «não só absorve, no dizer do mesmo Husserl , a restante Psicologia Racional, mas também todas as ontologias racionais».
Na sua obra, A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental, é ainda mais explícito: «Existe uma Psicologia transcendental, escreve, que se identifica com a Filosofia transcendental. Portanto, a pura Psicologia em si mesma é idêntica com a Filosofia transcendental, como ciência da subjectividade transcendental». Husserl não duvida, portanto, classificar a sua fenomenologia, a ciência que propôs como absolutamente fundamentadora, no âmbito duma Psicologia, embora inteiramente pura ou transcendental. Assim como outrora às pretensões da Psicologia Experimental opôs uma Psicologia metempírica, depois elevou este caracter metempírico ao supremo grau de racionalização, que é a transcendentalidade, e apresentou-nos, na fenomenologia, uma «Psicologia transcendental».