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Fragata (1961) – A fenomenologia de Husserl como fundamento da filosofia
terça-feira 18 de março de 2025, por
A Filosofia de Edmund Husserl
Dr. Júlio Fragata
Edições da Revista "Filosofia"
Lisboa, 1961
1. — Husserl adquiriu, actualmente, um lugar de particular relevo entre os filósofos contemporâneos. Sobretudo dois factores podem contribuir para que um autor se mantenha numa posição de destaque: O influxo originado pelo seu impulso e o interesse pelo conteúdo intrínseco do seu pensamento.
O influxo de Husserl , a partir de 1900, data em que publicou o primeiro volume das Investigações lógicas, é inegável e decisivo. Podemos dizer que a ele se deve uma modificação fundamental na linha do pensamento filosófico que antes se movia mais num ambiente idealista e, posteriormente, começou a oricn-tar-se num sentido realista. Esta influência foi exercida pela sua fenomenologia. Nenhum filósofo subsequente aderiu plenamente a ela, mas muitos se inspiraram nela. Bastaria recordar M. Scheler , N. Hartmann, Edith Stein , M Heidegger e os representantes principais da Filosofia da Existência, nomeadamente Sartre e Merleau-Ponty . Apesar de divergências mais ou menos profundas, as fenomenologias adoptadas convergem, pelo menos, num método analítico-reflexivo, aplicado aos dados imediatos da consciência.
Se Husserl é o iniciador deste método de investigação, que tão grande voga adquiriu em nossos dias, a sua posição de relevo fica naturalmente salientada, e compreende-se o interesse em conhecer o seu pensamento, elaborado em ordem à fundação da fenomenologia. Este interesse manifestou-se já desde 1900, sobretudo na Alemanha. Teve o seu ponto morto a partir dos anos que precederam a segunda guerra mundial e ressurgiu ultimamente — desta vez com sede no estrangeiro, particularmente na Bélgica e na França — desde que os « Arquivos de Husserl em Lovaina iniciaram, em 1950, a publicação das obras completas de Husserl .
Tal movimento não significa ainda um juízo sobre o valor intrínseco do conteúdo ideológico de Husserl . Sem dúvida que também este possui uma riqueza característica. Mas pode acontecer que o autor mais em voga, ou mesmo aquele que exerceu o influxo mais decisivo, em determinada época, nem sempre seja o que encerra um conteúdo objectivamente mais valioso. Desta questão, sujeita inevitavelmente a um critério mais ou menos subjectivo, não pretendemos ocupar-nos.
Também não investigamos ainda, dum modo directo, se é ou não possível uma fenomenologia como verdadeiro fundamento da Filosofia, embora no final deixemos expressas algumas insinuações. Atemo-nos à fenomenologia na modalidade concreta que adquiriu no seu Fundador, e discutimos se ela consegue realizar as pretensões que ele lhe atribuiu em ordem a uma fundamentação da Filosofia e, consequentemente, de todo o saber humano.
Nesta orientação, depois de indicarmos o impulso que levou Husserl à fenomenologia, daremos uma rápida síntese do seu método fenomenológico e concluiremos discutindo se com ele é possível realizar a fundamentação radical que se pretende. Ampliamos e completamos assim alguns aspectos que já tivemos ocasião de tocar no trabalho anterior, aqui publicado.
2. — Husserl começou por dedicar-se à Astronomia, ciência positiva e caracteristicamente analítica; neste interesse podemos já antever a origem psicológica da própria fenomenologia. Na ânsia de dominar plenamente essa disciplina preferida, viu-se na necessidade de estudar a Matemática. Uma vez internado neste estudo, de tal modo se sentiu entusiasmado que julgou preferível dedicar-se exclusivamente a ele. Assim, conseguiu o doutoramento em Ciências Matemáticas com uma tese sobre o cálculo das variações, apresentada em 1882.
Se o interesse pela Astronomia manifesta o seu espírito analítico e, ao mesmo tempo, positivo, a paixão pela Matemática — a ciência rigorosa por excelência — indica-nos outra característica fundamental do seu temperamento e de que pretendeu impregnar a sua fenomenologia: — a ânsia de rigor absoluto.
Como manifestação desta mesma ânsia, vemo-lo, no cultivo das Ciências Matemáticas, dedicado sobretudo aos problemas da sua fundamentação que, durante algum tempo, julgou encontrar na Psicologia Experimental.
E evidente que um tal trabalho de fundamentação exigia estudo mais aturado da Filosofia. Husserl tomara já um primeiro contacto com ela no seu curso de Matemáticas do qual fazia parte como disciplina auxiliar. Não ficara então entusiasmado. A Filosofia apresentava-se-lhe tão divergente segundo a mentalidade dos diversos filósofos, que de modo nenhum podia aquietar-lhe a ânsia de rigor absoluto. Na sua opinião, nem merecia ainda o nome de Ciência. Mas o impulso de tornar a Matemática mais fundamentalmente rigorosa obrigava-o a dedicar-se com maior penetração à Filosofia Foi com este fim que se dirigiu a Viena aonde o atraiu a fama de Franz Brentano .
Este filósofo, formado no ambiente da Filosofia Escolástica, exerceu em Husserl um influxo profundo e decisivo. Foi ele que conseguiu persuadi-lo de que também a Filosofia era susceptível de ser tratada num plano estritamente rigoroso e de que merecia, por isso mesmo, o interesse e a dedicação dos espíritos mais esclarecidos. Husserl sempre se reconheceu particularmente grato a este professor cujas aulas ouviu durante dois anos e que conseguiu apaixoná-lo pela disciplina a que, até á morte, viveu intransigentemente dedicado.
Uma vez decidido pela Filosofia, o aspecto que nela o há de ocupar será precisamente o que está em consonância com o seu impulso de investigação rigorosa: — Uma fundamentação da Filosofia em ordem a poder constituí-la como verdadeira ciência de rigor, e assim fundamentar também, o mais radicalmente possível, todas as ciências humanas. Deste modo esperava, como outrora Descartes , conseguir encontrar pelo menos o caminho para a eliminação de todas as divergências em ordem a urna unificação insofismável do pensamento filosófico.
Foi para este efeito que elaborou a sua fenomenologia.
3. — Na fenomenologia husserliana, distinguem-se dois períodos fundamentais.
O primeiro é determinado pelas Investigações lógicas. Husserl começou por uma refutação do Psicologismo que pretendia estabelecer a Psicologia Experimental como último fundamento da Lógica, da Filosofia e de todo o saber humano. Contradiz, portanto, uma corrente à qual ele mesmo antes aderira. O motivo principal desta mudança de opinião foi a necessidade de encontrar uma ciência de caracter absoluto, — a única capaz de garantir uma fundamentação igualmente absoluta. Ora a Psicologia Experimental, como ciência empírica, e portanto baseada em factos, não poderia ultrapassar os limites de ciência particular. Impunha-se uma ciência racional que, pelo seu próprio caracter universal, fosse capaz de sustentar a universalidade do saber e se pudesse arvorar como ciência não só de fado, mas de direito.
E já nas Investigações lógicas que Husserl lança as bases desta ciência que deve ser «a priori»,ou seja, de caracter estritamente racional, isenta de qualquer preconceito e evidente por si mesma com um poder de autofundamentaçào haurido intuitivamente no contacto imediato com as coisas. A fidelidade às coisas, incutida por Brentano , há-de ser a preocupação dominante no pensamento de Husserl . O pensador que se deixa orientar só por elas, descrevendo-as com o máximo rigor, cultiva a fenomenologia que assim se manifesta como ciência radical.
No plano das Investigações lógicas, estas coisas são já de caracter metempírico, mas consideram-se ainda no plano espontâneo duma atitude natural, sem as exigências de depuração a que posteriormente vão ser sujeitas.
Esta primeira fase da fenomenologia é fácilmente inteligível, e foi ela que de facto conseguiu impor-se a uma aceitação mais geral. No entanto, não é esta a «fenomenologia husserliana», no seu sentido característico. Em ordem a atribuir-lhe um caracter radicalmente fundamentador, Husserl julgou dever depurá-la, num impulso de evidenciação mais rigorosa.
4. — Assim passamos à segunda fase da fenomenologia. A primeira exposição pública desta nova exigência crítica foi feita num curso de cinco lições dado em Göttingen, em 1907, recentemente publicado (1950) pelos Arquivos de Husserl em Lovaina, com o título A ideia da fenomenologia (Die Idee der Phänomenologie), como volume primeiro da série «Husserliana». Esta ideia concretizou-se e ampliou-se em obras subsequentes, sobretudo em Ideias para uma pura fenomenologia e para uma filosofia fenomenológica, Lógica formal e transcendental, Meditações cartesianas e A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental.
Na elaboração desta fenomenologia, Husserl recebeu sobretudo um duplo influxo, em perfeita consonância com as duas características fundamentais do seu temperamento, manifestadas no interesse pela Matemática e pela Astronomia. Tendo lhe sido perguntado por Gaston Berger quais os filósofos que maior influxo nele exerceram, respondeu sem hesitação, nomeando Descartes e Hume .
De Descartes hauriu o empenho por um absoluto rigor científico na busca da verdade, a partir duma evidencia inconcussa, — rigor particularmente característico das Ciências Matemáticas que, como o filósofo francês, amava e admirava dum modo muito especial.
Hume inspirou-lhe, como último fundamento, a evidência experimental que só pode saciar-se com a verificação daquilo que se apresenta na consciência, num contacto imediato com as coisas, fielmente observadas e descritas. Mas desde já convém salientar que esta "experiência", ao contrário do que acontecia em Hume , não se restringe exclusivamente ao âmbito da sensibilidade. No entanto, neste empenho analítico-reflexivo, transparece bem a analogia com o caracter descritivo da Astronomia. E é interessante salientar que Husserl , segundo testemunham os que com ele conversaram ou assistiram às suas aulas, muito frequentemente recorria a comparações tiradas da Astronomia para esclarecer a sua fenomenologia.
Foi contudo Descartes o autor que maior e mais decisivo influxo exerceu em Husserl . Podemos até afirmar que a doutrina fenomenologica, nesta segunda fase, se desenvolveu precisamente na linha do radicalismo cartesiano que se pretende levar até ao último extremo. Nas Meditações cartesianas, o próprio Husserl chega a apresentar a fenomenologia como um «neo-cartesianismo».
Uma leitura, mesmo corrente, da obra de Descartes "Discurso do método" e da husserliana "Filosofia como ciência de rigor" basta para nos fazer cair na conta de flagrantes semelhanças : Ambos têm como fim conferir às ciências, e em especial à Filosofia, uma unificação perfeitamente fundamentada. Um e outro é levado à necessidade desta fundamentação surpreendido pela lamentável diversidade de opiniões. E, como meio para conseguir a unificação, propõe-se, nas duas obras, o recurso a uma evidência apodíctica, capaz de resistir a qualquer dúvida. Descartes viu esta evidência na "percepção clara e distinta"; Husserl , na "intuição originária" que, como ele mesmo admite, não é mais que a verdadeira "percepção clara e distinta".
Para chegar à «evidência apodíctica», Descartes recorreu à «dúvida metódica» que, levada até ao seu extremo mais radical, deixava intangível o cogito, sum. Husserl introduziu um novo conceito pelo qual quis ultrapassar o próprio radicalismo cartesiano e cortar todas as esperanças de poder levá-lo mais longe. Foi este o conceito de «epoché» já usado pelos cépticos gregos para indicar a «suspensão» do juízo relativamente aquilo de que não se tem a certeza absoluta. Husserl aplicou esla «suspensão» judicativa á realidade considerada em si, como independente do sujeito que conhece. Tal realidade, que na linguagem husserliana é denominada «transcendente» à consciência cognoscitiva, pareceu-lhe gozar apenas duma evidência «empírica» ; esta tem um caracter exclusivamente prático e, por isso, não exclui, dum modo absoluto, toda a dúvida. Tal realidade não se apresenta, pois, com evidência «apodíctica», como se exige para proceder com pleno rigor científico.
5. — E difícil determinar o que levou Husserl a considerar enigmática a realidade em si; sem dúvida, porque não está em jogo um único factor decisivo. E evidente que este radicalismo está em perfeito acordo com o caracter husserliano, sedento de absoluto rigor e insaciável na busca duma evidência plena. A primeira ideia de praticar a «epoché» foi-lhe, no entanto, sugerida por Kant cujas obras leu sobretudo entre 1901 e 1907. Então caiu na conta dum problema fundamental que era o escolho de todos os filósofos: — o mundo exterior. Negá-lo equivaleria a adoptar dogmaticamente uma posição idealista. Afirmá-lo seria deixar de começar pelo absolutamente evidente. A solução de Kant , que considerava a «coisa em si» como «pensável», mas «desconhecida», de modo nenhum o satisfez.
Não seria possível uma posição que permitisse ao filósofo eliminar este escolho, sem optar nem pela afirmação nem pela negação da «coisa em si»?
Foi nestas circunstâncias que o influxo cartesiano se mostrou decisivo: A resposta a essa pergunta terá que ser dada em conformidade com o impulso que leve a encontrar um fundamento que resista a qualquer dúvida. Ora, nem a existência, nem a não-existência do mundo «transcendente» se apresentavam ao seu espírito com "evidência apodíctica", ou seja, de modo a excluir inteiramente toda a dúvida.
Há porém diferenças fundamentais, que convém salientar, entre o processo cartesiano e o husserliano: Descartes duvidou provisoriamente. O seu fim foi fazer passar por uma prova de rigor as certezas espontâneas, em ordem a vir depois a admitir cientificamente aquelas que se manifestassem inconcussas. A dúvida de Husserl , relativamente ao mundo «transcendente», ou exterior, não é provisória e possui, além disso, uma função essencialmente diversa.
Em primeiro lugar, não é provisória porque Husserl de modo nenhum pretende voltar a admitir cientificamente essa existência. O filósofo, por meio da «epoché», «põe entre parênteses», ou «fora de circuito», a certeza espontânea no mundo transcendente. Este fica assim «reduzido- à consciência, e as coisas passam a ser consideradas apenas enquanto conscientes, ou, para usar a linguagem mais tipicamente husserliana, enquanto realidades meramente «transcendentais». É este o campo exclusivo em que o filósofo se deve manter; das coisas, enquanto aparecem, enquanto se manifestam conscientemente, não pode haver a menor sombra de dúvida, seja qual for a posição que se adopte em relação à existência do mundo «transcendente». Em certo sentido, podemos dizer que a dúvida husserliana é mais profunda, porque não admite a esperança dum retorno á atitude natural, e portanto à afirmação científica da existência do mundo exterior. Descartes teve de recorrer à veracidade divina para fundamentar esta afirmação. Husserl não concorda com o apelo para n divindade, no campo estritamente filosófico. Para ele, o filósofo nunca precisará de regressar á afirmação das coisas exteriores, porque estas ficam conservadas na consciência que retém, por assim dizer, a sua medula, o seu sentido mais íntimo e profundo, — que é tudo o que se requer em ordem ao desenvolvimento do pensamento científico.
Por outro lado, o processo dubitativo de Husserl possui uma função essencialmente diversa do cartesiano, porque é apenas um método psicológico que ajuda a elevar o filósofo á «atitude transcendental». Este mesmo filósofo, como homem "natural", não tem nenhuma necessidade, nem fundamento para duvidar da existência dos objectos exteriores. Mas, o homem científico prescinde dessa existência, pura começar por aquilo que se apresenta dum modo absolutamente inconcusso, para além do caracter enigmático da transcendência.
Por outras palavras, podemos dizer que a dúvida cartesiana é metódica e, ao mesmo tempo, provisória; ao passo que a husserliana conserva um caracter metódico apenas porque está psicologicamente orientada a ajudar o filósofo a efectuar a transmutação de atitude. Nem mesmo se exclui a possibilidade de operar essa transmutação sem recorrer a tal artificio psicológico, como tentou o próprio Husserl na obra Lógica formal e transcendental. Além disso, em virtude do caracter que acabámos de salientar, a dúvida cartesiana pode afectar o homem integral, ao passo que a husserliana só afecta o homem enquanto filósofo, e apenas no sentido de um artifício psicológico, que pode, de si, ser substituído por outro. Deste modo, a « epoché », embora tenha sido suscitada por Husserl também através dum processo dubitativo, não é, em si mesma, uma dúvida. Se o fosse, a «atitude transcendental», viciada por um cepticismo inicial, deixaria comprometida a segurança exigida no estabelecimento duma fundamentação absoluta.
6. — Um ponto em que Husserl insiste é na universalidade completa desta «posição transcendental», Descartes também praticou certa epoché relativamente às coisas materiais e ao próprio corpo. Mas salvou a alma - o próprio eu - e, mediante este, a existência de Deus. Ora, um radicalismo absolutamente rigoroso tem que implicar, segundo Husserl , uma «epoché» sem nenhuma exceção, e portanto extensiva à existência do próprio eu e do mesmo Deus. Só assim se atinge a « consciência pura », o « eu puro », que já não se entende como existindo em si, mas apenas como polo oposto a todas as outras «coisas», consideradas como meramente pensadas.
Deste modo, o célebre ego cogito de Descartes é intrinsecamente modificado por um radicalismo mais profundo que lhe tira a consideração natural de existência em si; além disso, é explicitamente enriquecido com as «coisas» enquanto pensadas, em relação às quais se torna inteligível: Ego cogito cogitata será a; "consciência pura" husserliana que encerra em si o conteúdo de todas as investigações filosóficas.
Para Descartes , o ego cogito era a consciência considerada apenas como ponto inicial da Filosofia. A partir dele, deveriam deduzir-se todas as outras verdades que se ostentariam como edifício construído sobre rocha firme. Em Husserl , o ego cogito cogitata inclui, no próprio seio, todas as verdades. Não tem, por isso, apenas uma função inicial; será também o campo inexaurível que o filósofo deve explorar em ordem ao estabelecimento da filosofia. Este cogitatum, assim depurado pela "epoché" mais rigorosa, é precisamente o «fenômeno puro», o fenômeno no sentido estritamente husserliano. A fenomenologia será a ciência radicalmente fundamentadora, quer porque levou à concepção desse "fenômeno" na evidência primordial de cogitatum, quer porque proporcionará um processo de investigação orientado apenas por essas evidências apresentadas na cogitatio. Assim, o filósofo, libertado do enigma da existência exterior, ou seja, da consideração «transcendente» da realidade, ater-se-á a estas «realidades» transcendentais, internando-se no campo da consciência pura » onde se possui a evidência apodíctica, na pura manifestação das coisas: O fenômeno, ou cogitatum, está sempre presente, pelo facto de ser «pensado»; por isso, não pode deixar de se manifestar com o máximo grau de evidência que de facto podemos atingir. O verdadeiro filósofo, uma vez que ascendeu a esta posição «transcendental», deve procurar permanecer nela, para proceder sempre orientado pela evidência. A sua tarefa reduz-se a contemplar reflexamente essas evidências, ou «coisas » conscientes, e a descrevê-las com a maior fidelidade.
7. — Chegamos assim a uma espécie de idealismo que Husserl designou como "idealismo transcendental fenomenológico".
A propósito desta questão, convém evitar vários equívocos.
Em primeiro lugar, não se trata dum idealismo na «atitude natural». Neste plano, Husserl nunca pôs em dúvida a existência exterior do mundo, nem a dependência do conhecimento relativamente a ele. É portanto realista como o homem vulgar.
O problema coloca-se integralmente na « atitude transcendental». Mas, mesmo neste plano, não podemos dar ao idealismo fenomenológico um sentido vulgar da forma esse est percipi, como se a existência do mundo se negasse para admitir apenas o «ser conhecido». Husserl rejeita explicitamente tal interpretação ao declarar que «o idealismo fenomenológico» não é como o de Berkeley e que, portanto, "não nega a verdadeira existência do mundo real". Se a negasse, perderia o seu lídimo sentido o conceito de «epoché». Foi precisamente para poder manter-se para além de qualquer discussão entre realistas e idealistas, no sentido vulgar, que Husserl o introduziu. O mundo, na sua existência «transcendente», não fica afirmado nem negado. E evidente que, mesmo suposta a existência natural do mundo, só é possível entrar em contacto com ela através da expressão ou sentido desse mesmo mundo. Husserl pára, como filósofo, nessa mera expressão que é o fenômeno puro, o mundo enquanto pensado Não lhe interessa se a esse pensamento corresponde ou não o ser exterior, embora acredite nele espontaneamente.
Estamos portanto perante um "idealismo" assim chamado não por negar a realidade exterior, mas sim por considerar filosoficamente apenas o aspecto ideal no nosso processo cognoscitivo. Deste modo, tal «idealismo » apresenta antes um caracter metódico: Corno de modo nenhum podemos negar que as coisas são também pensadas — mesmo na hipótese da sua não-existência exterior — o filósofo mantém-se, como tal, e por isso por uma questão metódica exigida pela segurança absoluta, na consideração das coisas enquanto significadas. O objecto do conhecimento manifesta-se assim como um ponto ideal para o qual tende a significação, não porque seja negada a existência exterior correspondente, mas porque tal existência não se considera, ou melhor, está "entre parênteses".
Tal idealismo, que preferivelmente poderá designar-se como uma «idealização metódica», não é porém fictício, mas verdadeiro, pois considera um aspecto do nosso processo cognoscitivo que de modo nenhum se pode negar. Se quisermos refutar a Husserl , nesta posição, teremos portanto que mostrar a impossibilidade de parar filosoficamente só neste aspecto em ordem ao estabelecimento duma fundamentação radical
8. — Antes de entrarmos nesta discussão, convém rejeitar outro perigo em que freqüentemente se cai ao expor a fenomenologia de Husserl . Consiste ele em interpretar a doutrina husserliana como uma «Filosofia das essências »; nesta hipótese, o fenômeno, ou eogitatum, deveria ser simplesmente considerado como uma essência.
Nuo negamos todo o fundamento a esta interpretação, nem mesmo a possibilidade de a entender num sentido que, em rigor, a poderia legitimar. Contudo, tal apelação presta-se, pelo menos, a equívocos que têm viciado o sentido autêntico da fenomenologia de Husserl .
Na acepção mais comum, mantida particularmente na Filosofia escolástica, a «essência» tem sempre um aspecto "mundano", próprio da «atitude natural», que Husserl quer precisamente afastar pela ascensão á «atitude transcendental. Esse aspecto manifesta-se no facto de a essência incluir uma relação necessária ao existente em si, ou transcendente, considerado, pelo menos, como possível.
É certo que Husserl usa muito correntemente a palavra «essência» (Wesen, Eidos). Daqui o fundamento para a designação de «filosofia das essências». No entanto, recordemos que o mesmo Husserl , na introdução duma das suas obras fundamentais, "Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica", procura precaver-se contra interpretações equívocas da palavra "essência" (Wesen). Usou-a correntemente nas Investigações lógicas, obra que está ainda num plano pré-fenomenológico, relativamente á fenomenologia transcendental. Posteriormente, preferiu a palavra "Eidos", mais apta para designar a mera idealidade, que, em rigor, poderá não ser uma universalidade. No entanto, não só Wesen, mas também Eidos designam em Husserl preponderantemente universalidades, mesmo no plano da fenomenologia transcendental, onde elas ocupam uma importância primordial; mas de modo nenhum constituem os únicos objectos da fenomenologia.
Reconhecemos, contudo, a dificuldade duma interpretação precisa do pensamento husserliano. Ele mesmo a salientou. Esta dificuldade provém sobretudo de duas causas.
A primeira é a própria transmutação que a fenomenologia transcendental implica. Normalmente, mesmo quando filosofamos, mantemo-nos na «atitude natural». Por isso, a nossa terminologia, inclusiva-mente a do próprio Husserl , tem, primariamente, uma interpretação «natural». Apesar de tudo, é dela que o filósofo tem que lançar mão para designar realidades não «naturais» ou «transcendentes», mas «transcendentais», num plano fundamentalmente diverso. Não raro nos mantemos perplexos perante a incerteza em determinar em qual dos planos se mantém a reflexão husserliana.
Em segundo lugar, o próprio Husserl , apesar do seu empenho de rigor absoluto e duma expressão perfeitamente adequada, não se pode dizer modelo de rigor fenomenológico. Algumas das palavras mais freqüentes, como «essência» (Wesen, Eidos), «experiência» (Erfahrung), « fenômeno » (Phänomen) adquirem grande amplidão e, consequentemente, uma diversidade significativa que dificulta a interpretação. O seu modo de escrever é, além disso, demasiado espontâneo, por vezes mesmo impressionístico e sem grandes preocupações de selecção verbal. Daqui, depararem-se-nos certas passagens que, quanto à expressão, se apresentam em desacordo. Este facto impõe, logo de início, uma cautela particular que evite quer julgar como contraditório aquilo que só o é na expressão, quer formular uma interpretação demasiado parcial, ou mesmo falsa, por se terem considerado apenas algumas passagens. Para compreender bem qualquer autor, exige-se sempre a penetração na sua mentalidade. Isto é particularmente difícil e, apesar de tudo, inevitavelmente necessário a propósito de Husserl . Não podemos chegar a conclusões certas sobre o sentido da sua fenomenologia baseados na mera análise de textos isolados. Exige-se a leitura das principais obras, para que, à luz da mentalidade que nelas se revela, se esclareça o sentido íntimo de cada texto e assim se estabeleça uma interpretação objectivamente segura. Foi este o método que nos levou às conclusões que aqui deixamos resumidas.
Falta-nos agora analisar, também sumariamente, se a «fenomenologia transcendental» se mostra ou não apta em ordem ao fim em vista duma fundamentação da Filosofia.
9. — Poderíamos primeiro perguntar se a Filosofia é susceptível de ser fundamentada em ordem a uma unificação que a imponha indiscutivelmente como ciência sistematizada. Tal concepção afigura-se-nos ilusória, porque a cientificidade da Filosofia é caracteristicamente diversa de qualquer outra, em virtude do seu mesmo processo de reflexão plena e universal. Não ampliamos aqui este ponto porque, em qualquer hipótese, é sempre verdade que a Filosofia tem de estar fundamentada. Examinemos apenas, dum modo directo, se a fenomenologia de Husserl apresenta ou não as possibilidades fundamentadoras que ele lhe atribuiu. Para isso, tem que satisfazer à condição primordial de "evidência apodíctica", ou seja, duma evidência tal que exclua, dum modo absoluto, qualquer dúvida.
Salientámos que o «fenômeno puro», referindo-se às coisas simplesmente enquanto «pensadas», atende a um aspecto verdadeiro, no nosso processo cognoscitivo. Mas este facto não basta para que a fenomenologia se apresente como genuinamente fundamentadora. E preciso evidenciar também a possibilidade cte o filósofo se ater â coisa só enquanto pensada, prescindindo absolutamente do seu caracter «transcendente», isto é, da sua existência natural. Para isso, podemos servir-nos duma comparação.
Imaginemos que alguém pretendia defender que tudo pode ser considerado como meramente possível, tanto os seres materiais como imateriais, tanto as coisas como o próprio eu pensante. Tal posição seria evidentemente ilógica, e portanto inconsistente. O possível, como tal, só se pode conceber por relação à actualidade. A possibilidade é um aspecto verdadeiro da actualidade ou, pelo menos, exige a não-contradição da existência actual. Se a actualidade não entra, de qualquer modo, em consideração, também a possibilidade deixa de ser concebível.
O fenômeno de Husserl de modo nenhum se identifica com a mera possibilidade; esta é inteligível no plano da «atitude natural» que o «fenômeno puro» pretende superar. Mas o paralelismo é elucidativo: em Husserl , tudo se considera como meramente significado. Ora a significação exige uma relação essencial a qualquer coisa que se significa. Implica portanto qualquer existência de caracter «transcendente» que deve ser o termo ou, pelo menos, o fundamento, desta significação.
Numa inibição total do caracter transcendente, a significação perde inteiramente o seu sentido e chegamos ao paralogismo duma significação que ultimamente nada significa. E esta uma dificuldade séria que não fica resolvida na fenomenologia transcendental, e que portanto bastaria para pôr em dúvida o seu caracter de ciência fundamentadora. Um fundamento radical não pode ser duvidoso, se quer satisfazer à condição primordial de evidencia apodítica.
10. — Podemos ainda salientar outro inconveniente que muito inquietou já o próprio Husserl .
A ciência radicalmente fundamentadora deve oferecer uma segurança não apenas subjectiva, ou aparente, mas objectiva de modo que se apresente como garantia plenamente rigorosa do processo cognoscitivo. Não sendo assim, todo ele ficará contaminado pela possibilidade duma ilusão.
Husserl reparou explicitamente que o "fenômeno", ou coisa enquanto pensada, apesar da sua presença imediata, muitas vezes nos oferece só uma evidência subjectiva e, como tai, meramente relativa. Ora é preciso subir a uma evidência absoluta. Para resolver esta dificuldade, recorreu à « intersubjectividade »: tudo o que se apresentar como fenomenològicamente constituído com validez para a multiplicidade dos outros «eus», ultrapassará o âmbito individual e, por conseguinte, será objectivo. Para isso, esforçou-se por dar certo caracter absoluto ao «Nós» intersubjectivo.
Todo este esclarecimento está longe de manifestar, no pensamento de Husserl , o caracter de plana evidência que nele se exigiria. Constitui mesmo um dos pontos mais obscuros de sua fenomenologia. Já o trânsito do eu fenomenológico individual para a existência dos outros-eus se apresenta enigmático. Muito mais a pretensão de arvorar esta multiplicidade fenomenológica numa espécie de sujeito absoluto.
Uma vez que a fenomenologia se mantém no âmbito estritamente humano pois não temos experiência dum conhecimento supra-humano — não vemos como tal objectividade deixe de ficar coarctada a esse âmbito. Para suprimir esta dúvida, teríamos de recorrer a uma das alternativas seguintes:
A primeira consistiria em excluir a possibilidade duma inteligência supra-humana. Isto equivaleria a conferir ao conhecimento humano, na sua totalidade intersubjectiva, um caracter de conhecimento absoluto. Mas, em ordem a esse fim, tomar-se-ia necessário evidenciar a potencialidade infinita do próprio conhecimento humano, o que é explicitamente contra a própria mente de Husserl que não deixa de admitir a hipótese duma consciência infinita para além do homem.
A outra alternativa consistiria em provar que basta a intersubjectividade, no âmbito humano, para que o conhecimento seja também válido para qualquer outra consciência pensável. Esta hipótese, não foi evidenciada por Husserl .
De todos os modos, a interjubjectividade transcendental não suprime a consciência fenomenológica individual, a partir da qual ela mesma se constitui. Não é portanto uma quebra do radicalismo absoluto da «époché», ou um retorno à «atitude natural». Tudo se passa em plena »atitude transcendental». Neste caso, a tentativa de solução do problema da subjectividade, pelo recurso à intersubjectividade, oferece todos os inconvenientes já salientados a propósito da atitude transcendental.
11. — O impulso radical de Husserl apresenta-se assim como uma falta de radicalismo. Levado por uma ânsia extrema de evidenciação, podemos dizer que caiu numa espécie de defeito por excesso.
É verdade que a ciência radicalmente fundamentadora não pode ser de caracter empírico. O empírico, por sua mesma natureza, não goza da universalidade requerida. Neste ponto, a História da Filosofia deve a Husserl uma das mais decisivas refutações do Psicologismo que pretendia uma justificação empírica da Filosofia. Mas será necessário levar este impulso metempírico até à não consideração do caracter «transcendente» das coisas e do próprio eu?…
E também importante a cautela contra todos os preconceitos. Na medida em que alguém se deixa contaminar por eles, não pode aderir à verdade com plena independência, só atraído pela sua manifestação. Mas não será a «atitude transcendental» um preconceito? . . .
O apelo à evidência é, sem dúvida, primordial. Mas a transmutação operada por Husserl , em que a coisa deixa de ser considerada, como transcendente, para adquirir apenas uma validade transcendental, será precisamente a posição exigida para a fundamentação radical da Filosofia e de todas as ciências?. . .
As breves observações críticas que tivemos ocasião de fazer dão uma resposta suficiente a estas perguntas. A "atitude natural" não se opõe a uma posição reflexiva perante a realidade e, ao mesmo tempo, não deixa de considerar nenhum aspecto dela: nem o seu ser transcendental, nem a sua existência transcendente. Para ser legítimo parar só no primeiro aspecto, não basta prescindir do segundo; será preciso provar que este não tem razão de ser. De outro modo, o filósofo arrisca-se a não ter em conta toda a realidade.
Qualquer que seja o método universalmente fundamentador, este não pode renunciar à «atitude natural», Daqui não se segue que devam ser rejeitadas todas as fenomenologias. Se por « fenomenologia» se entende uma evidenciação analitico-reflexiva do objecto consciente, em todas as suas implicações, cremos mesmo que é numa fenomenologia, depurada dos excessos a que Husserl a levou, onde devemos encontrar a chave para a solução do problema de fundamentação radical, proposto por Husserl .
Se a consideração do fenômeno exige inevitavelmente uma existência transcendente, somos forçados a defender que a própria «atitude natural» se deve manter, como uma exigência fenomenológica. No último trabalho aqui publicado desenvolveremos mais este aspecto. Salientemos, desde já que, uma vez evidenciada fenomenologicamente a «atitude natural», ficam eliminadas as objecções que considerámos a propósito do problema da objectividade, na «atitude transcendental». Nesse caso, para provar o caracter de validez universal, ou absoluta, do nosso conhecimento, já não será preciso arvorar o sujeito inter-subjectivo como consciência absoluta. Se o conhecimento, mesmo individual, se revelar essencialmente relativo a uma coisa em si, ou transcendente, então será claro que qualquer conhecimento, para não ser errado, terá que manifestar idêntica relação.
A norma, neste caso, não será a intersubjectividade, mas a mesma coisa que, sendo o que ó em si, não pode, sem erro, ser considerada como não sendo, ou como existindo de outro modo.
Só assim julgamos possível um conhecimento primordial, a partir das coisas, que foi, afinal, a grande ambição de Husserl .