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Pensamento Ocidental Moderno
Lyotard - O "mundo da vida"
Filósofos e Pensadores
Excertos da tradução em português feita por Mary Amazonas Leite de Barros, do livro de Lyotard
Lyotard
Jean Lyotard
JEAN LYOTARD (1924-1998)
, "A Fenomenologia".
Excertos da tradução em português feita por Mary Amazonas Leite de Barros, do livro de Lyotard
Lyotard
Jean Lyotard
JEAN LYOTARD (1924-1998)
, "A Fenomenologia".
IX. — O idealismo transcendental e suas contradições. — Ao chegarmos nesta etapa, eis-nos, ao que tudo indica, remetidos de novo a um "idealismo transcendental" (Med. cart.); este idealismo transcendental já residia na própria tarefa da redução. Mas, como o sujeito transcendental não difere do sujeito concreto, o idealismo transcendental parece, além disso, dever ser solipsista. Eu estou só no mundo, este mesmo mundo é apenas a ideia de unidade de todos os objetos, a coisa é somente a unidade de minha percepção de coisa, isto é, dos Abschattungen, todo sentido é fundado "na" minha consciência na medida em que ela é intenção ou doadora de sentido (Sinngebung). Na verdade, Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
não se deteve jamais nesse idealismo, monádico, primeiro porque a experiência da objetividade remete ao acordo de uma pluralidade de sujeitos e, depois porque outro si mesmo me é dado numa experiência absolutamente original. Os outros ego "não são simples representações e objetos representados em mim, unidades sintéticas de um processo de verificação que se desenrola em "mim", mas justamente "outros" (M.C., 75). A alteridade do outro se distingue da transcendência simples da coisa pelo fato de que o outro é um eu para si mesmo e sua unidade não está na minha percepção mas nele mesmo; em outras palavras, o outro é um eu puro que não tem necessidade de nada para existir, ele é uma existência absoluta e um ponto de partida radical para ele mesmo, como eu o sou para mim. O problema então é: como existe um sujeito constituinte (outrem) para um sujeito constituinte (eu)?
É evidente que o outro é experimentado por mim como "estranho" (Med. cart.), pois ele é fonte de sentido e de intencionalidade. Mas, aquém dessa experiência de estranheza (que dará a Sartre
Sartre
Jean-Paul Sartre
JEAN-PAUL SARTRE (1905-1980)
Excertos, por termos relevantes, de sua obra original em francês
seus temas de separação das consciências), no nível transcendental a explicitação do outro não pode ser feita nos mesmos termos que a explicitação da coisa e, no entanto, na medida em que o outro é para mim ele é também por mim, a crer nos resultados essenciais da redução transcendental. Esta exigência própria à explicitação do outro não é verdadeiramente satisfeita nas Méditations cartésiennes texto de que acabamos de adotar a própria colocação do problema do outro. Com efeito depois de ter descrito "a apercepção assimilante" pela qual o corpo de outrem me é dado como corpo próprio de um outro eu, sugerindo o psíquico como seu próprio índice, e depois de ter feito de sua "acessibilidade indireta" o fundamento para nós da existência do outro, Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
declara que, do ponto de vista fenomenológico, o outro é uma modificação de "meu" eu (Med. Cart., 97), o que frustra nossa expectativa. Nas Ideen II, terceira parte, Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
, em compensação, sublinhava a oposição entre "mundo natural" e "mundo do espírito" (Geist) e a prioridade ontológica absoluta deste sobre aquele: a unidade da coisa é a do desdobramento desses Abschattungen para uma consciência, a unidade da pessoa é "unidade de manifestação absoluta". No caso do sujeito, e por consequência do outro enquanto sujeito (alter ego), não se pode reduzir a existência real a um correlato intencional, uma vez que aquilo que eu intencionalizo, quando viso outrem, é precisamente uma existência absoluta: aqui ser real e ser intencional se confundem. Poder-se-ia, portanto, pôr à parte uma "comunidade de pessoas" que Ricoeur
Ricoeur
Ricœur
Paul Ricœur
PAUL RICŒUR (1913-2005)
Excertos por termos relevantes
("Analyses et problèmes" dans Ideen II, revue de métaphysique et de morale, 1951) aproxima da consciência coletiva segundo Durkheim ou do espírito objeto no sentido hegeliano e que é constituído ao mesmo tempo sobre a apreensão mútua das subjetividades e a comunidade de seu meio circundante. Esta comunidade das pessoas é constitutiva de seu próprio mundo (o mundo medieval, o grego etc-); mas é ela constitutiva originariamente? Afirmá-lo seria dizer que o sujeito transcendental e solipsista não é radical, pois mergulharia suas raízes num mundo do espírito, numa cultura que é ela mesma constituinte.
Em outro termos, a filosofia transcendental enquanto filosofia do sujeito radical não consegue integrar uma sociologia cultural, continua a haver entre ela uma "tensão" (Ricoeur
Ricoeur
Ricœur
Paul Ricœur
PAUL RICŒUR (1913-2005)
Excertos por termos relevantes
), uma contradição mesmo, e que não se aplica ao pensamento fenomenológico, mas que lhe é inerente: pois é a própria filosofia transcendental que conduz ao problema da intersubjetividade ou da comunidade das pessoas, como o demonstra a marcha paralela, das Méditations cartésiennes e das Ideen. É claro que o ponto de vista de uma sociologia cultural que era já o das Ideen II e que domina amplamente os últimos escritos (Krisis, Carta a Lévy-Bruhl) introduz, como o próprio Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
o confessa, algo como um relativismo histórico, que é exatamente aquilo que a filosofia transcendental tinha de combater, e entretanto, essa filosofia não pode deixar de desembocar na problemática do outro, nem deixar de elaborar esse problema de maneira a rever as aquisições do subjetivismo radical; com a análise intencional do outro a radicalidade não está mais do lado do eu, mas do lado da intersubjetividade e esta não é apenas uma intersubjetividade para mim, afirmação pela qual o eu retomaria seu sentido de único fundamento, ela é uma intersubjetividade absotua, ou se quisermos, primeira. Mas podemos dizer que o próprio Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
jamais chegou a isto: a radicalidade do cogito transcendental, tal como é fundada nas Ideen I, mantém-se como o núcleo de toda a sua filosofia. Em Krisis II, por exemplo, encontramos esta significativa crítica dirigida ao transcendentalismo cartesiano: Descartes
Descartes
H. consagrou dois cursos e quatro seminários a Descartes. A desconstrução da metafísica heideggeriana conduz um diálogo intenso com Descartes.
"não descobriu que todas as distinções do tipo Eu e Tu, dentro e fora, só se constituem no ego absoluto". Assim o tu, como o isto, é apenas uma síntese de vivências egológicas.
E, no entanto, é no sentido dessa "sociologia cultural" que o pensamento de Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
evolui no final de sua vida. É o que testemunha abundantemente a Krisís, de que foram publicadas as duas primeiras partes em 1936, em Belgrado. Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
se preocupa em ligar estreitamente esta reflexão sobre a história, isto é, sobre a intersubjetividade, ao seu problema, o da radicalidade transcendental: "esse escrito procura fundar a necessidade inelutável de uma conversão da filosofia à fenomenologia transcendental por meio de uma tomada de consciência teleológico-histórica aplicada às origens da situação crítica em que estamos no que se refere às ciências e à filosofia. Este escrito constitui, por conseguinte, uma introdução independente à fenomenologia transcendental". Em outros termos, o caminho percorrido até o presente e que, partindo dos problemas lógico-matemáticos ou do problema perceptivo nos levava ao eu absoluto, não é um caminho privilegiado: a via da história é igualmente segura. A elucidação da história na qual estamos empenhados ilumina a tarefa do filósofo. "Nós, que não temos apenas uma herança espiritual, mas que somos do começo ao fim, seres em devir segundo o espírito histórico, apenas em razão disso é que temos uma tarefa verdadeiramente nossa" (Krisis, 15); e o filósofo não pode não passar pela história porque o filósofo preocupado com a radicalidade deve compreender e ultrapassar os dados imediatos históricos, que são na realidade as sedimentações da história, os pressupostos, e que constituem seu "mundo" no sentido cultural. Ora, qual é a crise diante da qual nos encontramos? É a crise produto do objetivismo. Não se traia para sermos exatos, da crise da teoria física, mas da crise que atinge a significação das ciências para a própria vida. O que caracteriza o espírito moderno é a formalização lógico-matemática (a mesma que constituía a esperança das investigações lógicas) e a matematização do conhecimento natural: a mathesis universalis de Leibniz
Leibniz
LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm (1646-1716). Leibniz centraliza sua reflexão sobre o "tema" que H tem por central em toda filosofia desde Platão e Aristóteles: a questão do ser. (LDMH)
e a nova metodologia de Galileu
Galileu
Galileo Galilei (1564-1642)
.. Sobre esta base é que se desenvolve o objetivismo: descobrindo o mundo como matemática aplicada, Galileu
Galileu
Galileo Galilei (1564-1642)
redescobriu-a como obra da consciência (Kiisis II, § 9). Assim, o formalismo objetivista é alienador; esta alienação devia aparecer como mal-estar desde que a ciência objetiva viesse a apoderar-se do subjetivo: ela levava então à escolha entre construir o psíquico pelo modelo do físico ou então renunciar a estudar com rigor o psíquico pelo modelo do físico ou então renunciar a estudar com rigor o psíquico. Descartes
Descartes
H. consagrou dois cursos e quatro seminários a Descartes. A desconstrução da metafísica heideggeriana conduz um diálogo intenso com Descartes.
anuncia a solução introduzindo o motivo transcendental: pelo cogito a verdade do mundo como fenômeno, como cogitatum lhe é restituída, a alienação objetivista que conduz às aporias metafísicas da alma e de Deus cessa então — ou pelo menos teria cessado, se o próprio Descartes
Descartes
H. consagrou dois cursos e quatro seminários a Descartes. A desconstrução da metafísica heideggeriana conduz um diálogo intenso com Descartes.
não tivesse sido vítima, do objetivismo galileano e não houvesse confundido o cogito transcendental e o eu psicológico: a tese do ego res cogitans suprime todo o esforço transcendental. Daí deriva a dupla herança cartesiana: o racionalismo metafísico, que elimina o ego; o empirismo cético que arruína o saber. É somente o transcendentalismo, articulando todo saber sobre um ego fundamental, doador de sentido e que vive de uma vida pré-objetiva, pré-científica, num Lebenswelt imediato cuja ciência exata é apenas um revestimento, que dará ao objetivismo seu verdadeiro fundamento eliminando seu poder aliena-dor: a filosofia transcendental torna possível uma reconciliação do objetivismo e do subjetivismo, do saber abstraio e da vida concreta. Assim, a sorte da humanidade europeia, que é também a sorte da humanidade simplesmente, está ligada às possibilidades de conversão da filosofia à fenomenologia: "Nós somos, por nossa atividade filosófica, os funcionários da humanidade".
Ver online : Jean Lyotard
