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A obra de arte literária - Prefácio de Maria Manuela Saraiva (3)

terça-feira 18 de março de 2025, por Cardoso de Castro

A obra de arte literária - Prefácio de Maria Manuela Saraiva (3)
Roman Ingarden  , A Obra de Arte Literária. Tradução de Albin E. Beau, Maria Conceição Puga e João F. Barrento. Prefácio de Maria Manuela Saraiva.

[b]§ 2. O debate entre Realismo e Idealismo[/b]

O contributo mais original de Ingarden   em fenomenologia é talvez constituído pelas suas análises da obra de arte: literatura, para começar, mas também música, pintura, arquitectura. A sua obra fundamental, porém, diz respeito ao debate entre Realismo e Idealismo, problema de todos os tempos que retomou aguda actualidade com a adopção, por parte de Husserl  , de um novo idealismo transcendental. E Spiegelberg cita Der Streit um die Existenz der Welt como o estudo mais significativo do pensador polaco. J. Héring confirma este testemunho dizendo que todos os problemas suscitados pela nova atitude filosófica de Husserl  , concretizada em Idéias, são exaustivamente tratados no importante manuscrito de Ingarden   e faz votos pela sua rápida publicação em francês ou alemão.

Não conhecemos este livro, cujo título, A Controvérsia Acerca da Existência do Mundo, só por si remete para um problema central de Idéias. Algo se pode deduzir das referências que encontramos em A Obra de Arte Literária (notas da segunda edição), mas apenas um problema nos interessa agora: o que diz respeito ao ser da obra literária.

Basta consultar um Vocabulário de Filosofia para verificar como são múltiplas e por vezes discutíveis ou pouco claras as noções de Realismo e de Idealismo. Assim, por exemplo, importa não confundir o ponto de vista epistemológico com o ponto de vista ontológico, que são distintos, embora correlativos: uma teoria do ser está sempre ligada a uma teoria do conhecer. Não só é fácil misturar os dois planos como se tornaram correntes designações equívocas. A doutrina platônica das idéias, que aqui nos interessa de maneira especial, tanto pode ser considerada idealista (as idéias têm prioridade sobre os seres individuais e materiais, que apenas são o seu reflexo ou imagem) como realista (as idéias têm uma existência real e autônoma).

J. N. Mohanty afirma a propósito de Husserl  : «Ele é um dos raros, entre os filósofos anteriores à filosofia analítica, que recusa qualquer classificação em "ismo". De facto, o método que lhe é próprio permitiu-lhe combinar na sua filosofia elementos tão diversos como "realismo" e "idealismo", "Nacionalismo" e "empirismo", "positivismo" e "pragmatismo", "intuicionismo" e "inte-lectualismo".» Em nossa opinião, já o dissemos, a filosofia de Husserl   é essencialmente uma forma de Idealismo. Mas julgamos possível, como Mohanty, encontrar nela todas estas tendências — tensões internas que talvez nunca se resolvam. O que ajuda a explicar a pluralidade de «fenomenologias» a que Husserl   deu origem, assim como a multiplicidade de interpretações (por vezes opostas) do seu pensamento.

Se isto se aplica à obra husserliana considerada no seu conjunto («obra» de que aliás se não pode falar enquanto houver inéditos não publicados…), aplica-se, de maneira especial, às Investigações Lógicas.

Retomamos aqui o apontamento do parágrafo anterior, sobre as primeiras reacções a este livro, desenvolvendo um pouco o que atrás ficou dito. Houve quem nele visse um positivismo mais largo — que admitia, por exemplo, uma intuição intelectual — mas se abstinha de tomar posições metafísicas. Uma parte significativa deste grupo interpretou a recusa do Idealismo e do Realismo como uma terceira via que liquidava definitivamente o dilema secular. Mas, ao contrário destes, muitos, e não só entre os discípulos da primeira hora, viram na fenomenologia nascente uma abertura ao realismo epistemológico. Outros, porém, deram à famosa intuição das essências um sentido platonizante ou «idealista»…

Podíamos continuar a lista, mas paramos aqui pois chegámos ao ponto que nos interessa.

A independência da consciência e do mundo caracteriza o realismo epistemológico medieval. Quanto à segunda alternativa aqui enunciada, cremos que ela se aplica com alguma exactidão à ontologia fenomenológica de Sartre  . É uma interpretação grosso modo realista do princípio de intencionalidade que Sartre   apresenta aos leitores franceses num célebre pequeno artigo de 1939: «Une idée fondamentale de la phénoménologie de Husserl  : l’intentionnalité» (in Situations I, Paris, Gallimard, 1947), 31-5. De uma maneira geral, é esta a tendência que permanece na escola fenomenológica francesa.

No respeitante ao último problema enunciado, encontrámos provavelmente a posição de Ingarden  . Uma nota do § 18 dá-nos conta de perplexidades e oscilações por que passou em épocas anteriores às da redacção de A Obra de Arte Literária. O certo é que, ao escrevê-la, compara o Idealismo das Investigações Lógicas com o idealismo transcendental (idealismo alargado. . .) da Lógica Formal e Transcendental. Mas só ao último faz sérias reservas.

Mais uma vez enunciamos um problema que vamos reduzir às suas linhas elementares.

Qual o ser da obra literária e (ou) das objectidades que nela se manifestam? Os caps. 1 e 2 do presente livro (§§ 2-7) respondem à pergunta, numa reflexão cerrada e densa. Mas o problema fora posto logo no Prefácio e é retomado posteriormente, por exemplo nos §§ 18 e 66.

No essencial, a solução de Ingarden   consiste em recusar a alternativa entre ser real e ser ideal para introduzir uma terceira modalidade de ser: o puramente intencional, que caracteriza, entre outros, o ser da obra literária. Puramente intencional porque ontològicamente não autônomo mas dependente da consciência que o cria.

De certa maneira, esta nova modalidade de ser é também uma terceira via — que não exclui mas se acrescenta às duas zonas de ser consagradas por uma longa tradição. A analogia com a terceira via husserliana ou pseudo-husserliana permanece, contudo, no desejo de quebrar a alternativa entre Realismo e Idealismo, para admitir, neste caso, uma terceira dimensão ontológica.

Numa perspectiva puramente fenomenológica, seria a essência da obra literária a única a investigar e descrever. É nesta linha que devemos compreender a teoria dos estratos e outras análises dos últimos capítulos. Mas Ingarden   afirma com freqüência que a mera descrição fenomenológica lhe não basta. Por isso o objecto do seu estudo se insere num horizonte mais vasto, a análise fenomenológica é acompanhada — precedida — por uma reflexão ontológica na qual, precisamente, tomam lugar e sentido a discussão do ser da obra literária.

Voltando às Investigações Lógicas, é curioso verificar que Ingarden   as rectifica ou completa, mais do que as rejeita. Fala-nos das duas concepções opostas em lógica: a psicologista e a idealista; esta última, afirma, tem o seu representante mais significativo em E. Husserl   e nos dois volumes de 1900-1901 (§ 18). E, se lermos algumas passagens atrás indicadas (Prefácio de 1930, §§ 18 e 66), parece-nos fácil concluir que Ingarden   perfilha, de maneira muito menos inequívoca que Husserl  , o platonismo das essências, quanto a nós erradamente atribuído ao mestre. Apenas faz algumas distinções, importantes mas secundárias, quanto ao assunto que estamos tratando. Retira às significações husserlianas a idealidade, isto é, a intemporalidade e a invariabilidade, mas para a atribuir ao que chama essências, conceitos, objectidades ideais. Esta zona da idealidade pura é apresentada em termos que nos parecem perfeitamente platonizantes, talvez melhor, agostinianos.

Poder-se-ia objectar que apela, neste caso, para a teoria da intersubjectividade, que cita mesmo as Meditações Cartesianas no § 66. É, sem dúvida, um contributo valioso para o problema de que se ocupa nesse parágrafo (e que retomaremos em breve). As suas observações têm actualidade e lêem-se com imenso interesse. No entanto, o apelo à intersubjectividade funciona também (sobretudo dentro da economia do livro) como um desvio que lhe permite regressar ao ponto de partida, por outras palavras, que lhe serve para distinguir significação e conceito, para fazer do conceito o fundamento ontológico das unidades de significação e, finalmente, para manter as três zonas de ser: ser real, ser ideal, ser da (criado pela) consciência.

Sem poder concluir, pela leitura de A Obra de Arte Literária, quais as posições tomadas pelo filósofo polaco em todos os aspectos da controvérsia entre Realismo e Idealismo, parece-nos que a análise sumária que acabamos de fazer confirma o que atrás dissemos sobre a fase da fenomenologia husserliana que sobre ele teve influência decisiva. A comparação com Heidegger pode ser elucidativa. Enquanto o autor de Sein und Zeit   faz, em relação ao mestre comum, uma opção comparável à de Ingarden   mas cria uma metafísica com bases totalmente novas, este fica preso à problemática da sua juventude em Göttingen.

Que a distinção entre intencional e puramente intencional (com as subdistinções que se seguem) não é husserliana, seria possível demonstrá-lo com facilidade. O próprio Ingarden   o sugere, talvez, numa nota ao § 20. Aplicado à literatura, o puramente intencional parece-nos corresponder à ficção de Husserl  : literatura e artes em geral, embora Ingarden   empregue as duas noções sem as distinguir claramente.

A ficção está ligada à modificação de neutralidade, modificação do «quase», do «como se» (ais ob), passagem ao irreal ou puramente estético. Estas são as designações mais correntes em Husserl  . Reconhecemo-las em muitas páginas deste livro, nomeadamente nos §§ 25, 33-37, 63… Ingarden   emprega ainda outras, de origem lógica. No § 33 parece marcar uma certa distância entre a sua teoria e a modificação de neutralidade husserliana. Tanto quanto uma leitura atenta nos permite concluir, Ingarden   desenvolve e aplica a domínios concretos e diferentes dos de Husserl   a teoria condensada nos §§ 109-111 de Idéias I e de outros escritos. Mas, no essencial, não vemos a menor diferença entre os dois autores. Há mesmo descrições da Neutralitätsmodifikation extremamente felizes e perfeitamente conformes à doutrina do mestre.

Só mais uma palavra a terminar este parágrafo. Que Ingarden  , como tantos outros que o fundador da fenomenologia, de perto ou de longe, tocou, tenha seguido o seu próprio caminho, é com ele e com os seus leitores. Mas, num país onde o pensamento husserliano é tão mal conhecido, esta tradução pode constituir um perigo grave: o de atribuir a Ingarden   idéias que são de Husserl   ou de pôr em circulação como husserlianas idéias e teorias que, de facto, o não são. E isto em pontos tão fundamentais como é, por exemplo, a intencionalidade.

Sem tratar a questão, parece-nos útil uma rectificação de princípio. Tratar o intencional (ou o puramente intencional, tanto faz, visto que esta distinção começa já por não ser husserliana) como um modo de ser é falsear Husserl  , é colocar o problema num plano ontológico em que este nunca o colocou24. A intencionalidade husserliana é uma propriedade da consciência, propriedade essencial que a define totalmente: a sua capacidade de referência ao ser, segundo modalidades ou intenções várias: perceptiva, imaginativa, estética, intenções afectivas que se diversificam ao infinito, modos de intencionalidade puramente racionais, como os que encontramos na lógica… Limitamo-nos a dar uma pálida idéia de um domínio por assim dizer ilimitado.

Mas esta é apenas uma primeira aproximação: porque, antes da redução transcendental, portanto, ao nível das Investigações, a intencionalidade é um encontro; depois, é uma constituição.