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Um transcendental: a coisa, em substância

segunda-feira 7 de abril de 2025, por Cardoso de Castro

P. Ricœur  , Finitude et Culpabilité, I, L’homme faillible, Aubier, 1960, pp. 55-57.

O que é a coisa? É a unidade já realizada num vis-à-vis da palavra e do ponto de vista; é a síntese tal como é operada a partir do exterior. Esta síntese, na medida em que está num vis-à-vis, tem um nome: objetividade.

A objetividade não é outra coisa senão a unidade indivisível de uma aparência e de uma dicibilidade; a coisa mostra-se e pode ser dita; Uma aparência que não pudesse de modo algum ser dita, que se excluísse de qualquer universo de discurso, que não se deixasse antecipar em qualquer “sentido”, seria literalmente a aparência fugidia que Platão   compara às estátuas de Dédalo que nada liga; a aparência não ligada é como nada; inversamente, eu não ligo nada para além daquilo que se mostra.

Isto é tão verdadeiro que é a partir da síntese da coisa e sobre a coisa que a reflexão pôde discernir, por sua vez, a insuficiência da percepção, aquilo a que poderíamos chamar a desarticulação das silhuetas, e, por outro lado, a transcendência do sentido a este fluxo de silhuetas, depois a do verbo ao sentido puramente nominal…

Assim, prefiro dizer que a síntese é, antes de mais, uma síntese do sentido e da aparência e não uma síntese do inteligível e do sensível, para sublinhar que a objetividade do objeto se constitui no próprio objeto. Podemos ver o ponto em que nos afastamos de Kant  : a verdadeira síntese a priori não é aquela que se exprime em princípios, ou seja, em juízos que seriam primários em relação a todas as proposições empíricas do domínio físico. Kant   reduziu o alcance da sua descoberta às dimensões restritas de uma epistemologia; a objetividade do objeto é reduzida à cientificidade dos objectos num campo esculpido pela história da ciência. Mas a crítica é mais do que epistemologia… mais do que uma exploração da cientificidade dos objectos da ciência; a verdadeira síntese a priori não reside em afirmações, mesmo primárias.

Ela consiste no carácter objectai da coisa, a saber, esta propriedade de ser lançada diante de mim, de ser simultaneamente dada ao meu ponto de vista e capaz de ser comunicada num discurso compreendido por qualquer ser razoável. Que a dicibilidade adira à aparência de qualquer coisa é a objetividade do objeto.

Esta objetividade, que não está nem na consciência nem nos princípios da ciência, é antes o modo de ser da coisa; é propriamente a ontologia destes “seres” a que chamamos coisas.