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Ortega y Gasset: ESTRUTURA DO "NOSSO" MUNDO

quarta-feira 23 de março de 2022, por Cardoso de Castro

Não é isto, porém, o que nos interessa agora; ao contrário, e muito mais: fazer notar que a existência dessas coisas, chamadas sensíveis, não é a verdade primária e inquestionável que se tem a dizer sobre o nosso contorno, não enuncia o caráter primário que todas essas coisas nos apresentam ou, dito de outro modo, que essas coisas são para nós. Ao chamá-las "coisas" e dizer que estão aí em nosso redor, subentendemos que nada têm a ver conosco, que por si e primariamente são, com independência de nós e que, se nós não existíssemos, elas continuariam sendo igualmente. Ora, isso já é mais ou menos suposição. A verdade primeira e firme é esta: todas essas figuras de côr, de claro-escuro, de ruído, som e rumor, de dureza e maciez são tudo isso, referidas a nós e para nós, em forma ativa. Que quero dizer com isso? Qual é essa atividade sobre nós? Em que primariamente consistem? Muito simples: em ser-nos sinais para a conduta de nossa vida, em avisar-nos que algo, com certas qualidades favoráveis ou adversas, que nos importa levar em conta, está aí, ou vice-versa, que não está, que falta.

O céu azul não começa por estar lá no alto tão quieto e tão azul, tão impassível e indiferente a nós, mas começa originariamente por atuar sobre nós, como um riquíssimo repertório de sinais úteis, para a nossa vida, sua função, sua atividade, o que nos faz atender a ele e, graças a isso, vê-lo, em seu papel ativo de semáforo. Faz-nos sinais. Desde logo o céu azul nos indica bom tempo e é para nós o primeiro relógio diurno com o sol andejo que, como laborioso e fiel empregado da cidade, como um serviço municipal, muito embora — caso raro! — gratuito, realiza cotidianamente o seu percurso do Oriente ao Ocaso,- e noturnamente as constelações que nos indicam as estações do ano e os milênios, — o calendário egípcio se baseia nas mudanças milenárias de Sírio, — enfim, nos assinalam as horas. Mas não pára aqui a sua atividade indicadora, advertidora, sugeridora. Não um supersticioso homem primitivo, mas Kant  , nada menos que Kant  , para tal efeito, há bem pouco tempo, — em 1788, — resume todo o seu glorioso saber dizendo-nos: "Duas coisas existem que inundam a alma de assombro e veneração sempre novos, e que se tornam maiores quanto mais frequente e detidamente delas se ocupa a nossa meditação: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim".

Quer dizer que o céu, além de nos indicar todas essas mudanças úteis, — clima, horas, dias, anos, milênios, — úteis, mas triviais, nos indica pelo visto, com a sua noturna presença patética em que palpitam as estrelas, — palpitantes não se sabe porquê, — a existência gigante do Universo, de suas leis, de suas profundidades e a ausente presença de alguém, de algum Ser prepotente que o calculou, criou, ordenou, enfeitou. É inquestionável que a frase de Kant   não é apenas uma frase, mas descreve pulcramente um fenômeno constitutivo da vida humana: na escura noturnidade de um céu limpo, o céu cheio de estrelas nos está piscando inumeravelmente, parece querer dizer-nos algo. Compreendemos muito bem Heine, quando nos insinua que as estrelas são pensamentos de ouro que a noite tem. O seu palpebrar, ao mesmo tempo minúsculo em cada uma e imenso na abóbada inteira, é para nós um permanente incitamento para transcendermos do mundo, que é o nosso contorno, para o radical Universo.