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Ortega y Gasset: ESTRUTURA DO "NOSSO" MUNDO
quarta-feira 23 de março de 2022, por
Ao partirmos, pois, da vida humana como realidade radical, saltamos para além da milenar disputa entre idealistas e realistas e nos encontramos com o fato de que são igualmente reais na vida, não menos primariamente um ou o outro — Homem e Mundo. O Mundo é o emaranhado de assuntos ou importâncias em que o Homem está queira ou não queira, enredado; o Homem é o ser que, queira ou não queira, se acha consignado a nadar nesse mar de assuntos e obrigado, sem remédio, a que tudo, isso lhe importe. A razão disso, é que, a vida se importa a si mesma; ainda mais: não consiste, ultimamente, senão em importar-se a si mesma,- neste sentido, deveríamos dizer, com toda formalidade terminológica, que a vida é o importante. Daí que o Mundo em que ela tem de transcorrer, tem de ser, consiste em um sistema de importâncias, assunto ou prágmata. Dissemos que o mundo ou circunstância é, por isso, uma imensa realidade pragmática ou prática, — não uma realidade que se compõe de coisas. "Coisas’ significa, na língua atual, tudo quanto tem por si e em si o seu ser, portanto, que é com independência de nós. Mas os componentes do mundo vital são somente os que são para e em minha vida, — não para si e em si. São somente enquanto faculdades e dificuldades, vantagens e desvantagens para que o eu que cada um é consiga ser; são, pois, com efeito, instrumentos, utensílios, móveis, meios que me servem, — o seu ser é um ser para as minhas finalidades, aspirações, necessidades, — ou então são como estorvos, faltas, travas, limitações, privações, tropeços, obstruções, escolhos, remoras, obstáculos que todas essas realidades pragmáticas acabam sendo e, por motivos que veremos, o serem "coisas" sensu stricto é algo que vem depois, algo secundário e em todo caso muito questionável. Não existindo em nossa língua palavra que enuncie, adequadamente, isso que as coisas são para nós em nossa vida, continuarei usando o termo "coisas" para que nos possamos entender com menos inovações de léxico.
Agora devemos investigar a estrutura e o conteúdo desse contorno, circunstância ou mundo em que temos de viver. Já dissemos que ele se compõe de coisas como prágmata, isto é, que nele nos achamos com coisas. Este achar-nos com coisas, encontrá-las, já requer certas averiguações e vamos, passo a passo, fazer rapidamente a sua inteira anatomia.
1) E o primeiro que é mister dizer parece-me ser isto: se o mundo se compõe de coisas, estas me terão de ser dadas uma a uma. Uma coisa é, por exemplo, uma maçã. Prefiramos supor que é a maçã do Paraíso e não a da discórdia. Nessa cena do Paraíso descobrimos logo um problema curioso: a maçã que Eva apresenta a Adão é a mesma que Adão vê, acha e recebe?
Porque, ao oferecê-la Eva está presente, visível, patente só meia maçã, e a que Adão acha, vê e recebe é também somente meia maçã. O que se vê, o que está, rigorosamente falando, presente, do ponto de vista de Eva, é algo diferente daquilo que se vê e está presente do ponto de vista de Adão. Com efeito, toda coisa corpórea tem duas faces e, como no caso da lua, só temos presente uma dessas faces. Percebemos agora, surpreendidos, algo que é, uma vez advertido, uma grande calinada, ou seja-, que ver, o que se chama estritamente ver, ninguém viu, nunca, isso que chama de maçã, porque esta tem, ao que se crê, duas faces, mas nunca está presente mais do que uma. Ademais, se há dois seres que a veem, nenhum vê dela a mesma face, mas outra, mais ou menos diferente.
Certamente eu posso dar voltas em torno â maçã ou fazê-la girar em minha mão. Nesse movimento vão-se-me fazendo presentes aspectos, isto é, faces distintas da maçã, cada uma em continuidade à precedente. Quando estou vendo, o que se chama ver, a segunda face, lembro-me da que vi antes e somo-a àquela. Bem entendido, porém: esta soma, do recordado ao efetivamente visto, não faz que eu possa ver juntos todos os lados da maçã. Esta, pois, enquanto unidade total, portanto, no que entendo quando digo "maçã", jamais me está presente; assim, não é para mim com radical evidência, mas somente, em suma, com uma evidência, de segunda ordem, — aqui corresponde à mera lembrança, — em que se conservam nossas experiências anteriores acerca de uma coisa. Daí, à efetiva presença daquilo que só é parte de uma coisa, se vai automaticamente acrescentando o resto dela, do qual diremos, pois, que não está apresentado, mas sim compresentado ou compresente. Verão logo a luz que esta ideia do com-presente, da compresença anexa a toda presença de algo, ideia que se deve ao grande Edmundo Husserl , nos vai proporcionar para esclarecer-nos sobre o modo pelo qual aparecem em nossa vida as coisas e o mundo em que as coisas estão.