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Ortega y Gasset: ESTRUTURA DO "NOSSO" MUNDO

quarta-feira 23 de março de 2022, por Cardoso de Castro

2) O segundo que convém notar é isto: achamo-nos agora neste salão, que é uma coisa em cujo interior estamos, é um interior por estas duas razões: porque nos rodeia ou envolve por todos os lados e porque a sua forma é fechada, isto é, contínua. Sem interrupção, sua superfície se nos faz presente de forma que não vemos nada mais senão ela; não tem buracos ou aberturas, descontinuidades, brechas ou fendas que nos deixem ver outras coisas que não são ela e seus objetos interiores: assentos, paredes, luzes, etc. . . Imaginemos, porém, que, ao sair daqui, concluída esta lição, verifiquemos que não havia nada mais além, isto é, fora, que não havia o resto do mundo em torno dela, que as suas portas dessem não para a rua, para a cidade, para o Universo, mas para o Nada. Tal achado nos produziria um choque de surpresa e de terror. Como se explica esse choque se agora, enquanto estamos aqui, só tínhamos presente este salão e não havíamos pensado, — se eu não tivesse feito esta observação, — em se havia ou não um mundo fora de suas portas, quer dizer, em se existia em absoluto um fora? A explicação não pode oferecer dúvida. Adão também teria sofrido um choque de surpresa, embora mais leve, se houvesse acontecido que o que Eva lhe dava era somente meia maçã, a metade que ele podia ver, faltando a outra meia maçã compresente. Com efeito, enquanto este salão é para nós sensu-stricto presente, é-nos compresente o resto do mundo, fora do salão e, como no caso da maçã, essa compresença daquilo que nos é patente, mas que uma experiência acumulada nos faz saber que, mesmo não estando à vista, existe, está aí e se pode e se tem de contar com a sua possível presença, é um saber que em nós se converteu em habitual, que levamos em nós habitualizado. Ora, o que em nós atua por hábito adquirido, em razão de o ser, não o advertimos especialmente, não temos dele uma consciência particular, atual. Junto ao par das noções presente e compresente convém que distingamos também este outro par: o que para nós é atualmente, em um ato preciso, expresso, e o que para nós é habitualmente, que está constantemente sendo para nós, existindo para nós, mas nessa forma velada, não aparente, e como adormecida da habitualidade. Anote-se, pois, na memória, este outro par: atualidade e habitualidade. O presente é para nós em atualidade; o com-presente, em habitualidade.

Isso nos faz desembocar em uma primeira lei sobre a estrutura do nosso contorno, circunstância, ou mundo. Esta: o mundo vital se compõe de umas poucas coisas no momento presentes e de inumeráveis coisas, no momento latentes, ocultas, coisas que não estão à vista mas que sabemos ou cremos saber, — é o mesmo, para o caso, — que poderíamos vê-las, que poderíamos tê-las em presença. Conste, portanto, que agora chamo latente só aquilo que em cada instante não vejo, mas que sei que ou vi antes, ou poderia, em princípio, ver depois. Das sacadas de Madri se vê o expressivo, grácil, denteado perfil da nossa serra de Guadarrama; esse perfil nos é presente; sabemos, porém, por tê-lo ouvido ou por havê-lo lido, em textos que nos oferecem crédito, que há também uma cordilheira do Himalaia, a qual, nada mais que com um pouco de esforço e um bom talonário de cheques no bolso poderíamos entrever. Enquanto não fazemos esse esforço e nos falta, como é habitual, o supra dito talonário, o Himalaia está aí latente para nós, mas formando parte efetiva do nosso mundo nessa peculiar forma de potência.

A essa primeira lei estrutural do nosso mundo, que consiste, — repito — em fazer notar como esse mundo se compõe, em cada instante, de umas poucas coisas presentes e muitíssimas latentes, acrescentamos agora uma segunda lei não menos evidente; esta: não nos é presente nunca uma coisa sozinha, mas, ao contrário: vemos sempre uma coisa destacando-se sobre outras em que não prestamos atenção, e que formam um fundo sobre o qual se destaca o que vemos. Aqui se percebe claramente porque chamo a essas leis: leis estruturais; porque essas nos definem, não as coisas que há em nosso mundo, mas, a estrutura do mundo; por assim dizer descrevem rigorosamente a sua anatomia. Assim, esta segunda lei vem dizer-nos: o mundo em que temos de viver possui sempre dois termos e órgãos: a coisa ou coisas que vemos com atenção e um fundo sobre o qual aquelas se destacam. Com efeito, note-se que constantemente o mundo nos adianta uma de suas partes ou coisas, como um promontório de realidade, enquanto deixa, como fundo desatendido dessa coisa ou coisas atendidas, um segundo termo que atua com o caráter de âmbito no qual a coisa nos aparece. Esse fundo, esse segundo termo, esse âmbito é o que chamamos horizonte. Toda coisa advertida, atendida, que olhamos e com que nos ocupamos, tem um horizonte de onde e dentro do qual nos aparece. Agora me refiro somente ao visível e presente. O horizonte também é algo que vemos, que está aí para nós, patente, mas está para nós e o vemos quase sempre em forma de desatenção, porque nossa atenção está retida por tal ou qual coisa que representa o papel de protagonista em cada instante de nossa vida. Mais para lá do horizonte está aquilo que do mundo não nos é presente neste "agora", o que dele nos é latente.