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Ortega y Gasset: ESTRUTURA DO "NOSSO" MUNDO

quarta-feira 23 de março de 2022, por Cardoso de Castro

Com isso se complicou um pouco mais para nós a estrutura do mundo, pois agora temos três planos ou termos nele: em primeiro termo: a coisa que nos ocupa; em segundo: o horizonte à vista, dentro do qual ela aparece e, em terceiro termo: o mais além latente "agora".

Precisemos o esquema dessa mais elementar estrutura anatômica do mundo. Como se adverte, começa a mostrar-se-nos uma diferença na significação de contorno e mundo, que até agora tínhamos usado como sinônimos. Contorno é a porção do mundo que abarca em cada momento o meu horizonte à vista e que, portanto, me é presente. Fique bem entendido que, — como sabemos por nossa primeira observação, — as coisas presentes apresentam só uma face, não o seu dorso, que fica apenas com-presentado; vemos somente o seu anverso e não o seu reverso; contorno é, pois, o mundo patente ou semi-patente, em tomo. Nosso mundo, porém, contém sobre este, mais além do horizonte e do contorno, uma imensidade latente em cada instante determinado, feita de puras compresenças; imensidade, em cada situação nossa, recôndita, oculta, tapada por nosso contorno e que envolve este. Repito uma vez mais: esse mundo latente per accidens, como dizem nos seminários, não é misterioso, nem arcano, nem privado de possível presença, mas se compõe de coisas que vimos ou que podemos ver, mas que em cada instante atual estão ocultas, cobertas para nós por nosso contorno; mas nesse estado de latência ou veladura, atuando em nossa vida como habitualidade, da mesma forma que atua agora em nós, sem que o advirtamos, o fora deste salão. O horizonte é a linha fronteiriça entre a porção patente do mundo e a sua porção latente.

Em toda essa explicação para tornar o assunto mais fácil e pronto, me referi somente à presença visível das coisas, porque a visão e o visível são a forma de presença mais clara. Por isso quase todos os termos que falam do conhecimento e de seus fatores e objetos são, desde os gregos, tomados de vocábulos vulgares que na língua se referem ao ver e ao olhar. Ideia em grego é a vista que oferece uma coisa, seu aspecto, — que em latim vem, por sua vez, de spec, ver, olhar. Daí: espectador o que contempla; inspector; daí respeito, isto é, o lado de uma coisa que se olha e considera; circunspecto, cauteloso, que olha em redor, não se fiando nem de sua sombra, etc.

O ter eu preferido referir-me somente à presença visível não quer dizer que ela seja a única, — não menos presentes são para nós, e muito, outros caracteres. Reitero uma vez mais que, ao dizer que as coisas nos são presentes, digo algo cientificamente incorreto, pouco rigoroso.

É um pecado filosófico que cometo com muito gosto, para facilitar o ingresso nessa maneira radical de pensar a realidade básica e primigênia que é nossa vida. Mas conste que essa expressão é inexata. O que nos é propriamente presente não são as coisas, mas as cores e as figuras que as cores formam; resistências a nossas mãos e membros, maiores ou menores, de um ou de outro cariz; isto é, durezas e branduras, a dureza do sólido, a resistência deslizante do líquido ou do fluido, da água, do ar; cheiros bons e maus, etéreos, aromáticos, preciosos, fétidos, balsâmicos, almiscarados, picantes, caprinos, repugnantes; rumores que são murmúrios, ruídos, zum-zuns, guinchos, estridores, zumbidos, estrépitos, estampidos, estrondos e, assim, até onze classes de presenças que chamamos "objetos dos sentidos", pois se deve advertir que o homem não possui somente cinco sentidos como reza a tradição mas, pelo menos, onze, que os psicólogos nos ensinaram a diferenciar muito bem.

Ao chamá-los "objetos dos sentidos", substituímos os nomes diretos das coisas patentes, que integram prima facie o nosso contorno, com outros nomes que não os designam diretamente, mas que pretendem indicar o mecanismo pelo qual os advertimos ou percebemos. Em vez de dizer coisas que são cores e figuras, ruídos, cheiros, etc, dizemos "objetos dos sentidos", coisas sensíveis que são visíveis, tangíveis, audíveis, etc. Ora, — e tenha-se isto em muito boa conta, — que existam para nós cores e figuras, sons, etc. graças ao fato de que temos órgãos corporais que cumprem a função psico-fisiológica de fazer com que os sintamos, de produzir em nós as sensações deles; tudo isso será tão verossímil, tão provável quanto queirais, mas é somente uma hipótese, um intento nosso de explicar essa maravilhosa presença para nós do nosso contorno. O inquestionável é que essas coisas estão aí, nos rodeiam, nos envolvem e temos de existir entre elas, com elas, apesar delas. Trata-se, pois, de duas verdades muito elementares e básicas, mas de qualidade ou ordem muito diferente: que as coisas cromáticas e suas formas, que os ruídos, as resistências, o duro e o brando, o áspero e o polido estão aí: é uma verdade firme. Que tudo isso está aí porque temos órgãos dos sentidos e estes são o que se chama na fisiologia, — com um termo digno do médico de Molière, — "energias específicas": é urna verdade, provável, somente provável, quer dizer hipotética.