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Merleau-Ponty, antropologia filosófica? (Bimbenet)

sábado 26 de abril de 2025, por Cardoso de Castro

Bimbenet, 2004

A possibilidade de uma antropologia propriamente filosófica se mede, sem dúvida, pela força de interrogação que tal discurso pretende preservar, tanto diante dos enunciados positivos acumulados pelas ciências do humano, quanto diante do estoque de certezas sem perguntas que o humanismo tão frequentemente nos fornece. Uma antropologia se definiria como filosófica quando aceitasse fundamentar todas as suas assertivas no solo — inquietante para todo saber — de um questionamento fundamental; quando aceitasse confrontar as certezas da ciência ou do dogma com a desmedida filosófica do espanto. Essa "revisão" do discurso antropológico, sabemos como Kant   a anunciava no início de sua Lógica: não apenas a palavra "homem" só era pronunciada em modo interrogativo ("O que é o homem?"), mas essa questão já se apresentava como a integral das três questões críticas ("O que posso saber?"; "O que devo fazer?"; "O que me é permitido esperar?"). Era isso, senão um programa, pelo menos um aviso: o mais verdadeiro, ou o mais íntimo de nós mesmos, estaria a ser buscado não no lado de um conhecimento, por mais absoluto que fosse, mas antes na inquietação sem remissão que atravessa o saber, o dever ou a esperança.

Ora, é impressionante notar, ao ler Merleau-Ponty  , como ele assume resolutamente essa desestabilização do tema antropológico. O homem é uma palavra raramente honrada em sua obra, que não cessa de suspender, submetendo-a à interrogação: é uma palavra pronunciada em voz baixa e que, poder-se-ia dizer, exige certa modéstia. Descrevendo, em uma conferência de 1951, o "humanismo sem vergonha" professado no início do século, Merleau-Ponty   observa, não sem ironia:

A natureza humana tinha por atributos a verdade e a justiça, como outras espécies têm a nadadeira ou a asa. A época estava repleta desses absolutos e dessas noções separadas […]. O humanismo de hoje não tem mais nada de decorativo ou de conveniente. Ele não ama mais o homem contra seu corpo, o espírito contra sua linguagem, os valores contra os fatos. Ele não fala mais do homem e do espírito senão com sobriedade, com modéstia: o espírito e o homem nunca são, eles transparecem no movimento pelo qual o corpo se faz gesto, a linguagem obra, a coexistência verdade.

"O espírito e o homem nunca são": o que está em jogo é, no fundo, um certo idealismo que, ao reconhecer no homem o privilégio do espírito ou da razão, ignoraria o fundo de contingência sobre o qual se ergue o fenômeno humano. Ao precipitar esse fenômeno em uma natureza humana eterna, ao ir rápido demais à ideia consumada de nossa humanidade, o espiritualismo do início do século cedia à ilusão, tão bem definida por Valéry, desse "pequeno homem que está dentro do homem e que sempre supomos". O homem não está feito nem por fazer — nem feito, como uma essência em eterna posse de si, nem por fazer, como um fim glorioso projetado no termo de um progresso necessário. Seria preciso dizer mais: não se trata apenas de que o homem seja "inacabado" ou "livre", como poderia sê-lo no existencialismo "humanista" de Sartre  ; é antes que ele é, para a reflexão que o aborda, misterioso, ou espantoso. Longe de nos remeter a uma nova definição do humano, o inacabamento do homem aqui só desemboca em uma profunda perplexidade. A modéstia não se assemelha a um movimento de recuo, provocado por certa definição de seu objeto; é antes uma recusa a afirmar com precipitação. Evocando em outro lugar o "milagre de nossa vida encarnada", Merleau-Ponty   adverte: "E certamente, eis uma grande maravilha cuja palavra ’homem’ não deve ocultar-nos a estranheza". A "palavra ’homem’" funcionaria assim como um verdadeiro véu de ignorância, que uma forma de epoché implícita teria de levantar; nosso saber habitual do humano teria de se apagar em benefício do espanto, assim como, na redução transcendental, a suspensão da tese do mundo desemboca no espanto diante do fenômeno do mundo. Há aí uma suspensão cética do juízo que Montaigne praticara sistematicamente, e sobre a qual Merleau-Ponty   confessa uma verdadeira dívida:

A palavra "estranho" é a que mais aparece quando Montaigne fala do homem. Ou "absurdo". Ou "monstro". Ou "milagre" […]. Em plena consciência, não se pode portanto resolver o problema do homem, só se pode descrevê-lo como problema. Daí essa ideia de uma pesquisa sem descoberta, de uma caça sem presa, que não é o vício de um diletante, mas o único método possível quando se trata de descrever o homem.

Dizer então que Merleau-Ponty  , seguindo Montaigne, se espanta com o humano, é dizer ao mesmo tempo que ele o toma como objeto e que o anula como objeto. Merleau-Ponty   não é humanista nem anti-humanista: ele pensa o homem como problema, e portanto o pensa na fronteira do humano, lá onde ele ainda não é, e poderia não ser. Tal é, pelo menos, a hipótese que gostaríamos de verificar.