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Ricoeur (1997:424-425) – Identidade narrativa

sábado 3 de maio de 2025, por Cardoso de Castro

Ricoeur  , 1997

O frágil rebento oriundo da união da história e da ficção é a atribuição a um indivíduo ou a uma comunidade de uma identidade específica que podemos chamar de identidade narrativa. O termo “identidade” é aqui tomado no sentido de uma categoria da prática. Dizer a identidade de um indivíduo ou de uma comunidade é responder à questão: Quem fez tal ação? Quem é o seu agente, o seu autor? [1] Essa questão é primeiramente respondida nomeando-se alguém, isto é, designando-o por um nome próprio. Mas qual é o suporte da permanência do nome próprio? Que justifica que se considere o sujeito da ação, assim designado por seu nome, como o mesmo ao longo de toda uma vida, que se estende do nascimento à morte? A resposta só pode ser narrativa. Responder à questão “quem?”, como o dissera energicamente Hannah Arendt  , é contar a história de uma vida. A história narrada diz o quem da ação. A identidade do quem é apenas, portanto, uma identidade narrativa. Sem o auxílio da narração, o problema da identidade pessoal está, com efeito, fadado a uma antinomia sem solução: ou se coloca um sujeito idêntico a si mesmo na diversidade de seus estados, ou se considera, na esteira de Hume   ou de Nietzsche  , que esse sujeito idêntico é somente uma ilusão substancialista, cuja eliminação só revela um puro diverso de cognições, de emoções e de volições. Desaparece o dilema se substituirmos a identidade compreendida no sentido de um mesmo (idem) pela identidade compreendida [424] no sentido de um si mesmo (ipse); a diferença entre idem e ipse não é senão a diferença entre uma identidade substancial ou formal e a identidade narrativa. A ipseidade pode escapar ao dilema do Mesmo e do Outro, na medida em que sua identidade se baseia numa estrutura temporal conforme ao modelo de identidade dinâmica oriunda da composição poética de um texto narrativo. O si mesmo pode, assim, ser dito refigurado pela aplicação reflexiva das configurações narrativas. Ao contrário da identidade abstrata do Mesmo, a identidade narrativa, constitutiva da ipseidade, pode incluir a mudança, a mutabilidade, na coesão de uma vida. [2] O sujeito mostra-se, então, constituído ao mesmo tempo como leitor e como escritor de sua própria vida, segundo o voto de Proust. [3] Como a análise literária da autobiografia verifica, a história de uma vida não cessa de ser refigurada por todas as histórias verídicas ou fictícias que um sujeito conta sobre si mesmo. Essa refiguração faz da própria vida um tecido de histórias narradas.


[1Hannah Arendt. The human condition. Chicago: University of Chicago Press, 1958; trad. francesa de G. Fradier. La condition de l’homme moderne. Com prefácio de P. Ricoeur. Calmann-Lévy, 1983. Sobre o mesmo tema, Martin Heidegger. Ser e tempo, § 25 (O ‘quem’ do ser-aí”) e § 74 (”Cuidado e ipseidade”).

[2Sobre os conceitos de “coesão da vida”, “mutabilidade”, “constância a si mesmo”, cf. Heidegger, Ser e tempo, § 72.

[3Marcel Proust. A la recherche du temps perdu, t. III, p. 1033.