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O homem e os valores

segunda-feira 7 de abril de 2025, por Cardoso de Castro

J.-P. Sartre  , L’Être et le Néant, Gallimard, 1943, p. 720 ss.

A ontologia não pode formular de per si prescrições morais. Consagra-se unicamente àquilo que é, e não é possível derivar imperativos de seus indicativos. Deixa entrever, todavia, o que seria uma ética que assumisse suas responsabilidades em face de uma realidade humana em situação. Com efeito, revelou-nos a origem e a natureza do valor; vimos que o valor é a falta em relação à qual o Para-si determina a si mesmo em seu ser como falta. Pelo fato de que o Para-si existe, como vimos, surge o valor para obsedar seu ser-Para-si. Segue-se daí que as diversas tarefas do Para-si podem ser objeto de uma psicanálise existencial, pois todas elas visam produzir a síntese faltada da consciência e do ser sob o signo do valor, ou causa de si. Assim, a psicanálise existencial é uma descrição moral, já que nos oferece o sentido ético dos diversos projetos humanos; ela nos indica a necessidade de renunciar à psicologia do interesse, como também a toda interpretação utilitária da conduta humana, revelando-nos a significação ideal de todas as atitudes do homem. Tais significações acham-se Para-além do egoísmo e do altruísmo, Para-além também dos chamados comportamentos desinteressados. O homem se faz homem para ser Deus, pode-se dizer, e a ipseidade, considerada por esse ponto de vista, pode parecer um egoísmo; mas, precisamente porque não há qualquer medida comum entre a realidade humana e a causa de si que pretende ser, pode-se dizer também que o homem se perde para que a causa de si exista. Consideraremos então toda a existência humana com uma paixão, o tão famoso “amor-próprio” não sendo mais do que um meio escolhido livremente entre outros para realizar esta paixão. Mas o resultado principal da psicanálise existencial deve ser fazer-nos renunciar ao espírito de seriedade. O espírito de seriedade tem por dupla característica, com efeito, considerar os valores como dados transcendentes, independentes da subjetividade humana, e transferir o caráter de “desejável” da estrutura ontológica das coisas para sua simples constituição material. Para o espírito de seriedade, de fato, o pão é desejável, por exemplo, porque é necessário viver (valor inscrito no céu inteligível) e porque é nutritivo. O resultado do espírito de seriedade, o qual, como se sabe, reina sobre o mundo, consiste em fazer com que a idiossincrasia empírica das coisas beba, como um mata-borrão, os valores simbólicos destas: destaca a opacidade do objeto e o coloca, em si mesmo, como um desejável [763] irredutível. Também já estamos no plano da moral, mas, concorrentemente, no plano da má-fé, pois é uma moral que se envergonha de si mesmo e não ousa dizer seu nome; obscureceu todos os seus objetivos para livrar-se da angústia. O homem busca o ser às cegas, ocultando de si mesmo o projeto livre que constitui esta busca; faz-se de tal modo que seja esperado pelas tarefas dispostas ao longo de seu caminho. Os objetos são exigências mudas, e ele nada mais é em si do que a obediência passiva a essas exigências.

A psicanálise existencial irá revelar ao homem o objetivo real de sua busca, que é o ser como fusão sintética do Em-si com o Para-si; irá familiarizá-lo com sua paixão. Na verdade, existem muitos homens que praticaram em si mesmos esta psicanálise e não esperaram para conhecer seus princípios, de forma a servir-se dela como meio de libertação e salvamento. Muitos homens sabem, com efeito, que o objetivo de sua busca é o ser; e, na medida em que possuem este conhecimento, abstêm-se de se apropriar das coisas por si mesmas e tentam realizar a apropriação simbólica do ser-Em-si das mesmas. Mas, na medida em que tal tentativa ainda compartilha do espírito de seriedade e em que ainda podem supor que sua missão de fazer existir o Em-si-Para-si acha-se inscrita nas coisas, esses homens estão condenados ao desespero, pois descobrem ao mesmo tempo que todas as atividades humanas são equivalentes — já que todas tendem a sacrificar o homem para fazer surgir a causa de si — e que todas estão fadadas por princípio ao fracasso. Assim, dá no mesmo embriagar-se solitariamente ou conduzir os povos. Se uma dessas atividades leva vantagem sobre a outra, não o será devido ao seu objetivo.real, mas por causa do grau de consciência que possui de seu objetivo ideal; e, nesse caso, acontecerá que o quietismo do bêbado solitário prevalecerá sobre a vã agitação do líder dos povos.

Mas a ontologia e a psicanálise existencial (ou a aplicação espontânea e empírica que os homens sempre fizeram dessas disciplinas) devem revelar ao agente moral que ele é o ser pelo qual os valores existem. É então que sua liberdade tomará consciência de si mesmo e se descobrirá, na angústia, como única fonte do valor, e como o nada pelo qual o mundo existe.