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Morujão (1961) – Problematicidade e apodicidade do mundo
terça-feira 18 de março de 2025, por
Alexandre Fradique Morujão, Significado e Estrutura da Redução Fenomenológica. Biblos LVI
Capítulo IV O PROBLEMA FENOMENOLÓGICO DO MUNDO
§ 20. Problematicidade e apodicidade do mundo
Os capítulos anteriores tiveram por finalidade apresentar o processo do pensamento husserliano que culmina nas teses das Meditações Cartesianas. O objetivo inicial da meditação de Husserl fora, incontestavelmente, o de restituir à filosofia aquela universalidade e exigência de rigor, aquela Allgemeingültigkeit que as tendências psicologistas da época, de mãos dadas com o naturalismo, bem como a oposição entre as diversas escolas e tradições tinham seriamente comprometido. A formação científica de Husserl vai levá-lo a procurar realizar, no domínio filosófico, aquele ideal de rigor e universalidade que, na sua esfera própria, a todo o momento exercitam as ciências positivas.
A redução fenomenológica outra coisa não visa que não seja preparar o terreno onde a ciência rigorosa da filosofia se vai estabelecer. Esse rigor científico é extraído de uma ideia geral da ciência, derivada das disciplinas científicas existentes; embora não se possa estabelecer identidade entre as ciências realmente dadas como fato cultural e ciência no ’sentido estrito e verdadeiro’, funciona esta última como telos de toda e qualquer ciência de fato. Podemos reservar o juízo quanto ao valor das ciências existentes, sua exatidão e métodos mas, desde que vivamos as intenções da tendência científica, podemos captar os elementos constitutivos do sentido teleológico (Zwecksidee) próprio de toda a ciência verdadeira. Em última análise, esses elementos constitutivos reduzem-se a ideia de evidência; uma justificação verdadeira obriga qualquer juízo a demonstrar a sua exatidão, ou seja, o acordo com a coisa que se julga; o ato de julgar é uma intenção e, mais geralmente, simples presunção de que uma coisa seja desta ou daquela maneira; o que é posto pelo juízo é somente coisa ou estado de coisas (Sachverhalt), presumidos ou visados; na evidência não são apenas visados de maneira distante e inadequada, mas estão presentes em si mesmos. Um juízo, que passe da simples presunção para o modo de evidência correlativa, conforma-se às coisas e é esta possibilidade que permite fundar a verdade científica: «as ciências visam sistemas de predicações, destinados a dar uma expressão completa e adequada do que é intuicionado de maneira ante-predicativa» Por conseguinte, tendendo o trabalho filosófico para o fim presumido de uma ciência verdadeira, não pode admitir-se como válido em filosofia qualquer juízo que não tenha sido haurido na evidência. O problema consistirá então em passar da ideia de evidência para uma evidência que realmente seja primeira e que nos possibilite realizar a ideia de ciência verdadeira. Simplesmente, a perfeição que exigimos da evidência diferencia-se; não há uma definição unitária de evidência, porque a experiência é pluralista; diferencia-se pela pluralidade dos objetos e, por conseguinte, pelos modos de presença em que aqueles se dão. Hâ uma multiplicidade de fato de modos de evidência, lodos mais ou menos insuficientes, unilaterais, indistintos, obscuros. Ao lado de objetos, cuja presença se pode denominar ’saturante’, plena, outros há cuja experiência é viciada por componentes de intenção significante ainda não preenchidos por uma intuição correspondente. O aperfeiçoamento operar-se-á na progressão sintética de experiências concordantes em que as intenções são levadas ao nível da experiência que as confirma e preenche. É este o caso de todo o objeto de percepção; qualquer juízo que lhe diga respeito nunca pode ser adequadamente justificado de forma intuitiva, pois o objeto correspondente nunca está plenamente aí. A evidência é por natureza imperfeita. A esta, contrapõe-se a evidência perfeita ou adequada que outra coisa não representará talvez que um ideal situado no infinito.
Da evidência adequada distingue Husserl , nas Meditações Cartesianas, a evidência apodítica. A apodicidade pode pertencer a evidências inadequadas. Se, em cada evidência, é o ente ou suas determinações que são captados em si mesmos (im Modus ’es selbst’), não fica contudo excluída a hipótese da possibilidade de o objeto dado na evidência se tornar seguidamente objeto de uma dúvida: «o ser pode-se revelar como simples aparência; a experiência sensível apresenta-nos muitos exemplos disso». Ora «esta possibilidade sempre aberta ao objeto de evidência de em seguida se tornar objeto de dúvida, de poder não ser», não tem lugar no objeto de evidência apodítica, pois esta última é, simultaneamente, certeza da existência das coisas ou estado de coisas (Sachverhalt) evidentes e inconceptibilidade absoluta da sua não existência.
A evidência apodítica, que sirva de base ou ponto de partida para a fenomenologia, não pode ser dada pelo mundo natural. Este, como acima esclarecemos (7), é um dubítandum; a coisa, transcendente-tipo, como elemento integrador do mundo, possui uma existência contingente; a concordância dos ’perfis’ ou ’perspectivas’, segundo os quais, por essência, é dada, não é necessária; há uma possibilidade constante de se dar um novo ’perfil’, que não se una de modo consequente ao anterior. A existência de um mundo será o correlato de uma certa esfera de experiências caracterizadas por determinadas configurações essenciais; todavia, a análise do fenômeno perceptivo em geral, bem como o de outras espécies de intuição empírica colaborantes da percepção, não leva a concluir com evidência que as experiências atuais se devam apresentar sob tal forma de encadeamento. O mundo pode destruir-se por conflito interno entre as sucessões de experiências que deviam convergir.
Se a redução fenomenológica vai pôr entre parêntesis esse dubitandum, significa isto que, relativamente à realidade mundo, se deve suspender todo o juízo existencial; quer isto dizer que a existência é algo de que se pode duvidar, um fator de discórdia que urge suprimir, se queremos a apodicidade na fundamentação da filosofia. A Einklammerung da existência pressupõe ainda que a existência não seja um predicado e, portanto, não seja em si significativa, o que torna possível «descrever exaustivamente o sentido do real sem tomar posição perante a sua realidade de fato». Se assim não fosse, a pretensão de descrever exatamente o que é dado não se realizaria, pois de essa descrição ficaria excluído um fator significativo e a própria ideia de fenomenologia destruía-se a si mesma. Contudo mantém-se a distinção entre imanente e transcendente, sendo esta realizada mediante critérios intrínsecos ao modo de se darem; enquanto o último se dá necessariamente, sob a forma perspectivística e, portanto, inadequada, e mais ainda, problemática, é o objeto imanente dado numa percepção, mas nessa vivência está realmente (reell) presente, de maneira completa’, esgota-se no momento da sua aparição, ao contrário da coisa transcendente, que só perspectivisticamente é susceptível de se apresentar. Certo é que a evidência em que é dado não se pode chamar perfeita: a vivência não se dá na sua unidade plena, embora tudo o que dela se possa proferir se funde no momento único em que se revela. É da sua própria essência apresentar-se sob a forma de fluxo, logo, nem sempre de modo adequado, o que não obsta a que se dê de modo apodítico, pois o objeto dado na evidência não pode mais tarde ser objeto de dúvida; a adequação e a apodicidade de uma evidência não caminham necessariamente de mãos dadas.
O objeto real, transcendente, é visado através de Abschattungen — e qualquer outra forma de se dar não é pensável — e afetado de contingência pois, como vimos, a coisa está simultaneamente para além de todas as visadas possíveis e é imanente a cada uma delas. A página do livro que observo é, de certo modo, o livro inteiro, mas este não se esgota na visada da página considerada. A percepção, embora apresente a coisa em si mesma, não esgota por essência o seu objeto. A presença deste é inexaustiva; a evidência de uma Abschattung não tem outra função que não seja remeter para a aquisição de outros ’perfis’. A evidência adapta-se aos modos de presença que visa e, neste caso, a ’evidencia perspectivista’ remete para aquisições futuras de outras evidências do mesmo tipo. É sempre possível um progresso, sucederem-se indefinidamente evidências após evidências, sem que nunca se possa alcançar uma evidência adequada de uma coisa real, «pois todas elas vêm acompanhadas de pré-intenções e com-intenções não ’preenchidas’ intuitivamente». Uma coisa material, dada ’em pessoa’, numa evidência empírica perfeita, «não pode outra coisa ser que o objeto idêntico das intenções atuais e potenciais na unidade da consciência» e é portanto ideia infinita relativa à infinidade das experiências correspondentes. Por mais forte razão, o próprio mundo é também uma ideia infinita e duplamente infinita pois é relativa às experiências, das quais é correlato, e aos objetos que contém. O mundo, por conseguinte, se visa uma totalidade real — a totalidade dos objetos reais — se é pois interpretado, de acordo com a atitude natural e a atividade cientifica, como omnitudo realitatis, só pode beneficiar de uma evidência problemática pois é também uma evidência dessa ordem aquela que corresponde aos objetos que o integram.
Esta noção de problematicidade da evidência relativa à existência do mundo é fruto da via cartesiana utilizada por Husserl na redução fenomenológica. A exigência de um ponto de partida apodítico conduziu a uma filosofia da consciência ou da subjetividade, que se move na esfera dos atos de reflexão. É o cogito o ponto de partida, mas a imanência deste conhecimento, a que a epoche nos reduz, faz-nos tocar a própria essência da consciência. Consciência (Bewusstsein) não aparece nos textos husserlianos como um termo unívoco; antes de mais, significa a unidade fenomenológico-real das vivências do eu (reelle-phänomenologische Einheit der Icherlebnisse); em segundo lugar, consciência é sinônimo de percepção interna (innere Wahrnehmung), com seus graus de adequação e de inadequação, consoante o seu objeto está ou não atualmente presente; finalmente, a consciência é definida pela intencionalidade, ou seja, esgota-se em ’estar dirigida para…’. Se a interpretação da consciência como percepção interna nos leva a entendê-la como um ’dentro’ oposto a um ’fora’, um ’interior’ oposto a um ’exterior’, um ’imanente’, oposto a um ’transcendente’, definida como intencionalidade, impede-nos de interpretar a imanência husserliana em termos de interioridade fechada, própria da consciência cartesiana. Imanência e transcendência residem na maneira de um objeto ser dado imediata ou mediatamente, deixando o transcendente de ser aquilo que está representado na consciência, se encontra exterior a ela e cuja existência, por conseguinte, se apresenta problemática. Como observa De Waelhens , na medida em que Husserl admite uma evidência apodítica da vivência e traduz essa apodicidade em termos de necessidade do objeto, confunde a evidência como presença de algo, típica da fenomenologia, com a atitude cartesiana da certeza do cogito, conducente a uma concepção não intencional da consciência e ao insularismo desta. Ora a verdade é que a evidência, definida como presença de algo, está totalmente isenta de dúvida, isto é, na medida em que essa presença for efetiva, não pode tornar-se duvidosa. Certamente que é susceptível de, em momento posterior, o seu objeto ser afetado pela dúvida, mas essa possibilidade não diz respeito propriamente à evidência, mas sim ao objeto, relativamente ao qual foi obtida. Se no ato perceptivo intenciono algo que depois se revela como ilusório, não quer isto significar que o objeto percepcionado possa tornar-se objeto de ilusão, mas sim que a intenção não era de ordem perceptiva e o objeto não se podia dizer de percepção. A análise fenomenológica é que evitará confundir entre objeto de percepção presente, objeto de alucinação presente, etc..
Sendo assim, o cogito husserliano beneficia certamente cie uma evidência apodítica, mas diferente da que se encontra no cogito de Descartes . Após a redução, conserva-se o mundo a título de correlato permanente, descritível e necessário. Certo é que, relativamente ao mundo, me abstenho de qualquer afirmação, mas isso não significa que desapareça do meu campo de percepção reduzido; permanece como fenômeno puro, convertido em mundo para mim. O cogito é apodítico, mas inconcebível sem este mundo para mim e, por conseguinte, também este mundo há-de beneficiar de essa mesma apodicidade. O que há a determinar é o grau de apodicidade que lhe corresponde. Se a consciência é visada, ordenação ao outro, abertura, então é o mundo como tal que participa da apodicidade da subjetividade e não as cogitationes particulares, não cada um dos objetos. Este mundo, como tal, não se confunde, portanto, com o somatório de entes, com a totalidade e ordem dos seres na sua presença espacial, mesmo afetadas da Einklammerung. A ideia não cartesiana de consciência como contemplação do que encontra, como abertura, leva a interpretar o ’mundo reduzido’, afetado de evidência apodítica, como necessidade de objetivar; o ’sentido’ do mundo visa a objetividade, embora todo e qualquer objeto particular possa apresentar-se afetado do carácter de presumível. O mundo será o correlato necessário de toda a consciência e, nessa qualidade, beneficia de evidência apodítica; o que é presumível é determinado mundo real concebido como conglomerado de objetos de um tipo dado.
Esta nova noção de mundo que a consciência, definida como intencionalidade, faz aparecer, diferencia-se daquela noção de mundo como ’omnitudo realitatis’ própria da atitude natural e das ciências positivas. Cumpre determinar agora, detalhadamente, esse conceito do mundo como necessidade de objetivar. Para isso retomaremos, ao jeito de fio condutor, as análises do fenômeno da percepção.