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Jean-Louis Chrétien (2014) – lembrança só é possível a partir do esquecimento

domingo 24 de novembro de 2024, por Cardoso de Castro

[…] Levinas   retoma a ideia platônica de um tempo perdido que nunca será encontrado enquanto tal, e que só ele nos envia e nos destina, só ele nos dá o ser por vir. Este imemorial do envio, onde o que nos envia nos precede, é uma perda que funda o dom. Este esquecimento antes do esquecimento é profundamente diferente do esquecimento de si mesmo tal como Heidegger o medita, embora este último tenha também um carácter inicial. Tanto em Ser e Tempo   como na sua conferência sobre os Problemas Fundamentais da Fenomenologia [GA24  ], Heidegger utiliza uma forma positiva de pensar o esquecimento. Ele não é nada, não pode ser reduzido a uma perda ou privação de memória [1]. “É uma modalidade específica, positivamente extática, da temporalidade” [2]. O primeiro é o esquecimento na medida em que constitui a condição de possibilidade da memória no sentido habitual: “A lembrança só é possível a partir do esquecimento, e não o contrário” [3]. E este primeiro esquecimento é o esquecimento de si próprio como “fuga perante o mais limpo ter-sido”. O ter-sido (Gewesenheit), como modo de ser, não se confunde com “o conceito vulgar de passado (Vergangenheit)” e não deve ser determinado por ele. Só o que existe pode ter sido. No entanto, “o esquecimento é uma modalidade elementar da temporalidade em que somos, desde logo e na maior parte das vezes, o nosso próprio ter-sido” [4].

Não apaga, mas foge e, portanto, relaciona-se com aquilo de que foge. Faz-nos fugir em direção àquilo que nos preocupa. A medida deste abandono de si é tudo aquilo que nos faz agarrar. E “é apenas com base neste esquecimento originário (ursprünglichen [Vergessenheit]) próprio do ser factual que se abre a possibilidade de reter algo para o qual o ser-aí se voltou precisamente no seu tempo”, bem como a possibilidade de não o reter, daí o esquecimento no sentido corrente, que aqui manifesta um sentido apenas derivado e secundário. O que se opõe ao esquecimento primário não é a memória enquanto capacidade de retenção, mas aquilo a que Heidegger chama repetição, Wiederholung [5]. Fundada no futuro, esta repetição não reproduz de modo algum um passado, não o imita nem se conforma com ele, ela renova a existência recordando as suas possibilidades. Não tem nada em comum com a recordação no sentido habitual; não traz de volta qualquer memória. E, sem dúvida, só a repetição assim entendida pode verdadeiramente esquecer, esquecer em verdade, de tal modo que esse esquecimento não é um esquecimento de si mesmo, nem uma entrega às coisas. Porque o esquecimento em que nos encontramos pela primeira vez, longe de nos iluminar e libertar, escraviza-nos e aprisiona-nos na renovação das mesmas possibilidades cegas. Não transcende nada. Esta perda na inautenticidade é o ponto de partida a partir do qual o ser terá de se recapturar de cada vez — aliás, só se recaptura e se compreende na verdade recapturando-se — mas não forma o seu envio, tal como não põe em jogo o imemorial, ou o outro passado. Se este esquecimento é primário, não o é no mesmo sentido que o anteriormente meditado. O fato é que existe aqui uma ligação entre o esquecimento e a preocupação.


Ver online : Jean-Louis Chrétien


CHRÉTIEN, Jean-Louis. L’inoubliable et l’inespéré. Nouvelle éd. augmentée ed. Paris: Desclée de Brouwer, 2014


[1Les citation qui suivent sont tirées de Sein und Zeit, § 68, Tübingen, 1972, p. 338–339 (trad. E. Martineau, Paris, 1985, p.238) et des Grundprobleme der Phänomenologie, Gesamtausgabe XXIV, p. 411–412 (trad. J.-F. Courtine, Paris, 1985, p. 348–349).

[2GA24:348

[3SZ:238

[4GA24:348

[5GA24:385-386