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Jonas (2006) – características da ética

terça-feira 19 de novembro de 2024, por Cardoso de Castro

Tomemos do passado aquelas características do agir humano significativas para uma comparação com o estado atual de coisas.

1. Todo o trato com o mundo extra-humano, isto é, todo o domínio da techne (habilidade) era — à exceção da medicina — eticamente neutro, considerando-se tanto o objeto quanto o sujeito de tal agir: do ponto de vista do objeto, porque a arte só afetava superficialmente a natureza das coisas, que se preservava como tal, de modo que não se colocava em absoluto a questão de um dano duradouro à integridade do objeto e à ordem natural em seu conjunto; do ponto de vista do sujeito, porque a techne, como atividade, compreendia-se a si mesma como um tributo determinado pela necessidade e não como um progresso que se autojustifica como fim precípuo da humanidade, em cuja perseguição engajam-se o máximo esforço é a participação humanos. A verdadeira vocação do homem encontrava-se alhures. Em suma, a atuação sobre objetos não humanos não formava um domínio eticamente significativo.

2. A significação ética dizia respeito ao relacionamento direto de homem com homem, inclusive o de cada homem consigo mesmo; toda ética tradicional é antropocêntrica.

3. Para efeito da ação nessa esfera, a entidade “homem” e sua condição fundamental era considerada como constante quanto à sua essência, não sendo ela própria objeto da techne (arte) reconfiguradora.

4. O bem e o mal, com o qual o agir tinha de se preocupar evidenciavam-se na ação, seja na própria práxis ou em seu alcance imediato, e não requeriam um planejamento de longo prazo. Essa proximidade de objetivos era válida tanto para o tempo quanto para o espaço. O alcance efetivo da ação era pequeno, o intervalo de tempo para previsão, definição de objetivo e imputabilidade era curto, e limitado o controle sobre as circunstâncias. O comportamento correto possuía seus critérios imediatos e sua consecução quase imediata. O longo trajeto das consequências ficava ao critério do acaso, do destino ou da providência. Por conseguinte, a ética tinha a ver com o aqui e agora, como as ocasiões se apresentavam aos homens, com as situações recorrentes e típicas da vida privada e pública. O homem bom era o que se defrontava virtuosa e sabiamente com essas ocasiões, que cultivava em si a capacidade para tal, e que no mais conformava-se com o desconhecido.

5. Todos os mandamentos e máximas da ética tradicional, fossem quais fossem suas diferenças de conteúdo, demonstram esse confinamento ao círculo imediato da ação. “Ama o teu próximo como a ti mesmo”; “Faze aos outros o que gostarias que eles fizessem a ti”; “Instrui teu filho no caminho da verdade”; “Almeja a excelência por meio do desenvolvimento e da realização das melhores possibilidades da tua existência como homem”; “Submete o teu bem pessoal ao bem comum”; “Nunca trate os teus semelhantes como simples meios, mas sempre como fins em si mesmos”; e assim por diante. Em todas essas máximas, aquele que age e o “outro” de seu agir são partícipes de um presente comum. Os que vivem agora e os que de alguma forma têm trânsito comigo são os que têm alguma reivindicação sobre minha conduta, na medida em que esta os afete pelo fazer ou pelo omitir. O universo moral consiste nos contemporâneos, e o seu horizonte futuro limita-se à extensão previsível do tempo de suas vidas. Com o horizonte espacial do lugar ocorre algo semelhante, no qual o que age e o outro se encontram como vizinhos, amigos ou inimigos, como superior hierárquico e subalterno, como o mais forte e o mais fraco, e em todos os outros papéis nos quais os homens têm a ver uns com os outros. Toda moralidade situava-se dentro dessa esfera da ação. Segue-se daí que o saber exigido ao lado da vontade moral, para afiançar a moralidade da ação, corresponde a esta delimitação: não é o conhecimento do dentista ou do especialista, mas o saber de um tipo que se encontra ao alcance de todos os homens de boa vontade. Kant   chegou a dizer que “em matéria de moral a razão humana pode facilmente atingir um alto grau de exatidão e perfeição mesmo entre as mentes mais simples”. [1] Que “não é necessária uma ciência ou filosofia para se saber o que deve ser feito, para se ser honesto e bom, e mesmo sábio e virtuoso. […] [A inteligência comum pode] ambicionar alcançar o bem tão bem quanto qualquer filósofo pretenda para si.” [2] “Para saber o que […] devo fazer para que minha vontade seja moral, para tanto não preciso de nenhuma perspicácia de longo alcance. Inexperiente na compreensão do percurso do mundo, incapaz die preparar-me para os incidentes sucessivos do mesmo, ainda assim posso saber como devo agir em conformidade com a lei moral.” [3]

Nenhum outro teórico da ética foi tão longe na diminuição do lado cognitivo do agir moral. Mas, mesmo quando este ganha um significado muito maior, como em Aristóteles  , para quem o conhecimento da situação e daquilo que lhe convinha estabelece exigências consideráveis à experiência e ao juízo, tal saber nada tem a ver com a ciência teórica. Ele evidentemente implicava um conceito universal do bem humano como tal, baseado em determinadas constantes da natureza e da situação humana, e esse conceito universal do bem poderia ou não ser desenvolvido numa teoria própria. Mas a sua transposição para a prática exige um conhecimento do aqui e agora, e este é inteiramente não-teórico. Esse conhecimento próprio da virtude (o de saber onde, quando, a quem e como se deve fazer o quê) prende-se às circunstâncias imediatas, em cujo contexto definido a ação segue o seu curso como ação do ator individual, nele encontrando igualmente o seu fim. Se uma ação é “boa” ou “má”, tal é inteiramente decidido no interior desse contexto de curto prazo. Sua autoria nunca é posta em questão, e sua qualidade moral é imediatamente inerente a ela. Ninguém é julgado responsável pelos efeitos involuntários posteriores de um ato bem-intencionado, bem-refletido e bem-executado. O braço curto do poder humano não exigiu qualquer braço comprido do saber, passível de predição; a pequenez de um foi tão pouco culpada quanto a do outro. Precisamente porque o bem humano, concebido em sua generalidade, é o mesmo para todas as épocas, sua realização ou violação ocorre a qualquer momento, e seu lugar completo é sempre o presente.


Ver online : Hans Jonas


JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tr. Marijane Lisboa & Luiz Barros Montez. Editora: PUC-Rio, 2006


[1Fundamentação da metafísica dos costumes, Prefácio.

[2Ibidem, Primeira parte.

[3Ibidem.