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Giuseppe Lumia: a filosofia da existência - Nietzsche

terça-feira 5 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

Se Kierkegaard   forneceu ao existencialismo o motivo divino, Nietzsche   forneceu-lhe o motivo demoníaco. Com Nietzsche  , a crise dos valores que atormenta o mundo moderno atinge plena consciência.

Contrariamente ao fácil otimismo do seu século, ele reconhece que a vida é dor, luta, incerteza, erro; mas repele a atitude de renúncia que conduz à ascese, e aceita a vida como ela é, com os seus caracteres irracionais e absurdos. Condena a moral cristã e, pela boca do profeta Zaratustra, proclama a radical inversão dos valores como consequência da nova atitude para com a vida. A tentativa de fundação da nova moral culmina em aguardar o super-homem, o qual incarnará a vontade de poder que vibra no universo.

Importa aqui sublinhar como é clara em Nietzsche   a consciência da crise dos valores tradicionais, fundados na fé em uma ordem objetiva e universal. Para Nietzsche   não existe a verdade, que seja adequação da mente a uma realidade objetiva, mas existe somente a minha verdade, aquilo que eu quero que seja verdade. Não existe um Bem que eu deva reconhecer e ao qual deva submeter-me, mas existe somente aquilo que eu quero que seja bem. O imperativo kantiano: tu deves, Nietzsche   substitui-o por um novo imperativo: eu quero. A fonte dos valores é assim transferida de uma realidade objetiva — o Deus cristão ou o sujeito transcendental — para o indivíduo, livre de determinar à sua vida a meta que prefere, e de usar para atingi-la os meios que julgue mais idôneos. Nietzsche   não esconde as trágicas consequências que desta concepção possam derivar, mas afirma que o homem superior deve ter a coragem de aceitá-las, deve aceitar a luta, e o risco de sucumbir na luta. Só assim ele poderá resgatar a sua liberdade, deixando ao rebanho dos escravos as virtudes da resignação e da renúncia. A atitude positiva perante a vida, que se exprime, ao nível do homem, no «amor fati», na alegre aceitação da realidade tal como é, e que transforma a necessidade em liberdade, na ordem cósmica traduz-se na fórmula do «eterno regresso», que é o sim que o mundo diz a si mesmo, a voluntária auto-aceitação do mundo, a sua vontade de reafirmar-se e, por isso, de voltar eternamento a si próprio.

Anunciando a morte de Deus e a abrogação das suas leis, Nietzsche   põe o homem, o homem singular, diante do seu destino, que é aquele que ele mesmo saberá forjar com as suas mãos, sem esperança alguma de ajuda do alto. Cada homem deve criar os seus próprios valores; a grande lâmpada da moralidade tradicional apagou-se; não resta mais a cada um de nós, para orientar-se na vida, que o próprio critério individual de julgar.

A condenação da sociedade, dos seus vínculos e das suas instituições, não é em Nietzsche   menos severa do que a pronunciada por Kierkegaard  . O super-homem de Nietzsche  , como o singular de Kierkegaard  , não se realiza senão sob condição de uma total renúncia às usuais relações garantidas pelas estruturas sociais, O super-homem deve desprezar o que os outros tem em apreço, crenças, preconceitos, hábitos, e erguer-se em solidão, paladino incorrupto das suas próprias possibilidades. Ele deve elevar-se da multidão dos escravos, para os quais vale a lei da resignação e do amor, e impor ao mundo a sua concepção da vida. O seu imperativo é: «torna-te tu mesmo», não já no sentido — explica Abbagnano   — da concentração em uma escolha ou em um fim único, mas no sentido da máxima diferenciação dos outros, de fechar-se na própria excepcionalidade, da procura de uma solidão inacessível. O super-homem não pode realizar a sua missão senão colocando-se fora de e contra a sociedade. Esta última é insensível à grandeza da sua tarefa excepcional, e tudo faz para impedir-lhe o triunfo. Regras morais, leis jurídicas, preconceitos religiosos, não são mais, para Nietzsche  , do que mesquinhos expedientes com os quais os débeis procuram acorrentar os mais fortes, opondo ao sacrossanto direito destes últimos os seus farisaicos ideais de justiça, de fraternidade, de igualdade.

Vale a pena notar que a recusa dos valores tradicionais por que se rege a convivência humana é comum a Kierkegaard   e a Nietzsche  . Abraão, que não hesita em levantar o punhal para o próprio filho inocente, o super-homem, que proclama o direito do mais forte, embora por vias diferentes colocam-se fora da moralidade corrente. Para um e para outro a conquista da autenticidade da existência comporta o abandono do plano humano, a negação do homem: em Kierkegaard  , o homem nega-se abandonando-se a Deus; em Nietzsche  , ultrapassando-se no super-homem. Para um, o homem anula-se na Transcendência, para outro anula-se transcendendo-se a si próprio.