Página inicial > Existencialismo > Barbuy: visão filosófica

Barbuy: visão filosófica

Toda a filosofia reflete uma visão fundamental, que é ao mesmo tempo religiosa, intelectiva, volitiva e emotiva. Estes elementos são inseparáveis, embora, didaticamente, se possa distinguir entre a intuição intelectiva e a volitiva, entre a intuição emotiva e a religiosa. A intuição intelectiva recebe as verdades racionais e os primeiros princípios da Inteligência; é por exemplo a intuição que nos diz que o que é, é, e o que não é, não é; que não se pode afirmar e negar o mesmo do mesmo, ao mesmo tempo e na mesma relação; é a intuição que recebe os axiomas geométricos, através dos quais se demonstram os teoremas, mas que não podem ser demonstrados eles próprios, por isso mesmo que são intuitivos; os primeiros princípios são indemonstráveis, porque se fossem demonstráveis não seriam os primeiros. Esta é a intuição intelectual ou a intuição metafísica, cujo objeto é a essência da realidade. Platão Platon
Plato
Platão
Platón
O pensamento de Heidegger é um diálogo a todo instante com aquele de Platão. Presente em todos os escritos de Heidegger desde Ser e Tempo, Platão é o pivô a partir do qual o pensamento de Heidegger se engaja prospectivamente a entrar em correspondência com outros Matinais. (LDMH)
e Aristóteles, Santo Tomás e Descartes Descartes H. consagrou dois cursos e quatro seminários a Descartes. A desconstrução da metafísica heideggeriana conduz um diálogo intenso com Descartes. se fundam nessa intuição intelectual, como ponto de partida de suas construções filosóficas. Mas, se examinamos os fundamentos de uma filosofia como a de Duns Scot, de Fichte Fichte
Johann Gottlieb Fichte
JOHANN GOTTLIEB FICHTE (1762-1814)
, ou de Nietzche, vemos que se voltam para a existência do objeto, que descobrem essa existência, como partindo de uma intuição volitiva, digamos, uma Vontade que se põe contra o objeto que a nega. A intuição emotiva sente o ser e o valor do objeto, procede por uma compenetração sympathica, como em Bergson Bergson H. leu e trabalhou Bergson com paixão no início dos anos 1920, como declarou em carta a sua esposa. (LDMH) e William James. A intuição religiosa é o fundamento das grandes filosofias místicas como a de Jacob Böhme, Meister Eckhart Eckhart
Eckehart
Eckhart von Hochheim OP (1260 – 1328), Meister Eckhart, Master Eckhart, Eckehart, Johannes Eckhart
e São João da Cruz. E é ainda o fundamento daquelas filosofias míticas que floresceram na época pré-socrática.

Mas estes diversos fundamentos da filosofia, estes diferentes sentidos da intuição filosófica, não devem levar a ignorar a unidade do ato intuitivo; se o filósofo se apoia na intuição intelectual ou na intuição emotiva, nem por isso estão as outras ausentes, como aspectos de um só e mesmo ato intuitivo. São diferentes modos de captar a essência e a existência, o valor e o sentido último dos seres. Como não é a vontade que quer, ou a inteligência que pensa, mas o homem todo que quer e pensa, (como dizia Santo Tomás), assim também no ato intuitivo é o homem todo que pensa, quer e sente.

Vimos pois que a filosofia não se confunde com nenhuma outra ciência e que tem um objeto próprio que é a essência e a existência dos seres. Esta observação preliminar é de capital importância em virtude do erro que consiste: 1.°) em querer explicar a substância dos seres, por algum de seus aspectos; 2.°) em julgar que a filosofia, desde os gregos, teria sido representada pela soma de todo o saber humano, incluído tudo quanto veio a constituir depois o objeto de cada uma das ciências particulares. — Os positivistas vulgarizaram essa noção e julgaram que, na proporção em formar várias ciências foram surgindo e crescendo, desmembraram-se da filosofia, cujo domínio se foi assim empobrecendo; e no dia em que não mais houvesse mistérios e regiões atualmente incognoscíveis, isto é, quando tudo fosse conhecido cientificamente, não mais haveria lugar para a filosofia; a filosofia seria então um campo de indagações, sobre o qual a ciência amplia constantemente o seu domínio; o progresso da ciência seria a morte da filosofia, porque a filosofia viveria do que a ciência ainda não explicou; a filosofia, que foi o fruto da ignorância, cederia lugar ao único saber verdadeiro, que é o saber científico: Tal a perspectiva do positivismo que decretou, do alto do saber científico, a morte da sabedoria filosófica. E este ponto de vista é ainda hoje divulgado por muitos manuais de filosofia, se assim se podem chamar.

Mas, o erro básico desta visão positivista da filosofia consiste numa confusão inicial entre saber e sabedoria, entre opinião e verdade, entre “progresso” e aprofundamento. É além disso um ponto de vista falso porque: 1.°) o ser não é o conjunto dos seus aspectos superficiais; o ser é uma totalidade radical, da qual os aspectos (examinados pela ciência) são apenas as manifestações. 2.°) O objeto da filosofia não é atingido por nenhuma ciência secundária, porque nenhuma ciência tem por objeto a essência ou a existência sequer do seu próprio objeto; as ciências secundárias partem do objeto como existindo e não lhes cabe, de direito, examinar a sua essência ou a sua existência. 3.°) Não é exato que o campo da filosofia diminui à medida em que progridem as ciências, porque, mesmo admitido esse progresso como um progresso do conhecimento, deve-se notar que, as ciências, para cada problema resolvido, levantam novos problemas, de sorte que o número de problemas aumenta e não diminui com o chamado progresso das ciências; haverá tanto mais problemas não resolvidos, quanto mais problemas a ciência houver “resolvido”; isto já fez alguns filósofos pensar que as ciências não resolvem nada, senão que giram no círculo vicioso dos problemas que desaparecem e reaparecem sob outras formas; o progresso das ciências não elimina, mas antes, cria problemas. O campo das indagações filosóficas, ainda que fosse o mesmo da problemática científica, longe de diminuir, cresceria com o progresso das ciências.

Que é, afinal de contas, um problema? A palavra grega problema é como sinônimo de objecto. Etimologicamente significa, e de fato é, algo jogado na frente, ob-jectum. O problema é, para mim, algo posto na minha frente, algo que intercepta o meu caminho e que devo “resolver”. Os problemas se multiplicam com a progresso das ciências e multiplicam-se assim os temas da meditação filosófica. O objeto porém da meditação filosófica, não são os problemas descobertos, levantados, ou quem sabe, projetados pelas ciências. A filosofia tem por objeto a realidade fundamental, ou a realidade trans-física e seu horizonte se confunde também com o mistério.

Problema não é mistério. O problema se põe já com a sua solução ou ainda, é a solução que põe o problema. Mas o mistério é insolúvel. — A distinção entre problema e mistério, implícita em quase todos os filósofos e místicos, tornou-se com Gabriel Marcel Gabriel Marcel GABRIEL MARCEL (1889-1973) tema explícito de cogitações filosóficas. É uma distinção importante para diferençar também a filosofia das demais ciências.

O problema é algo ante-posto, posto na frente, ao passo que o Mysterio é algo em que nós estamos postos. Há o mistério do objeto, por mais conhecido que seja. Há o mistério do estarmos aqui e de serem as cousas e serem assim. Há o mistério de toda a realidade, porque a mesma realidade, por mais que se desvele, mais se oculta, como sublinhou recentemente Heidegger a propósito da exegese do sentido da palavra grega aletheia, desocultamento [1]; segundo os filósofos realistas a realidade se manifesta no fenômeno, mas enquanto se manifesta se oculta, porque não se manifesta exaustivamente. Em suma, a realidade se revela, mas é um mistério. — As ciências particulares lidam com problemas, com ob-jecções ante-postas; as ciências resolvem os seus problemas, porque são elas mesmas que os põem; põem os problemas dentro de uma perspectiva em que as soluções vêm dadas por si mesmas. Deste modo pode-se dizer que toda indagação científica já é feita no sentido de uma resposta determinada. Inversamente, a meditação filosófica não põe o mistério, como as ciências põem os problemas. A perscrutação filosófica está cercada e constrangida de mistério por todos os lados. E a diferença essencial entre o problema e o mistério, é que o problema é o que está posto na minha frente, como algo exterior a mim; mas o mistério é algo em que eu estou posto e que está em mim. O problema está diante de mim; e eu estou no mistério. Estamos como na interioridade do mistério; e tudo o que entra na vida e no mundo, entra no mistério.

Se a filosofia não é apenas uma fria investigação racional da existência e da essência dos seres, mas se, ao contrário, suas meditações envolvem o mistério em que estamos, é justamente porque a filosofia traz em si a densidade de uma preocupação sobre o destino. A filosofia não é pois um conhecimento desinteressado, gratuito. É, ao contrário, um conhecimento interessado. Quando Aristóteles disse que a filosofia era um conhecimento pelo conhecimento, isto é, um conhecimento desinteressado, isto significava desinteressado de técnicas, desinteressado de aplicações. Mas interessado e profundamente, no mistério do mundo e no destino do homem. — O mistério é um processo em que estamos inseridos; não podemos dizer exatamente o que é, porque estamos nele. E se as respostas da filosofia aos mistérios da vida e do mundo são várias, divergentes e opostas, isto mostra claramente que a filosofia se move numa região que as outras ciências não atingem. Se a filosofia se movesse na região superficial dos objetos científicos, não haveria nenhuma necessidade de filosofar.


[1A este respeito, La Pensée de Heidegger et la Poesie de Hölderlin, de Jean Wahl.