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Apel (2000:26-31) – Verdade versus método?

domingo 16 de março de 2025, por Cardoso de Castro

(Apel2000)

Face ao questionamento histórico de um conceito cientificamente reduzido de racionalidade metódica, parecemos estar próximos de colocar em questão o paradigma do método científico em geral, e de, em vez dele, ter em vista — como caminho determinativo [26] para uma transformação da filosofia — uma forma fenomenológica de pensamento, que se aproveite das discrepâncias entre o conceito moderno de método e a experiência pré-científica de vida [Leben] e de mundo [Welt] (ou seja, a experiência que ainda não chega a ser metódico-abstrativa). Ao lado da fenomenologia do “mundo da vida” [Lebenswelt], que tem como ponto de partida a fase tardia de Husserl  , pode-se contar aqui sobretudo com a “fenomenologia hermenêutica”: ela tem em Heidegger seu ponto de partida e veio a ser desenvolvida por H.-G. Gadamer  , sob o título característico de Verdade e Método [1] [Wahrheit und Methode, 1960], como contraponto à filosofia orientada metodologicamente. Em primeiro lugar, a “fenomenologia hermenêutica” pode requerer para si a vantagem de estabelecer um liame entre duas emancipações: de um lado, a emancipação da experiência da metafísica dogmática e da filosofia das visões de mundo e, de outro, a emancipação das restrições cientificistas. Na filosofia tardia de Heidegger, a reconstrução e destruição crítica da metafísica ocidental parece mesmo estabelecer um contínuo com o distanciamento crítico da ciência e da técnica modernas, nas quais o ser humano “dispõe” [stellt] do mundo e, retroativamente, a partir desse próprio mundo, de si mesmo. Agora algumas coisas parecem ficar mais claras quanto ao método da disponibilização matemática e experimental do ente, tão progressivo na confrontação do ser humano com o mundo da natureza: é possível compreender melhor por que tal método, nessa circunstância, e ao ser reaplicado à esfera social, pode tornar-se um instrumento de dominação cuja modulação funcional é praticamente imperscrutável ou impassível de sofrer crítica. Nesse ponto, pode estabelecer-se a correlação entre o pensamento de Heidegger e a crítica neomarxista da “razão instrumental” e do “homem unidimensional” (Horkheimer, Adorno e sobretudo H. Marcuse  ).

Em lugar das coações categoriais de pensamento e comportamento que partem da “disponibilização” [Gestell] técnico-científica — ainda que não em lugar das coações sócio-econômicas que poderiam estar associadas a isso —, a fenomenologia hermenêutica de [27] proveniência heideggeriana proporciona, em primeiro lugar, o desvendamento da experiência cotidiana; a seguir, sobretudo, o da experiência poética, e o da experiência pré-metafísica — esta última, a ser reconstruída a partir dos fragmentos dos pré-socráticos —, em que o sentido do ser torna-se disponível, ainda sem considerar a “disponibilização”. Pode-se supor que nesse ponto, com os assim chamados “pensadores da linguagem” (Rosenzweig  , Buber e Rosenstock-Huessy) [2], seja também validada a experiência existencial do “eu-tu”, atestada, por exemplo, na tradição bíblica, pelo menos enquanto essa tradição não esteja subordinada à gramática greco-ontológica que valorize a experiência objetiva expressa no pronome “isso”. Na “hermenêutica filosófica” de Gadamer  , o pensamento fenomenológico ingressa em uma relação crítica mais estreita com a ideia do método, já que ela se tornara determinativa para as ciências humanas, em especial no historicismo semipositivista do século XIX. O desvendamento da experiência refere-se, agora, aos fenômenos das condições existenciais de possibilidade do “Compreender”, “esquecidos” nas metodologias histórico-hermenêuticas — isso sem falar de suas reduções neopositivistas: mencione-se como exemplo o fenômeno da circunscrição de todos os atos subjetivos ou de todas as operações do Compreender a um acontecimento da própria transmissão da tradição, no qual não pode haver qualquer conscientização definitiva, nem tampouco uma objetivação metódica da “pré-estrutura” [Vorstruktur] existencial (ou seja, do “pré-entendimento” constitutivo, e portanto dos inevitáveis “preconceitos” [Vorurteile]).

Um dos principais méritos da fenomenologia hermenêutica em geral parece-me residir no seguinte: mesmo em meio à “lógica científica” moderna — e a “metodologia” popperiana inclui-se aí —, ela opõe resistência ao processo de atrofia que sofrem a teoria e a crítica do conhecimento de origem kantiana. Além de tornar novamente visíveis os pressupostos transcendentais da lógica científica, sobre os quais já não se falava, revelando-os como pressupostos da relação sujeito-objeto cartesiano-kantiana, ela ainda descobriu, por meio da [28] radicalização do interesse em apropriar-se do “compreender”, estruturas semitranscendentais que simplesmente não podem ser concebidas de acordo com o esquema da relação sujeito-objeto cartesiano-kantiana. Entre elas, destaca-se a assim chamada “pré-estrutura existencial” do compreender descoberta por Heidegger: como estrutura do “ser-no-mundo” [In-der-Welt-Sein] (do “ser que ao encontrar o ente intramundano” é o ser que possibilita as intenções), ela implica ao mesmo tempo a superação do idealismo epistemológico; como estrutura do “ser-com” [Mitsein], possibilita ao mesmo tempo a superação do solipsismo metódico; como estrutura do pré-entendimento, marcada desde o início linguística e historicamente, possibilita ademais o questionamento da alternativa abstrata entre apriorismo e empirismo, por meio da figura de pensamento do “círculo hermenêutico”; e, como estrutura do “ser-que-se-antecipa” do ser-aí [Sich-vorweg-Seins des Daseins], no modo da “preocupação” [Sorge] voltada ao futuro, ela implica o questionamento da ideia do conhecimento livre de interesses de algo como algo, ainda presente em Hus-serl. [3] — Na descoberta da “pré-estrutura” do Compreender esteve sempre assinalada, desde o início, a possibilidade da elaboração de pressupostos semitranscendentais de uma teoria do conhecimento inédita. É o que ocorre, sobretudo, com a tematização da linguagem como um a priori ineludível do Compreender — que talvez não seja sequer passível de reconstrução [4]. Esteve assinalada ainda — no “ser-que-se-antecipa” — a tematização dos “êxtases” do “tempo original” (futuro, presente, passado) e dos respectivos modos do conhecimento: o “esboço do Compreender” (fantasia), ligado ao futuro (que transcende o presente); a apreensão sensível, ligada ao presente; e a lembrança, ligada ao tempo passado; ou ainda — no ser-no-mundo — o “a priori do corpo”, elaborado sobretudo por M. Merleau-Ponty   como condição do conhecimento (“ponto de vista da posse do mundo”) [5]; e, finalmente, a possibilidade perseguida sobretudo pelo [29] próprio Heidegger de uma fundação da verdade qua corretismo [Richtigkeit] dos juízos ou das asserções em meio à “descoberta” acobertante de sentido, ou em seu “desocultamento” ocultante, em razão da “síntese hermenêutica” (tal como foi chamada de início) de algo como algo, em sua “circunstância explicativa” ou “significância” [Bedeutsamkeit].

A relevância epistemológica da radicalização existencial-ontológica da ideia de hermenêutica introduzida por Heidegger, mostrou-se, a meu ver, sobretudo na superação da ideia do “Compreender” como um método concorrente ao “Elucidar” causal-analítico como resposta científica a perguntas do tipo “por quê?”. Enquanto a lógica científica neopositivista partia da ideia do “Compreender” como “método” (nem mesmo Dilthey   a representou dessa maneira), e enquanto lhe contrapunha a tese da função psicológico-heurística meramente auxiliar do compreender, no contexto de descoberta da “Elucidação” de comportamentos [6], a nova “hermenêutica” pôde demonstrar que o “Compreender”, como maneira do ser-no-mundo peculiar ao homem, já é pressuposta, na epistemologia, na constituição dos dados da experiência, assim como na resposta a perguntas do tipo “o quê?”. Com isso, por um lado, a problemática ligada ao Compreender, como problemática transcendental da constituição, veio juntar-se à problemática heideggeriana da “verdade” como descerramento de sentido, posicionando-se na retaguarda da problemática semitranscendental [quasi-transzendental] da constituição dos dados por meio de teorias científicas, reconhecida no “racionalismo crítico” de Popper. Por outro lado, revelou-se que a questão mais específica do assim chamado Compreender das ciências humanas só se coloca de forma adequada se não estiver subordinada, de antemão, à problemática da Elucidação científica; ela deve, sim, ser vista em conjunto com o “acordo mútuo” [Verständigung] metacientífico entre os cientistas [7], já pressuposto em todo anseio elucidativo, e que se dá acerca dos objetos a ser tematizados e da abordagem metodológica [30] de seu respectivo programa de pesquisa. Consideremos a função semitranscendental do esclarecimento de um pré-entendimento categorial [kategoriales Vorverständnis] da experiência, aqui implícita: ela se dá através de um “pré-acordo mútuo” [Vorverständigung] intersubjetivo quanto à linguagem científica, quanto aos modelos teóricos, quanto ao “processamento” de “teorias” ou mesmo de “programas de pesquisa” inteiros, segundo medidas estabelecidas pelo “círculo hermenêutico” de uma antecipação apriorística e de uma correção empiricamente condicionada do Compreender algo como algo; ora, essa função transporta a problemática hermenêutica — embora isso possa soar estranho aos ouvidos de muitos — para bem perto da problemática da reconstrução linguística e da explicação de conceitos tematizada na semântica construtiva de Carnap. Aqui — e não na dimensão da Elucidação causal (Explanation), aberta e limitada desde sempre pelo interesse cognitivo científico-tecnológico — poder-se-ia falar, em todo caso, de uma relação de concorrência entre a filosofia construtiva linguístico-analítica e a filosofia linguístico-hermenêutica. Essa relação, porém, pode se transformar muito facilmente em uma relação de complementaridade, conforme demonstra, de maneira muito especial, a abordagem da Escola de Erlang, no sentido de uma reconstrução imediata do acordo mútuo obtido por meio da linguagem na dimensão pragmática do uso dialógico da linguagem [8].


[1H.-G. Gadamer, Wahrheit und Methode, Tübingen 1960, 2a ed. 1965.

[2Cf. W. Rohrbach, Das Sprachdenken Eugen Rosenstock-Huessys, tese de doutoramento apresentada na cidade de Saarbrücken 1970.

[3Cf. minha tese de doutoramento (não publicada): Dasein und Erkennen: eine erkenntnistheoretische Interpretation der Phiolosophie M. Heideggers, Bonn 1950.

[4Cf. K.-O. Apel, Die Idee der Sprache in der Tradition des Humanismus, von Dante bis Vico, Bonn 1963, “Introdução”.

[5Cf A. Podlech, Der Leib als Weise des In-der-Welt-Seins, Bonn 1956.

[6V. vol. 2, pp. 59ss., pp. 119ss„ entre outras.

[7V. vol. 2, pp. 58ss., pp. 128ss., entre outras; v. também K.-O. Apel, “Communication and the Foundations of the Humanities”, in: Acta Sociologica, 1972, η. 1; versão ampliada in: Man and World, vol. 5, η. 1 (1972).

[8Cf. W. Kamlah e P. Lorenzen, Logische Propädeutik, loc. cit., e K. Lorenz, Elemente der Sprachkritik, Frankfurt 1971.