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Rorty (1999) – “uma palavra do Ser”
quinta-feira 13 de março de 2025, por
(Rorty1999)
Podemos identificar o que não encontra eco no presente com o tipo de metáfora que prima facie é uma falsidade sem sentido, mas que, no entanto, se torna o que Heidegger chamou «uma palavra do Ser», uma palavra na qual «o chamamento do Ser» é ouvido. Consideremos, à luz desta identificação, duas significativas frases nas quais Heidegger descreve «a tarefa da filosofia»:
[.,.] a tarefa máxima da filosofia é preservar a força das palavras mais elementares nas quais o Dasein se exprime, e impedir o senso comum de estabilizar-se nessa ininteligibilidade que no final funciona como uma fonte de pseudo-problemas [1].A autêntica função da filosofia é desafiar o ser-aí (Dasein) histórico e assim, em última análise, o Ser (Sein) puro e simples. [2]
Estas frases exprimem o que tenho vindo a designar como a resposta «poética» de Heidegger à questão da nossa relação com a tradição. Segundo o seu ponto de vista, o objectivo do pensamento filosófico é libertar-nos da linguagem que presentemente usamos, lembrando-nos que esta linguagem não é a do «raciocínio humano», mas antes a criação dos pensadores do nosso passado histórico. Estes pensadores são os poetas do Ser, os transcritores do «poema do Ser — o homem» [3]. Lembrar-nos destes pensadores e permitir que sintamos a força das suas metáforas anteriormente à sua estabilizadas em verdades literais, antes destes novos usos das palavras terem sido transformados em significados comuns de palavras, é o único objectivo que a filosofia pode ter no momento presente — não para facilitar, mas somente para tornar mais difícil, não para tecer de novo o nosso tecido de crenças e desejos, mas somente para nos lembrar da sua contingência histórica. Heidegger pensa que o nosso tempo não pode beneficiar da redistribuição de valores de verdade pelas frases que actualmente fazem parte do nosso repertório. Mas oferece pouca esperança numa nova era profética, uma era na qual novas palavras serão proferidas, palavras essas que aumentarão este repertório de formas inesperadas. O máximo que dirá é que estas esperanças não se concretizarão sem o trabalho preparatório de restituir a força das «palavras mais elementares» através das quais o Dasein se exprimia no passado. A nossa relação com a tradição deve ser um re- escutar do que não pode mais ser ouvido, em vez de um proferir do que ainda não foi proferido.
[1] …ist es am Ende das Geschäft der Philosophie, die Kraß der elementarsten Worte, in denen sich das Dasein ausspricht, davor zu bewahren, dass sie durch den gemeinen Verstand zur Unverständlichkeit nivelliert werden, die ihrerseits als Quelle für Scheinprobleme fungiert. Heidegger, Sein und Zeit (Tübingen: Niemeyer, 1979), 220. Tradução inglesa em Being and Time, trad. John Macquarrie e Edward Robinson (Nova Iorque: Harper and Row, 1962), 262.
[2] Da prosa-poema de Heidegger Aus der Erfahrung des Denkens. Traduzido em Heidegger, Poetry, Language, Thought, trad. Hofstader (Nova Iorque: Harper and Row, 1971), 4: «Estamos atrasados de mais para os deuses e demasiado adiantados para o Ser. O poema do Ser, apenas começado, é o homem.»
[3] Heidegger, Einführung in die Metaphysik, ρ. 9 (Introduction to Metaphysics, p. 11).