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Ortega y Gasset: Meditação da Técnica - PRIMEIRA ESCARAMUÇA COM O TEMA
quarta-feira 23 de março de 2022, por
Aquecimento, agricultura e fabricação de carros ou automóveis não são, pois, atos em que satisfazemos nossas necessidades, já que, ao contrário, implicam uma supressão daquele repertório primitivo de fazeres em que diretamente procuramos satisfazê-las. Em suma, a esta satisfação e não a outra coisa se encaminha este segundo repertório, mas — ei-lo! — supõe ele uma capacidade que é precisamente o que falta ao animal. Não é tanto inteligência o que lhe falta — sobre isto falaremos um pouco, se houver tempo — como o ser capaz de desprender-se transitoriamente dessas urgências vitais, desgrudar-se delas e ficar-disponível para ocupar-se em atividades que, por si, não são satisfação de necessidades. O animal, pelo contrário, está sempre e indefectivelmente preso a elas. Sua existência não é mais que o sistema dessas necessidades elementares que chamamos orgânicas ou biológicas e o sistema de atos que as satisfazem. O ser do animal coincide com esse duplo sistema ou, dito em outras palavras, o animal não é mais que isso. Vida, no sentido biológico ou orgânico da palavra, é isso. E eu pergunto: tem sentido, referindo-se a um tal ser, falar de necessidades? Porque, lembro aos senhores, que, referido este conceito de necessidade ao homem, consistia nas condições sine quibus non com que o homem se encontra para viver. Elas, pois, não são sua vida ou, dito ao contrário, sua vida não coincide, pelo menos totalmente, com o perfil de suas necessidades orgânicas. Se coincidisse, como acontece no animal, se seu ser consistisse estritamente e só em comer, beber, esquentar-se, etc., não as sentiria como necessidades, isto é, como imposições que, de fora, chegam a seu autêntico ser, com que este não tem outro remédio senão contar, mas que não o constituem . Carece, pois, de bom-senso supor que o animal tem necessidades no sentido subjetivo > que a este termo corresponde referido ao homem. O animal sente fome, mas como não tem outra coisa que fazer senão sentir fome e tratar de comer, não pode sentir tudo isto como uma necessidade, como alguma coisa com que é preciso contar, que não há outro remédio senão fazer e que lhe é imposto. Ao contrário, se o homem conseguisse não ter essas necessidades e, consequentemente, não ter que ocupar-se em satisfazê-las, ainda lhe restaria muito que fazer, muito âmbito de vida, precisamente as tarefas (quehaceres) e a vida que ele considera como o mais seu. Precisamente porque não sente o esquentar-se e o comer como o seu, como aquilo em que sua verdadeira vida consiste e de outro lado não tem outro remédio senão aceitá-lo, é pelo que se lhe apresenta com o caráter específico de necessidade, de inevitabilidade. E isso, inesperadamente, nos descobre a constituição estranhíssima do homem: enquanto todos os demais seres coincidem com suas condições objetivas — com a natureza ou circunstância — o homem não coincide com esta, já que é alguma coisa alheia e distinta de sua circunstância; mas não tendo outro remédio, se quer ser e estar nela, tem que aceitar as condições que esta lhe impõe. Daí que se lhe apresentem com um aspecto negativo, forçado e penoso.
Por outro lado, isto esclarece ura pouco que o homem possa desentender-se provisoriamente dessas necessidades, as suspenda ou contenha è, distanciado delas, possa transladar-se para outras ocupações que não são sua imediata satisfação.
O animal não pode retirar-se de seu repertório de atos naturais, da natureza, porque não é senão ela e não teria, ao distanciar-se dela onde meter-se. Mas o homem, pelo visto, não é sua circunstância, já que está somente submerso nela e pode em alguns momentos sair dela e pôr-se em si, recolher-se, ensimesmar-se, e só Consegue ocupar-se em coisas que não são direta e imediatamente atender aos imperativos ou necessidades de sua circunstância. Nestes momentos extra ou sobrenaturais de ensimesmamento e retração em si inventa e executa esse segundo repertório de atos: faz fogo, faz uma casa, cultiva o campo e monta o automóvel.