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Ortega y Gasset: Meditação da Técnica - PRIMEIRA ESCARAMUÇA COM O TEMA

quarta-feira 23 de março de 2022, por Cardoso de Castro

Outra necessidade do homem é alimentar-se, e alimentar-se é colher o fruto da árvore e comê-lo, ou então a raiz mastigável ou ainda o animal que cai sob sua mão. Outra necessidade é beber, etc.

Ora, a satisfação destas necessidades costuma impor outra necessidade: a de deslocar-se, caminhar, isto é, suprimir as distâncias, e como às vezes importa que esta supressão se faça em bem pouco tempo, necessita o homem suprimir tempo, encurtá-lo, ganhá-lo. O inverso acontece quando um inimigo — a fera ou outro homem — põe em perigo sua vida. Necessita fugir, isto é, lograr no menor tempo a maior distância. Seguindo por este modo chegaríamos, com um pouco de paciência, a definir um sistema de necessidades com o qual o homem se encontra. Esquentar-se, alimentar-se, caminhar, etc., são um repertório de atividades que o homem possui, evidentemente, com o qual se encontra da mesma forma como se encontra com as necessidades delas decorrentes.

Com ser tudo isto tão óbvio que — repito — encabula um pouco enunciá-lo, convém reparar na significação que aqui tem o termo necessidade. Que quer dizer que o esquentar-se, alimentar-se, caminhar são necessidades do homem? Sem dúvida que são elas condições naturalmente necessárias para viver. O homem reconhece esta necessidade material ou objetiva e porque a reconhece a sente subjetivamente como necessidade. Mas note-se que esta sua necessidade é puramente condicional. A pedra solta no ar cai necessariamente, com necessidade categórica ou incondicional. Mas o homem pode perfeitamente não alimentar-se, como agora o mahátma Gandhi. Não é, pois, o alimentar-se necessário por si, é necessário para viver. Terá, pois, tanto de necessidade quanto seja necessário viver se se há de viver. Este viver é, pois, a necessidade originária de que todas as demais são meras consequências. Ora, já indicamos que o homem vive porque quer. A necessidade de viver não lhe é imposta à força, como lhe é imposto à matéria não poder aniquilar-se. A vida — necessidade das necessidades — é necessária apenas num sentido subjetivo; simplesmente porque o homem decide autocràticamente viver. É a necessidade criada por um ato de vontade, ato cujo sentido e origem prosseguiremos olhando de viés e de que partimos como de um fato bruto. Seja lá por que razão, acontece que o homem costuma ter um grande empenho em sobreviver, em estar no mundo, apesar de ser o único ente conhecido que tem a faculdade — ontológica ou metafisicamente tão estranha, tão paradoxal, tão conturbada — de poder aniquilar-se e deixar de estar aí, no mundo.

E, pelo visto, esse empenho é tão grande que quando o homem não pode satisfazer as necessidades inerentes a sua vida, porque a natureza ao derredor não lhe propicia os meios inescusáveis, o homem não se resigna. Se, por falta de incêndio ou de caverna, não pode exercer a atividade ou fazer de esquentar-se, ou por falta de frutos, raízes, animais, a de alimentar-se, o homem põe em movimento uma segunda linha de atividades: faz fogo, faz um edifício, faz agricultura ou caçada. É o caso que aquele repertório de necessidades e o de atividades que as satisfazem diretamente, aproveitando os meios que estão já aí quando estão, são comuns ao homem e ao animal. A única coisa da qual não podemos estar certos é de se o animal tem o mesmo empenho que o homem em viver. Dir-se-á que é imprudente e até injusta esta dúvida. Por que o animal há de ter menos apego à vida que o homem? O que ocorre é que não tem os dotes intelectuais do homem para defender sua vida. Tudo isto é provavelmente bastante discreto, mas uma consideração um pouco cautelosa, que se atem aos fatos, encontra-se irrefragavelmente com que o animal, quando não pode exercer a atividade de seu repertório elemental para satisfazer uma necessidade — por exemplo, quando não há fogo nem caverna — não faz nada mais e se deixa morrer. O homem, ao contrário, dispara um novo tipo de fazer que consiste em produzir o que não estava aí na natureza, seja porque em absoluto não esteja, seja porque não está quando faz falta. Natureza não significa aqui senão o que rodeia ao homem, a circunstância. Assim faz fogo quando não há fogo, faz uma caverna, isto é, um edifício, quando não existe na paisagem, monta um cavalo ou fabrica um automóvel para suprimir espaço e tempo. Ora, note-se que fazer fogo é um fazer bem diverso de esquentar-se, que cultivar um campo é um fazer bem diverso de alimentar-se, e que fazer um automóvel não é correr. Agora começa a ver-se por que tivemos que insistir na truística definição de esquentar-se, alimentar-se e deslocar-se.