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Il senso del sofferenza
Scheler (1923/2023) – Dor e Sofrimento
Vom Sinn des Leides
Um núcleo central nas doutrinas e nas orientações que os seres humanos receberam das grandes figuras religiosas e dos filósofos sempre tratou de um ensinamento a respeito do sentido da presença, no mundo enquanto totalidade, da dor e do sofrimento. O objetivo, contudo, foi sempre o de oferecer uma indicação e um convite para encontrar realmente o sofrimento e senti-lo do modo correto — ou anulá-lo.
Nenhuma dessas opções, porém, teria sentido se a vida emotiva fosse exclusivamente e unicamente uma realidade cega e muda de estados que se sucedem em nós, vinculando-se segundo lógicas de causalidade. Não é assim. Nossa vida emotiva é, antes, mais significativamente, um sistema rico e diferenciado de manifestações e sinais naturais por meio dos quais podemos compreender-nos a nós mesmos. Pelo menos uma determinada classe de sentimentos torna possível que neles emerja algo semelhante a um “sentido” e a um “significado”. Tais vivências emotivas restituem-nos — chegando mesmo a antecipar e a desvelar, antes de seu próprio surgir efetivo — o quadro das diferenças axiológicas objetivas que podem competir a um ser, a um agir ou, de modo mais geral, a um acontecimento de que podemos ter experiência. Assim é que, em alguns casos, somos convidados a fazer algo, e em outros, a não o fazer (como se fôssemos advertidos e postos em alerta).
Na vivência do cansaço encontra-se algo que, traduzido na linguagem intelectual, soaria como: “para de trabalhar!” ou “vai dormir!”. As vertigens diante de um precipício significam: “volta para trás!”, impedindo-nos de cair, mostrando de antemão o espectro da possível queda — antes que comecemos de fato a despencar. O medo, que revela — antecipando-o — o perigo de um possível “dano vital”, facilita-nos, assim, a fuga. A esperança apaixonada faz pressentir um bem, incitando à ação antes mesmo de sua posse. O pudor preserva do olhar público o valor do corpo e da alma, reservando-o apenas aos olhos da pessoa digna dele, de modo que justamente a ela possa, então, ser doado. O apetite e o nojo mostram, no plano emotivo, a utilidade ou a nocividade de um alimento, no caso de sua possível ingestão pelo organismo. O arrependimento alivia-nos de nosso passado e torna-nos livres para a possibilidade de um novo bem, no sinal de uma dolorosa purificação e de um distanciamento. Todos esses são exemplos de que os sentimentos podem ter um sentido imanente à própria experiência, que se distingue nitidamente tanto de sua origem causal quanto de sua utilidade objetiva para a conservação da vida, como ocorre, por exemplo, entre os diferentes tipos de dor em que falta a possibilidade de experimentar um sentido.
Mas assim como toda vivência emotiva não é vazia de sentido e significado, do mesmo modo não é um estado puro e simples. Ao contrário, há também modos de comportamento ou funções emotivas que podem constituir-se de muitos e diversos modos em relação ao puro estado ao qual estão ligadas. A própria dor e a própria condição de sofrimento (não, porém, os estímulos que as determinam) podem ser sentidas, do ponto de vista funcional, em muitos graus e maneiras. Por mais que os limiares relativos ao estímulo e ao crescimento dos estados emotivos (por exemplo, nas dores corporais) sejam constantes, contudo, ao longo da história da civilização, os próprios limiares de sofrimento e a capacidade de suportação da dor são reconhecidos e definidos de modo muito diverso. O mesmo vale para a capacidade de alegrar-se diante dos estados de prazer, que é tanto maior quanto mais limitada e fugaz possa ser a sensação de gozo que a função emotiva do “autoaprazimento” põe em jogo.
Também a receptividade emotiva e funcional em relação a um mesmo estado emotivo pode modificar-se no eu: podemos “render-nos” a um sofrimento ou podemos combatê-lo; podemos “suportá-lo”, “tolerá-lo” ou simplesmente “sofrê-lo”, e até mesmo “deleitar-nos” com ele (como na algofilia).
Essas expressões significam sempre diferentes formas do sentir e, depois, da vontade que nelas se forma, que ainda não podem ser determinadas de modo unívoco com base apenas naquilo que se dá na vivência emotiva enquanto estado. Em um plano superior a essas “funções do sentir” estão, então, aquelas iniciativas e ações de nossa personalidade espiritual que podem conferir, na multiplicidade das condições existenciais, caráter completamente diverso ao lugar, ao sentido e à fecundidade de nossos estados emotivos.
Aqui se encontram as diferenças de concentração, como, por exemplo, a atenção ou a negligência dos sentimentos; as diferenças nas atividades volitivas, que “buscam” ou “fogem” da dor e do sofrimento, conseguindo de fato “superá-los” ou apenas “recalcá-los” (no subconsciente); as diferenças na avaliação (que os apreendem como formas de punição e expiação, ou como meio de purificação e aperfeiçoamento, e assim por diante); por fim, as diferenças em sua explicação religiosa e metafísica. Por meio destas, nossas vivências emotivas são reconduzidas, de seu sentido imediato vivido, à parte que ocupam no conjunto do mundo e de seu fundamento divino.
Toda doutrina filosófica do sofrimento contém, por isso, também uma simbologia de nossas dinâmicas do coração, isto é, uma indicação das forças que conduzem, de modo sensato ou insensato, no múltiplo jogo do sentir.
Portanto, se o estado puramente sensorial da dor e do sofrimento é o fato e o destino inevitável de todos os seres vivos, além dessa cega factualidade existe uma esfera de sentido e de liberdade, da qual têm início as grandes doutrinas da salvação.
Ver online : Max Scheler
SCHELER, Max. Il senso del sofferenza. Milano: edigita, 2023.