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Ortega y Gasset: Meditação da Técnica - PRIMEIRA ESCARAMUÇA COM O TEMA

quarta-feira 23 de março de 2022, por Cardoso de Castro

Meditação da Técnica
José Ortega y Gasset  
Tradução e Prólogo de Luís Washington Vita

PRIMEIRA ESCARAMUÇA COM O TEMA

Um dos temas que nos próximos anos será debatido com maior brio é o do sentido, vantagens, danos e limites da técnica. Sempre considerei que a missão do escritor é prever com ampla antecipação o que será problema, anos mais tarde, para seus leitores e proporcionar-lhes a tempo, isto é, antes de que o debate surja, ideias claras sobre a questão, de modo que entrem no fragor da contenda com o ânimo sereno de quem, em princípio, já a tem resolvida. On ne doit écrite que pour faire connaître la vérité — dizia Malebranche, voltando as costas à literatura. Há muito tempo, dando-se ou não conta disso, o homem ocidental não espera nada da literatura e volta a sentir fome e sede de ideias claras e distintas sobre as coisas importantes.

Assim sendo, agora me atrevo a remeter a La Nación as notas, nada literárias, de um curso universitário dado há dois anos, em que se procurava responder a esta pergunta: Que é a técnica?

Intentemos um primeiro ataque, ainda tosco e de longe, a essa interrogação.

Acontece que, quando chega o inverno, o homem sente frio. Este "sentir frio o homem" é um fenômeno em que aparecem unidas duas coisas bem distintas. Uma, o fato de que o homem encontra em torno de si essa realidade chamada frio. Outra, que essa realidade lhe agride, que se apresenta diante dele com um caráter negativo. Que quer dizer aqui negativo? Alguma coisa bem clara. Tomemos o caso extremo. O frio é tal que o homem se sente que morre, isto é, sente que o frio o mata, o aniquila, o nega. Pois bem, o homem não quer morrer, ao contrário, normalmente anela sobreviver. Estamos tão habituados a experimentar nos demais e em nós este desejo de viver, de afirmar-nos diante de toda circunstância negativa, que nos custa um pouco tomar consciência do estranho que é, e nos parece absurda ou talvez ingênua a pergunta: Por que o homem prefere viver a deixar de ser? E, contudo, trata-se de uma das perguntas mais justificadas e discretas que possamos fazer-nos. Nestes casos costuma-se falar em instinto de conservação. Mas acontece: 1.°, que a ideia de instinto é em si mesma bastante obscura e nada esclarecedora; 2.°, que ainda que fosse clara a ideia, é coisa notória que no homem os instintos estão quase apagados, pois o homem não vive, em definitivo, de seus instintos, já que se governa mediante outras faculdades como a reflexão e a vontade, que reatuam sobre os instintos. A prova disso é que alguns homens preferem morrer a viver, e, seja lá por que motivo, anulam em si esse suposto instinto de conservação.

É, portanto, falha a explicação pelo instinto. Com ele ou sem ele concluímos sempre que o homem sobrevive porque quer e isto é o que despertava em nós uma curiosidade talvez impertinente. Por que normalmente quer o homem viver? Por que não lhe é indiferente desaparecer? Que empenho tem em estar no mundo?

Vamos agora entrever a resposta. Basta-nos, ao menos por hoje, com partir do fato bruto: que o homem quer viver e, porque quer viver, quando o frio ameaça com destruí-lo, o homem sente a necessidade de evitar o frio e proporcionar-se calor. O relâmpago da tempestade invernal acende um ponto do bosque: o homem então se aproxima ao fogo benéfico que o acaso lhe proporcionou para esquentar-se. Esquentar-se é um ato pelo qual o homem atende a sua necessidade de evitar o frio, aproveitando sem mais o fogo que encontra pela frente. Digo isto com o sobressalto com que se diz sempre um truísmo. Contudo, nos convém — logo os senhores irão ver — esta humildade inicial que nos identifica com Calino. O importante é que não resulte que além de dizer truísmos os dizemos sem entendê-los. Isso seria o cúmulo, um cúmulo que com grande frequência praticamos. Anote-se, pois, que esquentar-se é a operação com a qual procuramos receber sobre nós um calor que já está aí, que encontramos — e que essa operação se reduz a exercer uma atividade com que o homem se encontra dotado evidentemente: a de poder caminhar e assim aproximar-se ao fogo que aquece. Outras vezes o calor não provém de um incêndio, porquanto o homem, transido de frio, se refugia numa caverna que encontra em sua paisagem.