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O Nada (Morillas)

segunda-feira 19 de maio de 2025, por Cardoso de Castro

Morillas2003

O tópos do nada em Heidegger se diferencia notavelmente de tudo o que foi pensado e escrito a respeito na filosofia ocidental. Já em SZ § 1, em conexão com a questão da diferença ontológica, dizia-se que o ser dos entes não é ele mesmo um ente. De fato, para Heidegger o ser não é nada ôntico e, nesse sentido, é "nada". Assim ele afirma com veemência em diferentes ocasiões: "O nada é a característica do ser" (Das Nichts ist die Kenntzeichnung von Sein); "Ser e nada: o Mesmo" (Sein und Nichts: das Selbe); ou: "O nada como o ’ser’" (Nichts als "Sein"). Invertendo a pergunta pelo ser, portanto, Heidegger empreende o questionamento sobre o sentido do nada marcando distâncias com o tratamento do mesmo por parte do niilismo, que ele tenta a seu modo superar: "O nada… pertence originariamente ao essenciar-se mesmo (do ser)" e "… se revela a si mesma como pertencente ao ser dos entes,… (pois) ser e nada se pertencem mutuamente".

O nada faz ressaltar o contraste entre o ser e o ente. O ser "não é o mesmo que um ente" (ist nicht so etwas wie Seiendes). É ente tudo aquilo que pode significar de algum modo, que pode ser designado em seu ser. Do ser enquanto tal, porém, só cabe dizer que é o nada do ente, o completamente outro do ente. O ente "é", mas o ser do ente "não é", mas sim "se dá": "O ser ’é’ tão pouco quanto o nada ’é’. Mas ’se dão’ ambos" (Das Sein "ist" so wenig als das Nichts "ist". Aber "Es gibt" beides). Por isso, é melhor eliminar o "é" no que se refere ao ser e ao nada, e escrever simplesmente: "Ser: nada". Até mesmo o termo "ser" (Sein) se torna problemático, e daí que Heidegger termine literalmente riscando-o ou substituindo-o por um arcaísmo (Seyn). Os termos "ser" e "nada" induzem tanto à confusão, pela forte carga essencialista que contêm, que é melhor substituí-los por outros. Heidegger prefere falar do "se apresentar" (Anwesen) e da "desocultação" (Unverborgenheit). Que o nada e o ser coincidam supõe, assim, que na desocultação a "ausência" (Ab-wesen) é inerente ao se apresentar. Desse modo, ser ou presença e nada ou ausência (o aberto, o claro) serão termos intercambiáveis nos escritos do segundo Heidegger. Do que se trata, em todo caso, é de "pensar ’esse’ nada que é originariamente o mesmo que o ser" e que constitui, em definitivo, o sentido último do ser.

Assim se entende que a reflexão sobre o nada sirva a Heidegger de ponto de apoio em seu esforço pensante para contribuir significativamente ao "superamento" (Überwindung) ou "transformação" (Verwindung) do niilismo da metafísica, isto é, do esquecimento do ser e da desconsideração do nada. Heidegger se separa claramente da interpretação niilista do nada como um nada radical, que para ele não é mais que um nada "vazio" (leere) ou "nulo" (nichtige). Há um nada essencial, um nada real e autêntico, que é "o nada do ser" (das Nichts von Seyn). O verdadeiro nada deve ser entendido, pois, em sentido afirmativo, ou seja, como pertencente à essência mesma do se apresentar do ser: "O nada pertence ao se apresentar. O ser e o nada não se dão um ao lado do outro. Cada um se usa a si mesmo para o outro em uma relação cuja riqueza essencial mal começamos a ponderar". O niilismo em que caiu o Ocidente consiste, então, no esquecimento do ser inerente à crescente primazia do cuidado do ente. É o niilismo da redução radical ao ôntico: "(Niilismo é) preocupar-se somente com os entes no esquecimento do ser". Em seu interior, o nada desaparece como aquilo que simplesmente não é e não merece ser interrogado.