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Morujão (1961) – Mundo como horizonte e mundo como substrato
terça-feira 18 de março de 2025, por
Alexandre Fradique Morujão, Significado e Estrutura da Redução Fenomenológica. Biblos LVI
Capítulo IV O PROBLEMA FENOMENOLÓGICO DO MUNDO
§ 21. Mundo como horizonte e mundo como substrato
A análise do modo de se dar da coisa material ou, correlativamente, a maneira como o sujeito capta a coisa material que se manifesta, foi levada a efeito, embora sumariamente, quando tratamos da distinção entre percepção de objetos imanentes e de objetos transcendentes. Esta última caracteriza-se por lhe ser essencial o sentido de ser a aparição de algo que, na sua integridade, possuiria uma existência independente de mim; a sua presença seria necessariamente imperfeita, dando-se em perspectivas ou esboços, que remeteriam indefinidamente uns para os outros de tal modo que a riqueza ôntica do objeto material supera sempre o que dele se manifesta. Além disso, nenhum desses objetos se dá isolado, mas inserido num conjunto que lhe serve de ’plano de fundo’ sobre o qual aparece em relevo. O fato de um objeto material não se percepcionar totalmente por uma simples visada do sujeito, mas segundo perspectivas que entre si se articulam, reclamando indefinidamente outras novas, sugere-nos que em toda a percepção há um momento de com-percepção; há algo que se encontra aí com o objeto, embora não tenha sido atendido; por outras palavras, o que sempre percepciono são objetos no mundo, e estar no mundo pertence essencialmente ao percepcionado. Para além deste, estende-se, sem ser tomado em consideração, o mundo como horizonte.
O vocábulo horizonte indica já que o mundo não pode ser compreendido como um sistema neutral de relações, mas que se estrutura em função de um ponto central onde se localiza o ente percepcionado, variando, por conseguinte, de acordo com o ente a considerar e com a posição do sujeito percepcionante: «o horizonte significa, em sentido literal, o limite do visível, que permanentemente se altera com a posição do espectador». O mundo, portanto, só como horizonte nos é dado indubitavelmente; no seio dele temos a considerar um núcleo de dados intuitivos atuais (experiência real). A consciência que experimenta as coisas reais, necessariamente as experimenta come algo ’extraído’ do mundo. Qualquer experiência de uma coisa e, por maioria de razão, a experiência doadora originária que é o percepcionar, dá-se num campo perceptivo. Cada objetividade está aí presente, em ’original’, embora de modo incompleto, podendo prolongar-se a experiência que dela temos, mediante um encadeamento de experiências indefinidamente abertas. Por exemplo, do livro que se encontra na minha frente, não tenho uma percepção única que mo apresente de maneira completa; vejo-o aberto em determinada página, não tenho presente nem as outras folhas nem a capa. O livro, no seu conjunto, ser-me-ia dado através de uma série de experiências concordantes. Posso bastar-me com o já percepcionado, embora, para além dos aspectos conhecidos, haja determinações, pormenores ainda ignorados, que uma experiência ulterior conduziria a uma percepção atual. Assim, a experiência de uma única coisa já implica uma margem de possibilidades, possui um sentido implícito e a explicitar que vai mais além do que é e pode ser dado na explicitação da consistência das coisas; implica um horizonte de determinações, um fundo sobre o qual é possível essa experiência. É isto o que Husserl denomina horizonte interno e que diz respeito à estrutura íntima do objeto concreto, na medida em que é o horizonte da consistência desse objeto. Horizonte significa neste caso a ’indução’ ou antecipação essencial a cada experiência e é inseparável de cada uma das coisas singulares. Esta ’indução’ originária apresenta-se como um modo de intencionalidade que, visando para além do núcleo que é dado, antecipa novas determinações objetivas. Por outro lado, essa antecipação transcende o objeto dado com todas as possibilidades antecipadas de futuras determinações, remetendo para outros que lhe estilo juntos ou simplesmente articulados através do plano de fundo da percepção. O exemplo anterior do livro que se encontra na minha frente, serve de esclarecimento; esse livro não está isolado; percepcioná-lo, implica aperceber-se de um horizonte de objetos concomitantes: o cinzeiro, a caneta, as folhas de papel, a mesa a que estou sentado, estantes, cadeiras, a própria sala em que me encontro trabalhando, etc, etc. Quer isto significar que a coisa percepcionada, em articulação com o horizonte interno, possui ainda um outro horizonte, um horizonte externo, infinitamente aberto, de com-objetos. Esses objetos não se encadeiam uns nos outros de maneira arbitrária, nem à semelhança de uma adição de objetos tomados um a um; ao ver uma coisa vejo também as suas relações, embora apenas sob o modo de implicação, como algo que se dispõe em penumbra, em torno do foco da percepção. Não há pois experiência de objetos isolados. Por outras palavras, a redução ao indivíduo como indivíduo revela-se impossível, uma vez que, nas relações de horizonte deste está sempre o mundo. Por outro lado, nunca é o mundo dado como totalidade de todos os entes espácio-temporais. A apreensão do mundo não é possível senão através de coisas singulares. Logo, originariamente, não é dado um objeto qua tale nem o mundo qua tale; com o objeto dado e no seu ser dado, aparece conjuntamente o mundo sob a forma de horizonte. Isto possui uma dupla significação: o horizonte está fundado sobre o objeto singular no sentido de a sua apercepção necessitar de um dado individual prévio; e, revelado o horizonte onde se situa, enraiza-se nele o objeto singular, lía uma relação reciproca do objeto com o mundo onde se Implica e do mundo com o objeto onde se explica (sich auslegend). O horizonte não é pois exterior ao objeto e, portanto, a distinção entre horizonte externo e horizonte interno deixa de ter sentido.
Se prolongarmos as análises sobre o horizonte, quer sob o aspecto de horizonte interno ou de horizonte externo, verificamos que se encontra entretecido com o chamado horizonte temporal. Mais rigorosamente, todo o horizonte possui uma dimensão temporal. A percepção que neste momento tenho do objeto que me está presente é um elo da cadeia das sucessivas percepções, cada uma das quais teve ou terá a presença do seu próprio objeto. Assim podemos distinguir, em relação à apreensão atual de uma coisa, duas dimensões temporais: por um lado, um passado imediato ou remoto e, por outro, o futuro imediato ou distante. E a apreensão atual está enformada pela lembrança do passado, tanto como pelo aguardar das coisas futuras; a percepção encontra-se sempre rodeada por um horizonte de retrospecção e de prospecção; o ’aqui’ e ’agora’ só é possível sobre um fundo de temporalidade. Servindo-nos do exemplo acima utilizado, diremos que o livro aberto sobre a minha mesa de trabalho aparece como coisa familiar; a sua percepção atual está soldada a uma longa série de atos objetivantes, ou melhor, à sedimentação desses atos. O ’aqui’ absoluto é inconcebível; a reflexão conduz necessariamente ao que é recordado como tendo sido anteriormente visto e assim é visado conjuntamente com o horizonte aberto da espectativa.
Outra estrutura a considerar diz respeito à necessária limitação de qualquer horizonte por outro mais vasto; em especial, temos a distinguir entre horizonte de coisas conhecidas e horizonte de coisas desconhecidas. Normalmente diz-se que algo é conhecido quando já anteriormente tomamos contato com ele e, perante qualquer coisa nova, o conhecimento desta é relativo àquilo que se obtém por transposição aperceptiva de algo anteriormente apresentado. Considerado o mundo como horizonte de todos os entes individuais, a diferença estrutural entre conhecido e desconhecido reduz-se à diferença relativa entre generalidade indeterminada e singularidade determinada; o mundo possui, na sua permanente validez, o carácter genérico subjetivo de intimidade (Vertrautheit) indeterminada como horizonte de entes, é horizonte do indeterminado, do não conhecido como determinável, em oposição às singularidades individuais já determinadas. Tudo o que se revela como ente, ou seja como coisa do mundo, participa dessa intimidade genérica no seio da qual se realizam todas as restantes diferenças entre conhecido e desconhecido.
Qualquer horizonte de dados prévios determinados e progressivamente a determinar está necessariamente rodeado por um outro horizonte do entes indeterminadamente abertos, de zonas (Spielräume) desconhecidas de entes que se movimentam no espaço e na espácio-temporalidade. E esse horizonte de dados determinados e a determinar consiste na possibilidade de progressão de um âmbito atual de experiência para outro, de determinada pré-figuração (Vorzeichung) para outra, mas de modo a que o despertar real e possível das zonas de horizonte se dê gradualmente; as mais próximas e as que lhe são contíguas possuem um grau de vivacidade, que vai progressivamente diminuindo, até atingir uma zona liminar de vivacidade nula. Esta estrutura mantém-se ao longo da experiência, mas no seu interior vai havendo alteração: à medida que a experiência progride, isto é, que se preenchem intuitivamente as intenções das zonas mais próximas do horizonte exterior, ou seja, alcançam o núcleo perceptivo novos elementos reais, vai-se dando, simultaneamente, no restante horizonte uma alteração de pré-figurações; a própria vivacidade também se altera, a saber: o mais distante torna-se mais próximo, o mediatamente próximo transforma-se em imediato de percepção, embora neste movimento se mantenha constantemente uma zona liminar nula, que se engendra à medida que a zona liminar anterior se transforma em penúltima. Dentro da estrutura em horizonte revela-se fundamental a oposição dinâmica entre o longínquo e o próximo, em que o longínquo apresenta como fronteira superior o limite zero. Para além desse limite zero, anuncia-se um horizonte vazio — vazio no sentido de indeterminação determinável, isto é, susceptível de ser trazida aos limites do conhecimento — que pode ser chamado gradualmente para dentro dos limites intuitivos.
Todo o objeto possui, como vimos, os respectivos horizontes interno e externo próprios. Se prolongarmos as análises, tomando como fio condutor esses horizontes, observamos que os horizontes das diferentes objetividades se encontram implícitos uns nos outros, em implicações cada vez mais complexas que, no limite último, exprimem um horizonte total. É a este horizonte total, de certo modo horizonte de horizontes que Husserl denomina mundo. Sempre que incidirmos a nossa atividade sobre um objeto, seja em atitude prática, seja em teórica, fazemo-lo no âmbito de um horizonte e, por conseguinte, está sempre implícito o mundo como horizonte total, realiza-se sempre uma comparação com a totalidade do mundo. Este carácter de horizonte vale fundamentalmente para todas as formas de mundo e níveis correlativos; por isso se pode afirmar que o sujeito se encontra sempre numa certa situação, envolvido por um horizonte que já se encontra aí e atua permanentemente como base de validez de tudo o que conhece. O horizonte associado a essa situação é um horizonte de interesse: interesse vital como horizonte no qual se mantém a atividade de momento. Por outro lado, a partir desse horizonte, despertam-se todos os outros, na medida em que o mundo continuamente está aí, implícito no objeto a considerar ou no ato de o considerar.
Esta interpretação do mundo como horizonte de cada um dos atos e, consequentemente, dos correlatos objetivos correspondentes, foi obra da análise do fenômeno da percepção executada por Husserl nos quadros do desenvolvimento da doutrina da redução fenomenológica. Associada à ideia de horizonte aparece-nos a noção de mundo como fundamento universal de crença (universaler Glaubensboden) de toda a experiência (perceptiva) de objetos particulares. Ao referirmo-nos ao horizonte interno, caracterizamo-lo como horizonte de indeterminações, susceptível de ser determinado tanto mais rigorosamente, quanto mais se avançar no curso da experiência. O objeto situa-se no horizonte e este é fundamento do objeto, na medida em que esse objeto singular enraíza nele e a partir dele vai haurir novas determinações; o horizonte passa a substrato e o mundo, que podemos designar por horizonte interno absoluto, revela-se o terreno puro e simples do ser (der schlechthinige Seinsboden), suporte de todo o ente em geral, bem como de nós próprios. Este terreno ou substrato absoluto do ser é, em sentido privilegiado, o Allnatur, o universo dos corpos em relação ao qual cada um deles pode ser considerado como algo dependente (unselbständig), no sentido em que nenhum pode estar ’isolado’, uma vez que faz parte de um enquadramento universal, unidade concreta que se denomina mundo. Toda a consciência não consiste apenas em ser ’consciência de…’, mas, pelo menos implicitamente, é consciência de mundo (Weltbewusstsein), mundo esse que, no sentido fenomenologicamente mais primitivo, é o mundo das coisas sobre o qual todos os outros mundos se apoiam.