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Historiadores da "morte" não questionam o que é a morte (Derrida)

quarta-feira 23 de abril de 2025, por Cardoso de Castro

Derrida1996

Vamos começar com este fato enorme, bem conhecido e imensamente arquivado: existem culturas de morte. Atravessar uma fronteira muda a morte. Muda-se a morte, não se fala mais a mesma morte onde não se fala mais o mesmo idioma. A relação com a morte não é a mesma do outro lado dos Pirineus e do outro lado; e muitas vezes, além disso, quando cruzamos a fronteira de uma cultura dessa forma, passamos de uma imagem da morte como morte — cruzando uma linha, transgredindo uma fronteira, não indo além da vida — para outra imagem da fronteira entre a vida e a morte. Cada cultura é caracterizada por sua própria maneira de entender e lidar com a morte, pode-se dizer de “vivê-la”. Cada cultura tem seus próprios ritos funerários, suas próprias representações dos moribundos, suas próprias práticas de luto e sepultamento, sua própria avaliação do valor da existência, da vida coletiva ou individual. E dentro do que achamos que podemos identificar como uma única cultura, às vezes uma única nação, um único idioma, uma única religião (mas eu disse anteriormente por que o próprio princípio de tal identificação parece principalmente ameaçado ou exposto antecipadamente à ruína, em outras palavras, à morte), essa cultura da morte pode ser transformada.

Podemos falar, e já o fizemos, como se sabe, pelo menos no Ocidente, de uma história da morte. Até onde sei, isso só foi tentado no Ocidente (embora um ocidental, Maurice Pinguet, tenha dedicado um estudo genealógico à morte voluntária no Japão [1]. Isso não significa que não exista uma história da morte ou que ela não tenha sido escrita em outro lugar — a menos que a ideia de uma história e de uma história da morte seja ela mesma ocidental, em um sentido que talvez fique mais claro um pouco mais tarde. Da imensa biblioteca de obras dedicadas a essa história da morte, mencionarei apenas um ou dois títulos. O primeiro é Les Essais sur l’histoire de la mort en Occident du Moyen Age à nos jours [2] e L’homme devant la mort [3], de Philippe Ariès, que datam de 1975 e 1977, respectivamente, e que, assim como Western Attitudes towards Death [4], do mesmo autor, marcam claramente os limites dentro dos quais essa história opera. Para um autor que se autodenomina um “historiador da morte” [5], essa é uma sequência muito breve, confinada ao Ocidente cristão. Sem deixar de respeitar a riqueza, a necessidade e, às vezes, a beleza de tais obras, que também são obras-primas em seu próprio direito, devemos nos lembrar dos limites estritos dessas antropologias históricas. Essa palavra designa não apenas os limites externos, aqueles metodicamente atribuídos por um historiador (a morte no Ocidente desde a Idade Média até os dias atuais, por exemplo), mas também os limites não temáticos, limites cujo conceito nunca é formado nessas obras. Em primeiro lugar, há o limite semântico ou ontofenomenológico: o historiador sabe, ele pensa que sabe, ele se dá o conhecimento inquestionável do que é a morte, do que significa estar morto e, consequentemente, toda a criteriologia que tornará possível identificar, reconhecer, selecionar ou delimitar, por assim dizer, os objetos de sua investigação ou o campo temático de seu conhecimento antropológico-histórico. A questão do significado da morte e da palavra “morte”, a questão do “que é a morte em geral”, “qual é a experiência da morte”, a questão de se a morte “é” — e o que a morte “é” — permanecem radicalmente ausentes como questões. Elas são pressupostas para serem resolvidas por esse conhecimento antropológico-histórico como tal, no momento em que ele se institui e define seus limites. Essa pressuposição assume a forma de um “nem é preciso dizer”: todos sabem do que estamos falando quando mencionamos a morte.


[1Maurice Pinguet, La mort volontaire au Japon, Paris, Gallimard, 1984

[2Philippe Ariès, Essais sur l’histoire de la mort en Occident du Moyen Age à nos jours, Le Seuil (Collection Points), 1975

[3O homem diante da morte, t. 1. 1. le temps des gisants, t. 2. la mort ensauvagée, Paris, Le Seuil (Collection Points), 1977

[4Philippe Ariès, Western Attitudes towards Death, Johns Hopkins University Press, Baltimore, 1974

[5Philippe Ariès, L’homme devant la mort, t. 1, p. 9