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Fragata (1962) – Metafísica husserliana e metafísica tomista

terça-feira 18 de março de 2025, por Cardoso de Castro

Júlio Fragata   S. I.
Professor da Faculdade de Filosofia de Braga

Problemas da Fenomenologia de Husserl  
Edições Livraria Cruz
Braga 1962

1. — Um impulso de fundamentação radical foi sempre concebido por Husserl   como empreendimento filosófico. E a Filosofia, no sentido estritamente husserliano, caracteriza-se por ser a «ciência dos princípios», por excelência. Husserl   chegou mesmo a lamentar que a palavra "arqueologia", - que etimologicamente significa não só "ciência do que é antigo", mas sobretudo «ciência inicial» — estivesse já ocupada. Esta «ciência inicial», ou «Filosofia primeira», veio Husserl   a identificá-la também, embora não logo desde o início, com a Metafísica. É pois do conceito husserliano de Metafísica que vamos agora ocupar-nos, estabelecendo, simultaneamente, um confronto com a concepção tomista.

Em quase todas as suas obras se refere Husserl   à Metafísica como «ciência da realidade», ou «ciência do ser». Nas Investigações Lógicas, concebia, porém, esta realidade dum modo acanhado, ou seja, no âmbito exclusivo da existência concreta do mundo real em oposição ao mundo do pensamento lógico, em que a razão, independentemente desta realidade concreta, elabora as suas conclusões. Compreendemos que olhasse então com certo desprezo para uma metafísica assim restringida, negando-lhe o poder fundamentador universal. Uma tal ciência não poderia, por exemplo, fundamentar a Matemática, pois esta, como ciência teórica, não depende da existência real do mundo.

E patente nesta concepção certo racionalismo ou logicismo exagerado: uma separação demasiado radical, entre idealidade e realidade.

S. Tomás distingue também claramente a Lógica da Metafísica: « o lógico considera a coisa enquanto está na mente…. O metafísico trata das coisas enquanto são seres» . Mas a separação entre as duas ciências não é radical: a coisa, na sua existência mental, é também ser e, como tal, entra no âmbito da Metafísica que assim adquire um caráter plenamente absoluto e dominador.

2. — Posteriormente às Investigações Lógicas, o conceito husserliano de realidade sofreu uma modificação notável. A existência ou não existência do mundo em si mesmo, como exterior ou «transcendente» ao sujeito, não tem interesse filosófico A realidade assim considerada temos que pô-la «entre parênteses», praticando, relativamente a ela, uma suspensão do juízo ou «epoché». A única realidade que interessa ao filósofo é aquela que, através desta depuração, se mantém, apesar de tudo, consciente, — a realidade fenomenal que se apresenta dum modo imediato e com plena evidência, encerrando em si a «medula», o «sentido do mundo». Qualquer impulso, relativo á evidenciação desta realidade, é para Husserl  , metafísico. Nas Meditações Cartesianas, escritas cerca de trinta anos depois das Investigações Lógicas, quando o seu pensamento tinha já atingido pleno desenvolvimento na elaboração da Fenomenologia, insere esta advertência expressiva»: A Fenomenologia exclui apenas uma Metafísica ingênua que se refere às absurdas coisas em si, mas não a Metafísica em geral» .

Esta ciência do ser, assim concebido, é, para Husserl  , a Filosofia no sentido estrito: « só se chamam filosóficas as questões referentes a todos os seres em geral» uma singular coincidência entre Husserl   e S. Tomás, para quem a Metafísica é a « ciência do ser universal enquanto ser » .

3. — A coincidência vai, porém, mais longe. Já em 1909, num curso ainda inédito, se refere Husserl   ao papel fundamentador da Metafísica por estas palavras: «Era necessária uma ciência definitiva do ser, ou uma Metafísica, ao lado e, ao mesmo tempo, acima das ciências experimentais». Neste texto, salienta-se claramente que a Metafísica, ou ciência do ser na sua universalidade máxima, tem que acompanhar o desenvolvimento de todas as outras ciências, e portanto pairar, de algum modo, acima delas.

Na última obra, A crise das ciências européias e a fenomenologia transcendental, o caracter fundamentador da Metafísica é ainda mais insistentemente inculcado. O empenho de Husserl  , nesta obra, é uma reflexão sobre a crise das Ciências, — crise que só poderá ser superada por uma racionalização plena ou fundamentação radical. E, a este propósito, escreve: «Levar a razão latente à compreensão das suas possibilidades e, consequentemente, evidenciar a verdadeira possibilidade duma Metafísica, — eis o único meio de introduzir a Metafísica e a Filosofia universal no laborioso caminho da realização».

Husserl   veio portanto a identificar o seu impulso radical de fundamentação, que o levou a elaborar a Fenomenologia, com o próprio impulso metafísico. Neste sentido, dá-se, pelo menos na última fase da sua vida, uma equivalência entre Fenomenologia transcendental e Metafísica, «a ciência dos mais altos e últimos problemas» . Esta ciência, assim dominadora, tem que implicar uma racionalização plena que coincide também com a « Lógica transcendental» e é caracterizada como uma Selbstbesinnung, ou auto-reflexão radical, É claro que esta racionalização máxima tem que ser simultaneamente auto-justificativa.

As mesmas idéias são claramente vincadas por S. Tomás, sobretudo no proêmio ao Comentário à Metafísica de Aristóteles. Parte da necessidade duma ciência que seja reguladora de todas as outras. Esta deve ser universal para que o seu objeto esteja implicado no objeto de qualquer outra. Tal ciência, assim avassaladora, tem que atingir o supremo grau de intelectualidade: «a ciência naturalmente reguladora de todas as outras deve ser aquela que for intelectual no supremo grau» , Para ela devem pois convergir as demais ciências e só ela será absolutamente por si mesma, o que equivale a dizer que a Metafísica, na concepção de S. Tomás, é também auto-fundamentadora.

Até aqui os principais pontos de contado. Examinemos brevemente as divergências.

4. — A primeira, e fundamental divergência podemos considerá-la da parte do objeto. O ser implicado na Metafísica é, para Husserl  , o ser-idealidade. A realidade no sentido natural da palavra, como existente em si, independentemente do seu ser-conhecido, está « entre parênteses»: apenas se considera o sentido dela que é de evidência imediata e apodíctica; o seu caracter de em-si, ou de independência relativamente ao sujeito cognoscente, está excluído do âmbito da Filosofia. Não se segue que a realidade, assim concebida, ou seja, que esta idealidade, se identifique com a essência da coisa. Esta confusão levou alguns intérpretes a classificar Husserl   como um filósofo da essência ou como uni essencialista. Tal interpretação é insustentável á luz do impulso fundamental de Husserl  , como já tivemos ocasião de salientar (p. 105). O que o preocupa é a posse da coisa e não apenas da essência da coisa. Porém esta «coisa», depurada pela « epoché», ou suspensão relativamente ao seu caracter em si, reveste uma modalidade existencial meramente ideal. Se alguém quisesse chamar « essência» á coisa assim considerada, usaria a palavra num sentido diferente daquele que normalmente tem, pois esta essência nem seria a coisa naquilo que é comum com outras, nem a coisa, considerada na sua mera possibilidade. A epoché husserliana tem uma função mais radical que afeta não só a singularidade mas também a mesma essência, no sentido de natureza comum, e o próprio caracter de possibilidade. O que ela quer proporcionar-nos é o sentido da realidade, qualquer que seja a sua modalidade, prescindindo da sua existência em si, ou exterior, que não se nega, mas também não se considera.

Para S. Tomás, o objeto determinante da Metafísica é o ser-realidade, concedendo-se a esta realidade um sentido natural ou espontâneo, que implica primordialmente o caracter de realidade existente em si. Também não se nega a idealidade, pois é através do objeto meramente concebido que somos levados ao objeto em si. Porém esta idealidade está duplamente implicada na realidade como existente em si: primeiro, porque toda ela é uma função do objeto exterior que designa. Nem possuiria razão do seu mesmo ser, se não fosse, de algum modo, determinada por ele. Por isso, enquanto a intencionalidade, ou impulso designativo do objeto, se resolve, em Husserl  , num processo de relações exclusivamente interior, em S. Tomás, transborda necessariamente para o exterior, projectando sobre a coisa em si a luminosidade reveladora que a torna consciente. Em segundo lugar, esta idealidade está implicada na realidade em si, porque ela mesma é uma modalidade concreta de ser em si, embora, como tal, apenas exista no sujeito pensante e por meio dele.

Para S. Tomás, o ser objeto da Metafísica é portanto a realidade em si, para a qual tende o espírito cognoscente através da significação imanente que também possui certo caracter de em si ou transcendente. Para Husserl  , visto todo o caracter de em si ou "transcendente", estar fora de consideração, o ser objeto da Metafísica é um ponto ideal, para o qual tende o espírito cognoscente através também duma significação imanente que, apesar de tudo, apenas é considerada como meramente significativa e não como possuindo o caracter natural de realidade em si. Em S. Tomás, esse ponto ideal coincide, ou está apoiado na realidade em si. Husserl   não nega esta coincidência, mas também não a considera. Podemos, pois, dizer que se atem, como filósofo, apenas ao aspecto ideal que o ser necessariamente reveste, mesmo na concepção tomista.

5. — Uma segunda divergência, implicada na anterior e consequência dela, manifesta-se da parte do sujeito. Como a realidade, ou o ser, se encara segundo concepção diferente, também a atitude perante o ser reveste modalidades caracteristicamente diversas.

Em Husserl  , temos a «atitude transcendental». Nela libertamo-nos da atitude natural que tende a considerar a realidade dum modo espontâneo, como existente em si, e subimos a um estado de reflexão em que ficamos aptos a considerar a realidade «entre parênteses», e portanto como meramente significada na "consciência transcendentalmente pura". Fica assim determinada a função do espirito perante o modo de conceber a universalidade característica do ser husserliano que é uma universalidade meramente ideal, ou considerada apenas enquanto consciente, enquanto pensada.

S. Tomás não precisa de renunciar à atitude natural, pois encara a realidade dum modo espontâneo. Mas tem que se manter também num impulso subjetivo correspondente ao grau de universalidade máxima que atinge na Metafísica. Tal atitude equivale ao terceiro grau de abstração, que S. Tomás repetidas vezes designou por «abstração da matéria, mesmo enquanto inteligível». Numa Filosofia em que a determinação cognoscitiva é fundamentalmente explicada pelo influxo da sensibilidade, e portanto da matéria, compreende-se que a ascensão reflexa seja também classificada pelo poder abstrativo da mente em relação à mesma matéria. Assim, a Física abstrai da matéria individual e considera apenas a matéria sensível comum, porque não pretende estabelecer princípios relativos só a um corpo concreto e individual, mas a uma categoria de corpos que conservam alguma coisa de comum. A Matemática abstrai mesmo da matéria comum enquanto sensível para considerar a matéria na sua mesma inteligibilidade, meramente quantitativa. A Metafísica ultrapassa o âmbito do ser material, da matéria mesmo enquanto inteligível, para entrar nos domínios do ser como tal, em que tudo se encontra, até o ser quantitativo, mas só na sua razão intrínseca de ser.

Para Husserl  , só entra no âmbito rigorosamente filosófico aquele que consegue atender ao ser na sua universalidade meramente significada. Para S. Tomás não se requer tanto e requer se, em certo sentido, ainda mais. Subjetivamente, podemos dizer que não se requer tanto, porque não é preciso subir da consideração natural do ser em si ao ser como puramente ideal. Mas objetivamente, requer-se ainda mais, porque não basta incluir na universalidade do ser a mera idealidade que, sem dúvida, também é ser; é necessário englobar nela a consideração do ser como existente em si, ao qual se reduz o próprio ser-idealidade. Husserl   tentou, por assim dizer, urna nova superação do terceiro grau de abstração, subindo da consideração do ser como realidade em si ao ser como idealidade. Mas nesta superação deixou de considerar o caráter de em si. S. Tomás nunca pensou nesta superação. Pensou sim na idealidade, mas esta é toda em função da realidade em si e possui mesmo certo caracter de em si.

6. — Um impulso comum transparece através destas divergências, — o impulso de racionalização radical. Esta racionalização culmina em Husserl   na Selbstbesinnung, ou plena auto-reflexão, de que o sujeito só é capaz na «atitude transcendental». A racionalização husserliana atinge, portanto, na Selbstbesinnung, uma modalidade ideal. Em S. Tomás concretiza-se na « máxima intelectualidade » que só é possível no âmbito do terceiro grau de abstração. Nesta altura, a racionalização não perde o caracter tipicamente real. Através dum impulso comum, em Husserl   pretende-se concentrar a realidade em si na idealidade; em S. Tomás, a mesma idealidade é metafisicamente uma realidade em si.

Serão apenas duas perspectivas diferentes do mesmo objeto que é o ser na sua universalidade máxima? Husserl   não o julgou, e por um dúplice motivo: primeiro porque lhe pareceu que na Metafísica tradicional não se tinha ultrapassado a consideração do ser como realidade exterior em si, ou «transcendente», e se tinha descurado o ser como conhecido. Falando em linguagem husserliana, podemos dizer que, para o mesmo Husserl  , o caracter deficiente da Metafísica clássica, que fez dela uma Metafísica ingênua, foi o facto de ter « posto entre parênteses» a idealidade, precisamente aquilo que, a seus olhos, é a medula de tudo e conserva um caracter de evidência plena. Em segundo lugar, julgou que a ciência absolutamente fundamentadora, como pretende ser a Metafísica, não tinha ainda alcançado o supremo grau de reflexão, só atingível no contacto imediato com o ser, enquanto consciente.

Sob certo aspecto, Husserl   elevou-se, de facto, aonde ninguém, antes dele, pensara subir. Mas isto não significa necessariamente um maior poder reflexivo. Pode alguém elevar-se tanto que perca de vista aquilo que também interessa. Não terá sido este o caso de Husserl  ? Na sua elevação racional até à atitude transcendental «pôs entre parênteses», deixou de considerar, o próprio caracter em si da realidade. Não equivalerá isto a cair num exagero oposto àquele que exprobrou na Metafísica tradicional? Se assim é, estamos perante um radicalismo exagerado e, por isso mesmo, deficiente.

Refugiando-se na «consciência transcendental:», Husserl   pretendeu prescindir do problema idealismo-realismo que tinha sido o grande escolho através da História da Filosofia, Por isso, nem negou, nem afirmou a realidade como extra-consciente; simplesmente deixou de a considerar filosoficamente, como quem pretende ultrapassar o obstáculo, rodeando-o. Colocou-nos assim perante uma alternativa inquietante: por mais que se suspenda o juízo em relação à realidade transcendente, ou em si, é sempre verdade que ela ou existe ou não existe como exterior à consciência. Se não existe, Husserl   tem razão porque a única realidade será a idealidade e, portanto, o ser ideal é plenamente exaustivo. Mas não compreendemos como supere o idealismo. Se existe, a única realidade não é a idealidade, ou ser como consciente. O objeto da Metafísica fica, portanto, coarctado.

Não vemos, portanto, como se possa simplesmente prescindir do aspecto «transcendente» da realidade. Uma Metafísica plenamente fundada tem que esclarecer também esta questão. Husserl   deixou conscientemente de o fazer. É verdade que S. Tomas também não se preocupou com ela. A solução por que optou manifestava-se demasiado espontânea para poder ser negada a sua evidência e não havia ainda, na sua época, adversários que apresentassem dificuldades insistentes a que urgisse responder, como aconteceu no decurso da História da Filosofia Moderna. Mas o descalabro e desorientação provocada pelas tentativas de impor um idealismo rígido, que infalivelmente degenera num panteísmo lógico, são já por si uma confirmação séria da sensatez da atitude de S. Tomás. O que, em qualquer hipótese, tem de admitir-se é que este foi mais prudente : Husserl  , dirigindo a atenção para o ser enquanto meramente consciente, analisou, sem dúvida, este aspecto do ser como poucos, ou mesmo ninguém antes dele conseguiu fazê-lo. Não podemos negar que este aspecto foi menos explorado pela Metafísica tradicional. Mas esta Metafísica, ao contrário do que porventura Husserl   terá suposto, não «pôs entre parênteses» a idealidade, não prescindiu dela, considerou-a como ela é no seu ser de realidade ideal. Não coarctou, portanto, a universalidade do ser. Se assim é, não só está isenta dos inconvenientes anexos a uma filosofia que pretende estabelecer-se em meras significações, mas também apresenta uma extensão que invade necessariamente o âmbito de qualquer ciência particular, como, quer S. Tomás quer o próprio Husserl  , exigiram da ciência absolutamente fundamentadora.