Página inicial > Fenomenologia > Fragata (1959) – Os graus de intuição e a evidência apodíctica
Fragata (1959) – Os graus de intuição e a evidência apodíctica
terça-feira 18 de março de 2025, por
Júlio Fragata , A Fenomenologia de Husserl como Fundamento da Filosofia. Livraria Cruz, 1959
CAPITULO II A EVIDÊNCIA APODÍTICA
3. — OS GRAUS DE INTUIÇÃO E A EVIDÊNCIA APODÍCTICA
A intuição, como acabamos de considerar, é especificada pela diversidade do objeto; o seu grau de perfeição determina-se pela posse mais ou menos plena do mesmo. Após as considerações já desenvolvidas no decurso deste capítulo, facilmente podemos entender este problema de importância fundamental para a compreensão do pensamento husserliano.
Husserl admite graus de extensão (Umfang), — de vivacidade (Lebendigkeit), — e de realidade (Realitätsgehalt).
Uma intenção pode estar apenas parcialmente preenchida. É o que acontece sempre quo se trata de percepções de coisas exteriores: «As partes do reverso invisível, do interior, etc, estão, sem dúvida, significadas dum modo mais ou menos determinado, pois estão simbolicamente indicadas através do que aparece primariamente, mas elas mesmas não pertencem ao conteúdo intuitivo (perceptivo ou imaginativo) da percepção». Assim, por exemplo, se olhamos para uma esfera, o objeto pensado intencionalmente é a mesma esfera. Mas nem todos os elementos desta intenção se encontram preenchidos pois não podemos ver simultaneamente mais que a metade exterior.
Neste caso, a intuição não é plenamente adequada; como não se estende ao objeto todo, temos um defeito de extensão ou de «riqueza de plenitude».
Os elementos manifestativos do objeto podem, além disso, indicá-lo dum modo mais ou menos claro, por exemplo, conforme é visto de longe ou de perto, com maior ou menor luminosidade. Portanto a intuição pode dar-nos o objeto dum modo mais ou menos confuso, ou seja, admite graus de vivacidade.
Finalmente, em qualquer percepção, intrometem-se sempre, em maior ou menor escala, elementos imaginativos. É claro que uma coisa é ver o objeto mesmo, e outra, a sua imagem. Na medida em que os elementos imaginativos são substituídos pelos reais, a intuição cresce no seu «conteúdo real», e temos assim a possibilidade duma posse mais ou menos plenamente imediata do objeto, isto é, diferentes graus de realidade.
Poderíamos reduzir os dois últimos casos ao primeiro, onde transparece diretamente a deficiência de «preenchimento». Com efeito, a menor vivacidade só é explicável por uma ausência de determinados elementos da realidade que não se chegam a atingir e portanto não contribuem para o preenchimento da intenção. E os elementos imaginativos, precisamente porque não pertencem à mesma realidade do objeto, indicam também um preenchimento deficiente.
Entramos assim em circunstâncias de poder compreender mais profundamente o sentido de «evidência apodíctica».
Gomo a evidência ó a consciência da intuição ou da posso da realidade, é patente que há-de admitir também graus: «A evidência, escreve Husserl , pode ser mais ou menos perfeita». O seu supremo grau de perfeição verificar-se-ia ; na adequação plena, em que a realidade transpareceria numa posse integral e portanto dum modo absoluto. Teríamos então a garantia primordial para uma «evidência apodítica».
Mas Husserl reconhece que a plena adequação é apenas um «ideal», ou uma «ideia no sentido kantiano», um caso limite para o qual devemos tender, sem a pretensão do saciar plenamente a nossa ânsia: «A evidência perfeita, e portanto a verdade pura e genuína que lhe corresponde, apresenta-se como uma ideia intrínseca à tendência para o conhecimento, para o preenchimento da intenção significativa, o que se realiza vivendo intimamente para essa tendência».
Nem por isso renuncia Husserl à possibilidade da «evidência apodíctica», embora se mostre por vezes apreensivo perante a existência de evidências ilusórias, — mesmo ilusoriamente apodíticas. Não é necessário que uma «evidência apodíctica» seja plenamente adequada: «A apoditicidade, escreve, pode apresentar-se mesmo em evidências inadequadas».
O critério que deve orientar o filósofo tem quo ser a apoditicidade, embora o ideal duma adequação o mais plena possível esteja também continuamente diante dele. Mas qual o sinal desta apoditicidade ?… É uma pergunta a que Husserl não pode deixar de responder, apesar da dificuldade inerente ao fato do problema estar implicado na mesma resposta. Para que a «evidência apodíctica» se verifique, basta que se manifeste uma absoluta ausência de dúvida, semelhante à que acompanha a verificação dos princípios fundamentais.
Surge porém uma dificuldade: Em qualquer evidência se apreende um ser ou um modo de ser em si mesmo, e por isso sob o aspecto duma certeza plena. Mas a dúvida insinua-se, infelizmente, muitas vezes, pois pode tratar-se apenas duma aparência de ser. É preciso discernir este assunto importante, eliminando qualquer possibilidade de dúvida. Por isso, continua Husserl , «uma evidência apodítica tem o caráter peculiar de não ser apenas a certeza duma evidência das coisas ou dos estados das coisas, mas de se revelar também, por meio duma reflexão crítica, como inteiramente incompatível com a não-existência dessas mesmas coisas». Ou seja, além da intuição do objeto, requer-se ma reflexão crítica que seja, ao mesmo tempo, auto-evidência apodítica.
Desde já podemos antever que um tal discernimento reflexivo, levado a cabo com o rigor característico de Husserl , há-de ser uma tarefa difícil. Assim como a adequação plena 3 torna inatingível, também esta evidência plena há-de estar sujeita a exigências insaciavelmente radicais.
Mas o ideal proposto por Husserl apresenta-se claro, não há dúvida que uma tal evidência tem as características um «começo absoluto», pois não pode haver nada mais primordial do que a «realidade» que se impõe dum modo isufismavelmente reflexo e portanto com plena luminosidade. Husserl chegou deste modo — é ele mesmo que reconhece — ao equivalente cartesiano da percepção clara e distinta.
O «princípio de todos os princípios» — será portanto o seguinte: «Tudo o que é intuído duma maneira originária é, por direito, uma fonte de conhecimento» e portanto «tem que ir aceite como se apresenta». Neste sentido, Husserl , grande inimigo do Positivismo, declara-se o verdadeiro «positivista»: «Se por ’Positivismo’ entendemos uma fundamentação, sem preconceito absolutamente nenhum, de todas as ciências no que é ’positivo’, isto é, capaz de ser apreendido um modo originário, nós é que somos os verdadeiros positivistas».
Toda a dificuldade está precisamente na clarificação este «positivismo» que coincidirá praticamente com um racionalismo extremo. Para isso, precisamos de subir a ma atitude tal que nos permita o recurso contínuo à evidência apodítica, colocando-nos numa espécie de hábito reflexivamente filosófico.
O problema adquire importância mesmo para orientar nossa linguagem: As palavras, pelas quais necessariamente exprimimos a realidade, são essencialmente imperfeitas, fiam sempre aquém do que queremos significar. O recurso continuo à evidência é portanto imprescindível para garantir sentido lídimo da palavra e, ao mesmo tempo, impedir, janto possível, que novas significações, já não evidentes, venham modificar a significação primitiva do vocábulo, levando-nos a afirmar como evidente aquilo que, dada a intromissão ilegítima, já não o é. Só assim poderemos aspirar a uma Filosofia rigorosamente unificada.
Para nos levar a esse contato íntimo com a realidade, ao campo absoluto das «evidências apodíticas», estabeleceu Husserl a sua fenomenologia. Esta será portanto primariamente um método de evidenciação. E como a evidência, entendida no sentido apoditicamente reflexo e portanto como uma «Selbstbesinnung» radical, é o princípio absolutamente fundamental, a constituição da ciência fenomenológica equivale para Husserl ao estabelecimento duma «Filosofia primeira», destinada a renovar todos os problemas filosóficos e portanto auspiciosamente considerada como «a íntima aspiração da Filosofia contemporânea».
Esta renovação não pôde completá-la Husserl . Com o seu caráter cioso sempre de maior exatidão, viu-se obrigado a ficar, quase exclusivamente, no estabelecimento desta base por ele idealizada, na convicção, porém, de que tinha atinado com o verdadeiro fundamento e de que portanto se poderia chamar «um verdadeiro principiante».
Oh! se lhe fosse concedida a idade de Matusalém, suspira ele, para poder chegar a ser também verdadeiro filósofo. Mas terá que se contentar, como Moisés, com ver a «Terra da Promissão» estendida diante de si, na expectativa de que outros, seguindo a orientação por ele traçada, a pouco e pouco possam construir o edifício imponente da Filosofia como ciência rigorosa.
Acompanhemo-lo, pois no estabelecimento desta fundamentação.