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Butler – individualismo e corpo

terça-feira 11 de março de 2025, por Cardoso de Castro

O postulado de uma precariedade generalizada que questiona a ontologia do individualismo implica, ainda que indiretamente, certas consequências normativas. Não basta dizer que a vida, sendo precária, deve ser preservada. O que está em jogo são as condições que tornam a vida viável (sustentável), e os desacordos morais, portanto, invariavelmente se concentram em como essas condições de vida podem ser melhoradas e a precariedade reduzida, e na possibilidade de que isso aconteça. Mas, se é claro que tal perspectiva envolve uma crítica ao individualismo, como podemos começar a pensar em assumir a tarefa de reduzir a precariedade? Se a ontologia do corpo serve como ponto de partida para repensar a responsabilidade, é precisamente porque, por sua superfície e profundidade, o corpo é um fenômeno social: ele está exposto ao outro, sendo vulnerável por definição. Sua própria persistência depende de condições e instituições sociais, o que significa que, para "ser", no sentido de "persistir", ele deve confiar naquilo que está fora dele. Como a responsabilidade pode ser pensada a partir dessa estrutura socialmente ek-stática [1] do corpo? Enquanto algo que, por definição, cede à força e ao moldamento sociais, o corpo é vulnerável. No entanto, ele não é uma simples superfície na qual significados sociais são inscritos, mas aquilo que sofre e desfruta da exterioridade do mundo enquanto responde a ela, uma exterioridade que define a disposição, a passividade e a atividade do mundo. Claro, a ferida é uma das coisas que podem acontecer a um corpo vulnerável e que às vezes acontecem (e não há corpos invulneráveis), mas isso não significa que a vulnerabilidade do corpo seja redutível ao que o torna sujeito a ferimentos. Que o corpo invariavelmente colide com o mundo exterior é um sinal do incômodo geral que constitui uma proximidade indesejada em relação aos outros e a circunstâncias que não controlamos. Esse "colidir com" é uma das modalidades que definem o corpo. E, no entanto, essa alteridade incômoda com a qual o corpo colide é frequentemente o que anima a capacidade de responder (responsiveness [2]) ao mundo. Essa capacidade de resposta pode abranger uma vasta gama de afetos: prazer, raiva, dor, esperança, para citar apenas alguns.

(Judith Butler  . Ce qui fait une vie. Essai sur la violence, la guerre et le deuil)


[1Conceito extraído do pensamento de Martin HEIDEGGER (1889-1976), especialmente de sua obra principal, Ser e Tempo (1927), trad. fr. François Vezin, Gallimard, Paris, 1986. A ideia de ek-stase, em Heidegger, é compreendida "na relação originária e fundadora que o ser mantém com o tempo". "As três ek-stases temporais do passado, presente e futuro aparecem como as direções desse movimento pelo qual a temporalidade coloca o ser fora de si mesmo", Enciclopédia Filosófica Universal, vol. II, "As noções filosóficas. Dicionário", dirigido por Sylvain AUROUX, PUF, Paris, 2ª edição, 1998. (N.d.T.)

[2Responsiveness: trata-se aqui da disposição da sensibilidade para formar afetos em resposta a um evento ou aos eventos que constituem o mundo. Este termo será traduzido aqui, conforme as exigências do contexto, às vezes como "resposta" ou "capacidade de responder", outras vezes como "sensibilidade moral" ou "sensibilidade afetiva e moral", para evitar confusão com outro sentido da palavra "sensibilidade" usado mais adiante para traduzir o substantivo inglês sentience, que caracteriza os seres vivos dotados de sensação. (N.d.T.)