Página inicial > Fenomenologia > Átrios da língua (Maldiney)
Átrios da língua (Maldiney)
quarta-feira 23 de abril de 2025, por
Maldiney1975
Os átrios da língua são, na própria língua, a hipoteca originária e perpétua do poder de articulação que a edifica sobre sua construção em signos. A língua também se edifica ligando o heterogêneo. A descontinuidade da experiência pensante é atestada no homem falante pela autonomia das raízes primitivas. Cada uma focaliza o sujeito primordial, o conjunto do ente, numa única direção de sentido, sobre o fundo de uma situação atual na qual o homem se encontra — e só se encontra ao decidir da essência desse encontro.
A articulação do heterogêneo, portanto a unidade da língua em ato, procede do mesmo poder que a nomeação. As palavras (que são primitivamente nomes) só comunicam entre si num dizer ao nível dessa lucidez primeira, toda de potência, que abre a significabilidade do mundo e da qual o nomear é o primeiro momento — que já decide do sentido do ser-aí que denomina. O desenvolvimento do nomear em dizer (palavra — frase nominal ou quase nominal — frase impessoal — frase pessoal) tem sua condição de possibilidade no mesmo poder de articulação. Ele comporta diacronicamente, no tempo operativo, momentos ou limiares críticos, cada um dos quais é o foco de um tipo específico de articulação e de uma área linguística. Raiz, sílaba fonético-semântica, radical, não são elementos fortuitos, mas possibilidades opcionais.
O uso, no entanto, só retém de uma língua, como posições descontínuas, os momentos nos quais ela se analisa. Mas essa descontinuidade de fato resulta dos cortes que o pensamento opera sobre si mesmo para se refletir. Sob essa descontinuidade, o movimento contínuo do pensamento ideador constitui o fundo dessas posições. É nesse fundo que a língua tem seus átrios.
O pensamento edifica sua morada ao sair de uma fase de turbulência primeira, à qual sucede no homem, até então incapaz de se reconhecer, esse momento decisivo que Gustave Guillaume chama de "lucidez potente", que nenhuma construção ulterior pode tematizar integralmente em sistema de posições, embora essa potência esteja na base de todas. Com efeito, sob as estruturas da língua em estado construído, que são induzidas das modalidades do discurso e cuja evidência autóptica permite, em retorno, compreendê-las num ver, estão em jogo operações de pensamento cujo conhecimento é, ao contrário, um "ver de compreensão".
Mas hoje esse fundo onde a língua tem seus átrios está oculto. A linguística atual geralmente se associa às línguas indo-europeias contemporâneas, cujo "estado pré-construído" (J. Lohmann) é o das línguas a palavras, constituídas por um sistema de predicados possíveis e de relações categoriais pré-determinadas. Como a "forma interior" da língua (W. von Humboldt ) está mascarada e até abolida por uma tematização universal que a afeta da mesma forma que outras construções humanas, a linguística tematiza sua articulação em estrutura. É no nível das potências que os elementos heterogêneos comunicam entre si nos diferentes sistemas da língua, em primeiro lugar no sistema da palavra e no sistema da própria língua, que é o invólucro de todos os outros. A linguística moderna está bem consciente da não-positividade do sentido. Mas à transcendência da nomeação e da articulação ela substitui a negatividade. A forma em formação da língua, onde se exprime a lucidez potente do pensamento que a edifica, é substituída por um tecido de relações puramente diferenciais que só comporta o negativo (De Saussure).
Só os poetas ainda habitam os átrios da língua, que são o fundo sobre o qual edificam a língua cada vez singular de um poema. Acontece também que filósofos explorem, como faz Heidegger, os átrios da língua para compreender como o homem habita. Assim, na experiência inaugural das massas falantes, o pensamento filosófico retoma, aquém do Urteil, uma Arche que não é Ursache mas Ursprung.
A questão das relações entre língua e pensamento só pode ser posta autenticamente a esse nível radical, onde elas se articulam interiormente uma à outra em estado nascente.