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Análise da liberdade em Sartre
domingo 31 de dezembro de 2023, por
Gaboriau5 (citação de Sartre)
1. Por que dizer que minha consciência singular está "além da essência, como minha liberdade"? O argumento se revela: ser é ter sido. E estava preparado há muito tempo, no capítulo da temporalidade: "o Passado (com P maiúsculo) é uma lei ontológica do Para-si" e ainda "minha essência está no passado". Dois aforismos emprestados, p. 164, de uma seção que pretendia tratar exclusivamente da fenomenologia, dez páginas antes do início do que Sartre intitula: "Ontologia da temporalidade" (p. 174).
2. O que Sartre antecipa, ele redescobre depois. O sujeito humano sendo definido por um tipo de temporalidade, o para-si tendo como essência e lei ontológica estar no passado temporal, resta apenas repudiar a "verdade de essência" que Descartes e Husserl pediam ao Cogito, e colocar "a liberdade como liberdade… como pura necessidade de fato" (aqui, § 3).
Então, sim, "não posso deixar de experimentar" essa necessidade que é um fato. Mas se é verdade que "assim minha liberdade está perpetuamente em questão no meu ser… e (que) devo necessariamente possuir certa compreensão da liberdade", devemos perguntar: qual compreensão? Tudo está aí.
3. Ora — último parágrafo — os precedentes sartrianos orientam essa "compreensão". Eis aqui:
a) a negação vem ao mundo pelo homem, realizador de uma ruptura nadificante.
b) a liberdade é identificada a essa possibilidade permanente de ruptura,
c) essa possibilidade — que sou sob a forma do ter-sido — "implica para o homem um tipo de existência particular". O que significa isso? Bem, "uma certa compreensão da liberdade"!
Mas então, no capítulo da temporalidade, já havíamos antecipado o que pertence à fenomenologia do tempo, não à ontologia das coisas; o que pertence à consciência (que se tem) do tempo, não ao "ser do tempo"; imbricamos este último no sujeito humano, de tal modo que o passado se torna "uma lei ontológica" e que assim o presente traz sua "nadificação". A liberdade é esse presente.
Presente desprovido de qualquer referência à essência e à existência: como era necessário demonstrar. Graças à liberdade. "É por ela que o para-si escapa de seu ser como de sua essência".
4. Eis a continuação [da citação de Sartre]:
"Estou condenado a existir para sempre além de minha essência, além dos motivos e móbeis de meu ato: estou condenado a ser livre. Isso significa que não se poderia encontrar outros limites à minha liberdade senão ela mesma ou, se preferir, que não somos livres para deixar de ser livres. Na medida em que o para-si quer mascarar seu próprio nada e incorporar o em-si como seu verdadeiro modo de ser, tenta também mascarar sua liberdade.""A recusa da liberdade só pode ser concebida como tentativa de se apreender como ser-em-si… Psicologicamente, isso equivale, em cada um de nós, a tentar tomar os móbeis e motivos como coisas. Tenta-se conferir-lhes permanência; tenta-se esconder que sua natureza e peso dependem a cada momento do sentido que lhes dou, toma-se-os por constantes: isso equivale a considerar o sentido que lhes dava há pouco ou ontem — que é irremediável porque é passado — e extrapolar seu caráter fixo até o presente. Tento me persuadir de que o motivo é como era. Assim passaria integralmente de minha consciência passada à minha consciência presente: habitá-la-ia. Isso equivale a tentar dar uma essência ao para-si.
Da mesma forma, colocar-se-ão os fins como transcendências, o que não é um erro. Mas em vez de vê-los como transcendências postas e mantidas em seu ser por minha própria transcendência, supor-se-á que os encontro ao surgir no mundo: vêm de Deus, da natureza, de ’minha’ natureza, da sociedade. Esses fins já prontos e pré-humanos definirão portanto o sentido de meu ato antes mesmo que o conceba, assim como os motivos, como puros dados psíquicos, o provocarão sem que eu mesmo perceba.
Motivo, ato, fim constituem um ’contínuo’, um pleno.
Essas tentativas frustradas de sufocar a liberdade sob o peso do ser — desmoronam quando surge de repente a angústia diante da liberdade — mostram o suficiente que a liberdade coincide em seu fundo com o nada que está no coração do homem" (p. 515-516).
Em suma, a equação é sempre tão simples: consciência = vazio = liberdade = para-si = não-natureza; e por outro lado, motivo, ato ou fim = pleno = em-si = não-liberdade. Sartre considerará portanto como tentativa de sufocar a liberdade o que poderia ser reconhecimento de seu condicionamento e raiz natural de sua angústia. Não é preciso que ela esteja inscrita e submetida ao ser: é o absoluto reconhecido imediatamente como tal. Desprende-se de todo vínculo, recusa-se a relacioná-la com qualquer coisa; único meio de consegui-lo, liga-se-a ao "nada". E certamente, é bem verdade que ela não é o ser puro e que se pode falar, com Sartre e os místicos, de um "nada que está no coração do homem". Resta saber com que direito se identifica esse "nada" à liberdade, como se tudo o que está "no coração do homem" se identificasse por isso mesmo. O em-si não é simples; vimos que é complexo, compreendendo uma forma, uma matéria, um vazio, toda uma dialética que seria abusivo simplificar, sob pretexto de escapar à "natureza", onde nascemos substancialmente livres.
Para Sartre , liberdade = nada, liberdade = ausência de todo vínculo, porque liberdade = presença atual, e negação de tudo o que é passado — negação consequentemente do que teria sido também naquele momento, e ligaria os dois momentos do passado e do presente (a saber, a essência):
"É porque a realidade humana não é suficientemente que ela é livre, é porque está perpetuamente arrancada a si mesma e porque o que ela foi está separado por um nada do que ela é e do que ela será" (p. 516).
Em outras palavras, reduz-se ao tempo a dimensão própria do sujeito, faz-se consistir nele sua liberdade, assim privada de qualquer outra referência, "temporaliza-se" como se diz (p. 514). A lógica interna do sistema é irrepreensível: quem entra no círculo não sai mais. Não é aliás tão atraente senão em virtude de intuições incontestáveis, habilmente mescladas à sua curvatura. Na liga que vemos aqui por exemplo, não se distingue sem esforço o verdadeiro do falso metal, perfeitamente fundidos:
"O ser que é o que é não poderia ser livre. A liberdade é precisamente o nada que foi [1] no coração do homem… Assim a liberdade não é um ser: ela é o ser do homem, isto é, seu nada de ser. Se se concebesse primeiro o homem como um pleno, seria absurdo buscar nele, depois, momentos ou regiões psíquicas onde ele seria livre: tanto quanto buscar o vazio em um recipiente que se encheu previamente até as bordas. O homem não poderia ser às vezes livre e às vezes escravo: é inteiro e sempre livre ou não é" (ibid. p. 516).
5. A liberdade é efetivamente inseparável do para-si, mas está em uma natureza que seu peso material liga às coisas: em uma substância onde a unidade do ser-livre compõe com tudo o que atua (matéria, vazio e forma). Daí seu caráter não-simples!
A consciência como tal não experimenta, em sua liberdade, uma ausência de toda relação. A consciência como pecadora só se experimenta como tal em sua liberdade, em função de uma atitude onde uma relação reconhecida é negada, negada embora reconhecida, e negada porque reconhecida: ruptura não apenas com um passado temporal, mas com um presente que a domina com sua Atualidade. A consciência pecadora se descreveria nos termos em que Sartre descreve a liberdade: rejeitando toda outra consideração que não a de seu presente, estritamente e essencialmente temporal, fazendo o vazio em torno desse instante para nele se absolutizar.
[1] Tradução literal do gewesen ist.